segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Tentei, tento e tentarei

Quando eu era criança, não havia esta facilidade de conhecer novas músicas e artistas como há hoje, através da internet, e muito do que nós, menores, ouvíamos, era por influência dos nossos pais, para o bem ou para o mal. Felizmente, o meu caso foi o primeiro, o benéfico.

Lembro-me de quando era pequeno e ouvia músicas que eu não entendia, de diversos artistas (Zé Ramalho, Zé Geraldo, Titãs, Engenheiros do Hawaii, Paralamas do Sucesso, Roberto Carlos, Luiz Gonzaga, Fagner etc.), tanto por causa da pronúncia rápida dos intérpretes, quanto pelas metáforas utilizadas nas letras; todavia, ainda assim, sentia-me atraído por elas. O cantor que eu mais gostava era o Raul Seixas; não o compreendia, mas tentava.

Aqui, em casa, havia uma coletânea com vários sucessos do Maluco Beleza, eu escutava-a todos os dias e gostava principalmente de uma canção de melodia triste, mas que, curiosamente, me deixava alegre e esperançoso: Tente outra vez. Diferente das outras letras, essa era simples, eu conseguia entender quase tudo, o que era mais do que “apenas” sentir e seguir o ritmo, embora este e a parte escrita, juntos, motivassem-me a andar (sempre para frente).

Um pouco mais velho, quando eu tinha 12 anos, na sexta série, uma professora, substituta, trouxe uma atividade diferente: no aparelho de som, com um CD (algo que muita gente que nasceu agora desconhece), músicas seriam executadas, e a educadora queria que nós nos movimentássemos conforme o sentimento que surgisse.

Sinceramente, não me lembro das outras canções, apenas tenho vagas lembranças de que algumas eram dançantes, porém, recordo (e este verbo é importante, porque, etimologicamente, ele significa “passar de novo pelo coração”) claramente de que ela, Tente outra vez, foi tocada. Surpreso, feliz, senti-me reconhecido naquele espaço.

Eu sabia que os meus amigos não gostavam do Raulzito, mas durante a execução da música, eles se moveram lentamente pela sala, com os braços abertos, de certa forma, sem sentido, somente porque a professora havia pedido movimentos. Enquanto isso, continuei quieto, apenas ouvindo. Ninguém perguntou o motivo de eu ter ficado parado, mas eu conto aqui, agora: nunca gostei de dançar, sempre acreditei que há canções que não pedem “coreografias”, que a agitação necessária deve ser interna, na mente; e se, na ocasião, eu tivesse sido verdadeiro, teria chorado, porque é o que desejo fazer sempre que ouço tal obra.

Depois, fui até a mestra e perguntei: “Professora, ‘Levante esta mão sedenta e recomece a andar’. ‘Sedenta’ de quê?”, ao que me foi respondido algo que jamais esqueci: “De vitórias”. Esta imagem nunca saiu da minha mente: um punho fechado, pronto para as batalhas da vida; uma forte mão que deseja vencer, que nunca desiste, que sempre tenta outra vez; com ela, termino de escrever estas memórias.

domingo, 4 de novembro de 2018

Novos caminhos para os meios de transporte


Redação antiga que encontrei nos meus arquivos:

Novos caminhos para os meios de transporte

Atualmente, um dos maiores problemas urbanos é o de locomoção das pessoas, tanto nos meios de transporte públicos quanto nos privados, pois ambos causam transtornos aos seus usuários e ao meio-ambiente.

A maioria das pessoas utiliza, diariamente, automóveis, trens, metrôs e ônibus; os três últimos, de caráter público, além de terem a passagem cara, a qualidade deles não ser boa, ainda causam desconforto, em consequência da lotação; já os primeiros ocasionam horas de trânsito e problemas de saúde aos habitantes, em consequência da poluição.

Algumas soluções para esses problemas seriam, com o dinheiro dos impostos, a construção de ciclo-faixas, a disponibilização de bicicletas para as pessoas, o investimento em propagandas a favor do uso desse meio de transporte, ou, ainda, a criação de postos de empréstimos de bicicletas, gratuitos ou a um baixo custo, próximos às estações de trens e metrôs, ou das rodoviárias, diminuindo, desta forma, a lotação e a poluição dos meios convencionais, melhorando a saúde dos cidadãos e preservando o meio-ambiente.

Enfim, o problema da locomoção das pessoas nos centros urbanos é grande, mas as soluções para ele são, de certa forma, simples, várias e eficazes, basta apenas os governantes terem boa vontade, visão ecológica, preocupação com o próximo e aplicação correta do dinheiro público, o que deveria ser, de fato e no mínimo, o dever deles.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

A besteira do "Não fale mal do meu candidato"

Ninguém gosta de ouvir, ler ou ver que a verdade não está ao nosso lado, mas, pelo contrário, contra nós. Dói. Machuca. As reações, dependendo da pessoa, são diferentes. Alguém inteligente reflete, percebe o erro e busca melhorar a sua opinião sobre os fatos. Os ignorantes são diversos, eles podem parar de falar com quem lhes apresenta visões distintas das suas, ou são capazes de agredir quem lhes corrige, ou ainda, se forem mais infantis, apenas se recusam a ouvir.

Algumas vezes, quando se é criança, esta, orgulhosa, egoísta, idiota, somente para não dar o braço a torcer, tapa os ouvidos, grita ou faz barulho para abafar o som, a fala, a verdade que vem do outro. É uma ação ridícula, sim, todavia não cometida apenas por menores, mas, frequentemente, por adultos, o que demonstra que, em alguns indivíduos, o corpo cresce, mas a mentalidade, não.

Por exemplo, durante os últimos meses do governo de Dilma, muita gente, alegando não querer dar atenção para a corrupção, iniciou o chamado “panelaço”, que nada mais era do que bater panela enquanto a ex-presidente discursava na TV. As pessoas que esse grupo que se dizia “anticorrupção” apoiava, uma a uma, foram acusadas, investigadas e, algumas, condenadas por corrupção. Há uma lista enorme de sujeitos investigados e comprovadamente culpados por diversos crimes, mas que ainda possuem privilégios que não os permitem ser presos. O que o pessoal das panelas fez e faz agora? Nada.

Quando conseguiram o impeachment, inteligentes como são, disseram que o país melhoraria, que se tiraram a Dilma, tirariam o Temer e todos os outros que fossem ruins. Nada disso aconteceu, o país piorou. Muito. Os escândalos de corrupção aumentaram, pouca justiça foi realizada, muita injustiça está sendo praticada e refeita diariamente. O que fez o grupo que vestia verde e amarelo, que gritava, que dançava? Isto mesmo: dançou, mas silenciosamente.

Agora, passado um tempo, com a ascensão de novos candidatos ao cargo de salvadores da pátria, de defensores dos bons costumes e da família, de pseudo-mártires, os ignorantes, tanto no sentido de que desconhecem os fatos, quanto no de que são agressivos, voltaram. Retornaram com uma estratégia que demonstra a sua incompetência. Ao verem o seu mito ser desmistificado, lançaram mão de uma imagem que diz: “Não fale mal do meu candidato. Fale bem do seu e tente me convencer”. Inteligentes, não? Aliás, atenção aos verbos no modo imperativo, que dão ordens: "não fale", "fale", "tente".

É a mesma história dos panelaços, de gente que não quer ouvir, ler (isso é o que menos quer) ou ver a realidade (ou realidades diferentes); é coisa de pessoas que não assumem o erro, que desconhecem que a política é coletiva, que requer diálogo e comprovações a favor ou contra personalidades e ideias; que não sabem que uma das estratégias da dissertação é o contra-argumento; que além da tese há uma antítese, para se chegar à síntese; que desconsideram até mesmo a hipótese de que o outro pode não ter um candidato escolhido para defender ou para falar bem, mas que está apenas avaliando todos e que, no momento, está pontuando as partes negativas do concorrente em questão. É difícil entender isso? Parece que, para eles, mais do que complicado, é impossível.

Desta forma, não adianta enaltecer A ou C, se você já está decididamente cego pelo B.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Breve análise do conto "Cabelos compridos", de Monteiro Lobato


Monteiro Lobato foi um renomado escritor brasileiro, inovador na forma de tratar alguns assuntos, crítico de tabus e problemas da sociedade da época, prosador racionalista e progressista, que olhava para diferentes regiões nacionais e temas sociais, porém, em razão do caráter moralista e didático de suas obras, não pôde ser considerado completamente “modernista” (e nem ele queria sê-lo), apenas “pré-modernista”.

Ora, o Pré-Modernismo é caracterizado por questionar-se mais profundamente sobre o que é, de fato, o brasileiro. Lima Barreto e Euclides da Cunha, por exemplo, mostraram aspectos e tipos de pessoas que os leitores não conheciam, como os negros ou os pobres nordestinos, ou conheciam de forma deturpada (como os sertanejos e os índios idealizados de José de Alencar). Porém, esses escritores também não podem ser considerados “modernistas”, faltava algo a eles: romper com a forma tradicional da escrita realista, ação que só a geração posterior fez.

Como é característica de Monteiro Lobato, suas histórias possuem personagens cômicos, até mesmo ridículos, como acontece no conto Cabelos compridos. A narrativa traz a história de Das Dores, uma mulher que “É feia, desengonçada, é inelegante, é magérrima, não tem seios, nem cadeiras, nem nenhuma rotundidade posterior; é pobre de bens e de espírito”, mas é uma pessoa “boazinha”. A única coisa que a personagem tem mais do que as outras é “cabelo”. O narrador chega até a citar uma frase de Schopenhauer: “Cabelos compridos, ideias curtas”. Essa citação, argumento de autoridade, em tom de piada, demonstra a racionalidade e o humor de Monteiro Lobato, mas que também são características do pré-modernismo.

Além disso, a personagem, Das Dores (e este nome já é significativo), é pobre, uma das classes investigadas pelos pré-modernistas, e representa grande parte da população brasileira, que “só faz tudo que outras fazem e por que as outras o fazem”. É o retrato do povo simples, inculto, que não reflete sobre os próprios atos e, por isso, apenas repete as ações, que se tornam costumes e tradições (muitas, ruins).

É nisto que se concentra o enredo do conto: a protagonista, um dia, vai à missa, e o cônego, dentre tantas coisas que diz e que não são entendidas pelo público — o que já é uma crítica à forma de tratamento e  ao discurso (que, por muito tempo, aliás, era feito em latim!) dos padres —, fala que deve-se refletir sobre cada palavra das orações cotidianas, pois se não o fizesse, seriam palavras em vão. Das Dores, a partir daí, fica pensativa.

Abismada, a protagonista foi falar sobre o assunto com uma tia, que “mastigou em ‘pois é’ que dava toda razão ao padre”. Trecho significativo do conto, porque indica duas ocasiões: a primeira, que Das Dores realmente estava refletindo sobre as palavras do cônego; a segunda, que sua tia não estava dando devida atenção às palavras da sobrinha e muito menos às do padre. Situação dialética.

Característica da maioria dos contos, o tempo segue cronologicamente, portanto, chega a noite, hora de a personagem rezar, coisa que sempre fez, mas agora ela refletiria sobre cada palavra. O espaço, fechado, o que dá mais tensão, é o quarto, somado à noite que, como se sabe, é um momento onde aguçam-se as subjetividades, o que acaba causando conflitos em Das Dores, porque ao pensar numa palavra, associa-a a pessoas, a lugares etc., não conseguindo terminar a oração e concluindo, equivocadamente, justamente por sua ignorância, que o cônego é quem está errado. É o fim do drama do personagem, como pede o gênero conto, sempre ao final.

A narrativa enquadra-se no Pré-modernismo por trazer essa personagem, mulher, feia, desengonçada, pobre, inculta, em suma, marginalizada, para a discussão, para a literatura, pois, antes, pessoas assim eram ignoradas pelo mundo das letras, como se não existissem; além, também, do estilo do conto não romper nenhuma convenção formal.

Monteiro Lobato, satírico e, ao mesmo tempo, com vontade de melhorar progressivamente o país, apontou para essas existências e para outros problemas pragmáticos. O cônego que fala somente para si, já que muita gente não o entendia, com aquela retórica toda, é outro obstáculo: o da comunicação e acessibilidade à linguagem. A tia de Das Dores, Vicência, “velha sabidíssima em mezinhas e teologias”, pode representar conhecedores de religiosidades não-cristãs, que não eram nem mencionados por muitos.

Enfim, o conto é curioso e chega a ser engraçado, em razão das descrições feitas pelo narrador, mas funciona e passa sua mensagem principal, mesmo que ao avesso: é por levar as palavras ao pé da letra, por sua ingenuidade e sua ignorância, que Das Dores não compreende o padre e pensa que ele pode estar errado: “pela primeira vez na vida duvidou”. Ao mesmo tempo, a história demonstra a dificuldade de parte da população, simples e pobre, para com a linguagem.

REFERÊNCIAS

LOBATO, Monteiro. Cabelos compridos. Disponível em: <https://tessellatedhearts.wordpress.com/2012/02/20/cabelos-compridos-monteiro-lobato/>. Acesso em: 14 set. 2018

sábado, 14 de julho de 2018

Barakamon: leveza, profundidade e beleza


Escrito e desenhado por Satsuki Yoshino, Barakamon é um mangá que teve sua animação em 2014, produzida pelo recente estúdio Kinema Citrus, mais conhecido agora, por causa do anime Made in Abyss, destacado por muitos como o melhor da temporada de 2017.

O anime de Barakamon conta com 12 episódios, além de um spin-off chamado Handa-kun, de 2016 (produzido pelo estúdio Diomedéa), também de 12 capítulos, que aborda a infância do protagonista, mas o presente texto discutirá apenas sobre a série de 2014, Barakamon.

A obra, que oscila entre o slice of life e a comédia, tem como protagonista Handa Seishu, um calígrafo jovem e promissor, vencedor de alguns prêmios da arte da bela escrita, o que lhe dá um ar de arrogância, que logo no primeiro momento do anime é dissipado, quando um dos jurados diz que a letra de Handa não traz nada novo, apenas segue modelos tradicionais, e lhe pergunta se o autor já havia tentado escalar “o muro da mediocridade”, ao que o protagonista não aceita e agride o velho senhor.

É importante ressaltar essa fala do jurado, porque Barakamon é muito coeso entre a linguagem verbal e a não-verbal, o que é um ponto muito positivo na obra. Depois do ocorrido, o pai de Handa, um renomado calígrafo, envia-o para uma ilha, para que o filho descubra mais sobre a vida e sobre si mesmo. Lá, o protagonista é cercado por gente simples, mais velha, que nem usa a norma-padrão da língua e que desconhece a cidade grande, e muitas crianças, que são o fator cômico do anime e, metaforicamente, os responsáveis pela cor na vida e na obra de Handa. O calígrafo, ao chegar no local — e até mesmo o telespectador —, pensa que não aprenderá nada, o que não passa de um ledo engano.


A principal personagem dessa ilha, Naru, é uma menina muito engraçada e animada, que logo no primeiro episódio ensina uma lição muito bonita e importante a Handa e a quem assiste, e que possui total relação com a fala do jurado no começo do anime, tudo conduzido por belas cores e por uma linda trilha sonora. Falar mais do que isso sobre o mesmo capítulo pode diminuir a surpresa.

O segundo episódio apresenta outro personagem, um rapaz que só tira notas ruins na escola, embora estude demais e passe noites sem dormir. Ele leva uma refeição ao protagonista, que está dormindo, o que é motivo de sarcasmo do morador da vila: “Fica uma noite sem dormir e tem todo esse sono? Eu passo várias noites acordado e não fico assim. Vida de artista é diferente mesmo...”.

É um pensamento que parece válido, mas nem sempre o é. Naru, a menina extrovertida e intrometida, abre um armário e mostra ao rapaz o tanto de rascunhos que Handa fez durante a madrugada. Não era a intenção dela, mas o adolescente julgador, neste momento, percebe a besteira que estava falando sobre o calígrafo e sobre si mesmo, que apenas diz que estuda, mas que não se esforça de verdade; é por isso que suas notas continuam baixas, é por isso que não sente sono durante o dia, porque não passa horas da noite realmente desperto. Um detalhe: os rascunhos do protagonista estavam dentro de um armário, no escuro, não à mostra de todos. Apenas cada um sabe do seu trabalho e do seu esforço, é o que o personagem e o telespectador aprendem, além de que não basta talento na vida, como muitos pensam, principalmente sobre os artistas.

O terceiro episódio é interessante por causa de uma dupla de rimas. Logo no início, vê-se Handa finalizando um quadro escrito “Despreocupado”. As obras de caligrafia, ao menos no anime, são retratadas apenas como uma palavra ou uma frase, escrita(s) de forma única, com o intuito de passar o sentimento do momento e da mensagem no código linguístico.


A questão é que essa obra do protagonista não ganha o concurso ao qual concorre, e além de ser derrotado por um calígrafo mais jovem, Handa ainda perde para todos os velhos numa brincadeira da ilha (rima número 1), o que lhe frustra. Está, aí, então, uma contradição: o personagem principal não estava sendo sincero consigo mesmo quando escreveu “Despreocupado”, porque ainda estava orgulhoso de si. Talvez, este seja o motivo de ter perdido; talvez, este seja o motivo de muita gente perder(-se): levar-se demasiadamente a sério. É preciso ter paciência e humildade. Lição ensinada pelos simples moradores da vila.




Distintamente, outro personagem, que já havia aparecido desde o primeiro episódio, é apresentado mais a fundo. Tamako Arai, uma menina viciada em mangás, revela a Handa a sua paixão pela arte dos quadrinhos japoneses e a sua vontade de mudar a visão das pessoas, chocando-as, porque quando ela era jovem, também teve sua visão mudada através de uma cena chocante que viu num mangá. O curioso é que a moça quer revolucionar a arte com o seu trabalho, enquanto o calígrafo ainda não apresentava nada de novo, apenas seguia a tradição. Ainda assim, Tamako, ao emprestar o seu próprio quadrinho para Handa, entrega-lhe diversos outros, para que o protagonista entenda a obra dela, isto é, as referências que a aspirante a artista também segue — entre elas, Soul Eater e FullMetal Alchemist, dois grandes nomes da cultura pop japonesa, dos animes e mangás (rima número 2).



Uma das lições básicas da história e que também é, de certa forma, um clichê dos animes, em razão da sociedade nipônica, de seus costumes e valores, é sobre o esforço e o treino. Num dos episódios, a turma de Handa pede-lhe para ensinar caligrafia, ao que o mestre ensina o básico da arte e pede para que todos repitam a mesma frase até ela apareça e soe como da maneira desejada, mas os jovens acham uma tarefa chata — o que de fato o é — e perguntam se não há um truque, se ele não pode lhes ensinar o seu estilo pessoal, tal como os quadros que mantém escondido. Enquanto isso, ao fundo, às escuras, é mostrada uma das obras do protagonista, “Nulo”. Nada mais coerente, posto que o próprio calígrafo ainda não tem um estilo próprio, por isso está na ilha, para se descobrir, porque, por enquanto, ele mesmo se considera nulo.


Ainda nesse episódio, há um diálogo bonito e reflexivo, quando Handa diz que não pode mostrar os seus quadros que estão escondidos, tanto porque ainda estão em desenvolvimento, quanto porque não foram reconhecidos. A pergunta e a resposta de uma das crianças: “Reconhecidos por quem? Para mim, está muito bom”. Quantas pessoas escondem as suas qualidades e habilidades porque não foram reconhecidas por um ou outro alguém, enquanto a maioria aos seus redores admira-as? Quantas vezes o trabalho da subjetividade do autor é rebaixado por ele mesmo, por causa da interpretação, frequentemente também subjetiva, dos outros? Geralmente são essas negações da própria pessoa que tornam a sua obra nula.

Em diversos momentos, em diferentes capítulos, o cenário, além de deixar a imagem mais bela, revela situações e sentimentos dos personagens, o que é muito comum na arte cinematográfica. Há um episódio, por exemplo, em que aparecem vários girassóis, flores (que por si só já significam a beleza e a juventude) que “seguem o sol”; ao mesmo tempo, surge um fã de Handa, aquele personagem mais jovem que ganhou do protagonista no último concurso de caligrafia, o que cria uma rima de imagem: o personagem principal procura uma luz na ilha, busca um sol, ao mesmo instante, ele é o sol daquele fã, que pretende alcançá-lo e trazê-lo de volta ao seu posto de primeiro lugar...

(A opção da câmera, de baixo para cima, mostra a arrogância do jovem calígrafo, ao mesmo tempo, deixa Handa maior do que o fã.)

O diálogo entre os dois é muito bonito e mostra a evolução de Handa, que era como o jovem que lhe segue, que, por sua vez, antigamente, apenas seguia seu pai... O desejo do protagonista, de criar algo novo, de ser único, lembra muito uma epígrafe do poeta brasileiro Mario Quintana sobre a arte da poesia: “Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.” (QUINTANA, 2003, p. 76). Pode-se aplicar o mesmo pensamento à caligrafia, que não se resume a “escrever de forma bonita”.

Todos os episódios são bem estruturados, fechando bem o ciclo que iniciam. Um deles, por exemplo, começa de manhã, com o calígrafo regando os girassóis e se perguntando sobre quem foi que os plantou, depois o foco é mudado para o aniversário de Naru, a menina sapeca que vive seguindo o protagonista, por fim, o último ato do capítulo é sobre o aniversário de morte da avó de Naru. Há uma ordem coesa no episódio: inicia-se pela manhã, com os girassóis, símbolos da beleza e da juventude, passa para o aniversário da personagem mais nova da história, à tarde, e termina com a cerimônia da morte de um antepassado da menina, à noite. Lembra-se do questionamento de Handa no começo do capítulo: “Quem será que plantou esses girassóis?” Ele também não havia se perguntado sobre o passado da própria Naru, tal como os espectadores que não conhecem, muitas vezes, a origem daquilo ou de quem lhes cerca.

Para finalizar, é necessário mostrar, concretamente, a influência dos cenários, da utilização de quadros diferentes quando os personagens discordam. Veja, por exemplo, após essa bela resposta de Handa, iluminado, com os girassóis atrás de si, o isolamento do seu fã (e também calígrafo) dentro de um quadrado, enquanto o protagonista passa por ele.




(Este diálogo é a prática de uma lição que Handa aprendeu na ilha, sobre ceder o "seu" lugar a quem, no momento, parece ser melhor.)

Ou então, observe a simetria dos girassóis ao fundo, quando o protagonista e um rapaz da vila (aquele que dizia que estudava demais e só tirava nota ruim) trocam os seus pratos, mas em seguida, quando um critica a refeição feita pelo outro, o ângulo da câmera coloca-os separados por uma coluna, a mesma que isolou o fã de Handa.

 (Antes de provarem a comida, um fundo plano, colorido e simétrico.)

 (Depois de terem provado e discordado, o foco é em diagonal e uma coluna separa os personagens.)


Em outro momento, quando estão reunidos quatro personagens (o pai, a mãe e um colega de Handa), três querem a mesma coisa, e embora estejam em posições diferentes, todos aparecem dentro de um mesmo quadro, enquanto o discordante (no caso, a mãe do protagonista), em outro; porém, quando o amigo do calígrafo começa a pensar como a mãe do personagem principal, a câmera muda de lado e mostra outra coluna separando Handa e o companheiro, e, por fim, este ao lado da mãe do calígrafo, dentro de um único quadro. Veja as relações abaixo:

 (Os três no quadrado à esquerda desejam o mesmo objetivo, a mãe, discordante, isolada num quadrado à direita.)

 (O amigo começa a discordar do protagonista e a câmera mostra-os de outro ângulo, separados por uma coluna.)


(O amigo assume que está ao lado da mãe, os dois ficam dentro do quadrado à direita, enquanto o pai, ainda de acordo com o filho, à esquerda.)

Em suma, Barakamon é um excelente anime, leve, belo e profundo, que, se não ensina nada novo, relembra lições importantes que podem ter sido esquecidas ou que não foram levadas a diante. Há diversas metáforas, momentos cômicos e reflexivos, que o autor deste texto não quis relatar, para não diminuir (mais ainda) a graça da obra para quem não a viu. O único problema do anime é uma cena que se passa por cômica, mas que é desnecessária, uma piada de “duplo” sentido vivida por crianças... Quem assistir perceberá e reagirá. A trilha sonora é bonita e relaxante, pois combina com aquele ambiente infantil; as cores são vivas, expressivas; os personagens secundários, embora não sejam tão bem trabalhados, evoluem com o passar dos 12 episódios. Ao todo, um trabalho bem feito, altamente recomendado para fãs de animações japonesas, coerente entre forma e conteúdo, grande demais para ser reduzido a este texto.

REFERÊNCIAS

QUINTANA, Mario. Caderno H. 9 ed. São Paulo: Globo, 2003.

domingo, 24 de junho de 2018

InuYasha, algumas considerações

Depois de 193 episódios e 4 filmes, finalmente terminei de assistir àquele anime que a Globo só exibiu 26 episódios, quando eu era criança, por volta de 2004/2005: InuYasha.
A história é boa, começa simples e termina complexa, mas, como é característica da criadora, Rumiko Takahashi, prolonga-se demais, tal como seu outro grande sucesso, Ranma 1/2 (que conta com 161 episódios e 2 filmes, e eu assisti a tudo...).
Além disso, a autora repete sua fórmula, o que, para alguns, torna a obra previsível. Em Ranma 1/2, Ranma é um menino amaldiçoado, metade homem, metade mulher, que gosta de Akane, que também gosta dele, porém, ambos fingem que não. Em InuYasha, este, metade humano, metade demônio, gosta de Kagome, que também gosta dele, mas ambos vivem brigando. (Em Rin-Ne, outra obra de Rumiko, feita após o fim de InuYasha, o protagonista, que também leva o nome do anime, é um rapaz metade humano, metade shinigami...).
Outros personagens de InuYasha são bem parecidos com os de Ranma 1/2. Kouga, rival de Inuyasha, por exemplo, lembra o rival de Ranma, Ryoga. Os dois estão sempre perdidos. A pulga Myouga, de InuYasha, é a cara do Happosai, de Ranma 1/2, mas este é muito mais engraçado e o seu caráter de "safado" é passado para Miroku, um dos personagens principais de InuYasha.
Depois da questão da "duração", que é muito longa, outro problema de InuYasha é a falta de vilões, ou a existência de apenas um: Naraku. Chega a ficar chata a situação: InuYasha consegue um poder, procura e enfrenta Naraku, que foge, aprende uma nova técnica que inutiliza a do protagonista, que, por sua vez, apanha, viaja para outro canto, adquire outra habilidade, enfrenta o vilão, que escapa etc.
Os cálculos de Naraku também podem ser considerados defeitos do anime: tudo é planejado, previsto e previsível, tanto pelo vilão quanto pelo telespectador, o único erro do personagem ocorre ao final (e que se não tivesse acontecido, Naraku reviveria...).
A primeira fase é constituída de 167 episódios, exibidos de 2000 a 2004; a segunda tem 26, que só foram feitos em 2009. Esta última, final, é muito corrida, deixando muitos acontecimentos sem explicação para quem viu apenas o anime...
Um último comentário negativo será sobre os confrontos. Rumiko Takahashi é famosa pelas comédias românticas, não pelas lutas, que são a principal característica do gênero shounen, ao qual InuYasha pertence. Porém, embora quase todo episódio possua batalhas, elas quase não são interessantes e emocionantes, pois não há estratégias. É um defeito que acontece em outros animes shounen antigos, como Dragon Ball Z e Saint Seiya, por exemplo.
Por outro lado, é preciso ressaltar que a trilha sonora é maravilhosa, as cores utilizadas no ambiente medieval também, a animação começa boa (exceto numa parte em que os protagonistas lutam contra demônios morcegos — não lembro exatamente em quais episódios —, onde é possível ver que apenas a boca do "rei" dos morcegos se move, mas as asas, não...) e termina excelente. Como é característica da autora, a obra traz diversas referências ao folclore e à mitologia japonesa, o que é muito bom e interessante, pois enriquece o trabalho.
A história conta com diversos personagens, conflitos e situações emocionantes, cenas tanto belas quanto tristes (a metáfora, a vontade e a morte de Kagura que o digam...); construções interessantes (como a passagem de Onigumo para Naraku, de Naraku para Musou — o motivo das ações deste, nos três únicos episódios em que aparece, são muito bem pensadas).
Em suma, InuYasha é bom, mas poderia ser muito melhor, se fosse bem mais curto, se possuísse mais vilões e complexidade nas técnicas de luta, ou se a minha experiência de assistir até o final tivesse ocorrido quando era mais jovem.


sábado, 19 de maio de 2018

Dos cultivos


Há uma história na internet de que, uma vez, alguém perguntou para um velho sábio quantos anos ele tinha, ao que o mestre respondeu:

“Oito ou dez. Tenho, na verdade, os anos que me restam, porque os já vividos não tenho mais.” — algo assim.

Embora não haja um autor definido, atribuem essa fala ao pensador Galileu Galilei. Sei que todos podem se equivocar ou julgar se algo é correto ou não, mas espero que a frase não seja dele. A resposta do sábio pode parecer lógica, mas não o é.

Não perdemos os anos vividos, pelo contrário, estão sempre conosco: adquirimo-los, guardamo-los, ampliamo-nos com eles, usamo-los quando aplicamos o que aprendemos ao longo do tempo. Como é dito na música Além da máscara, do projeto Poucal Vogal, do Humberto Gessinger (Engenheiros do Hawaii): “Não há tempo perdido, não há tempo a perder”. Seria mais bonito e poético, para mim, se o sábio tivesse respondido que não sabia a própria idade, que o que ele tinha era a dúvida...

Sou da opinião de que “Cada dia que passa / eu fico mais jovem” (TRINDADE, 2011, p. 57), como escrevi no ano passado (embora, na época, ainda não conhecesse esses versos, nem esse nosso poeta); concordo com o fotógrafo Jacob Riis (apud CORTELLA, 2015, p. 69): “‘(...) olho o cortador de pedras martelando sua rocha talvez cem vezes sem que uma só rachadura apareça. No entanto, na centésima primeira martelada, a pedra se abre em duas, e eu sei que não foi aquela que conseguiu, mas todas as que vieram antes’”. Como pode alguém acreditar que não tem os anos passados, mas os futuros? Do amanhã só temos ideias, incertezas e planos — o que já é muito bom e importante.

Fiz aniversário hoje e não consigo concordar com a lição do antigo homem, nem sou capaz de discordar do meu mestre pessoal e espiritual, Mario Quintana, que diz que “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente...” (QUINTANA, 2003, p. 64). Aliás, o mesmo poeta tem um texto, no mesmo livro, chamado “Pensamento para o teu aniversário”, no qual ensina: “Nem todos podem estar na flor da idade, é claro! Mas cada um está na flor da sua idade...” (idem, ibidem, p. 78).

Cito-o, porque fazer aniversário também é conhecido como “completar primavera”, que é conhecida como a estação das flores, que, por sua vez, são sinônimas de beleza. É preciso ver a vida, os anos, os dias, quaisquer que sejam, com mais atenção. Se não temos as grandes e melhores características dessa estação do ano, mas, por outro lado, temos a marca da passagem, que saibamos (ou lembremos), então, de que um buquê é formado por várias flores, e estas têm sementes ou podem servir como mudas, e esse produto final, de beleza singular, possui uma história que foi cultivada há anos...

REFERÊNCIAS

CORTELLA, Mario Sérgio. Não nascemos prontos!: Provocações filosóficas. 19 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

POUCA VOGAL: Gessinger + Leindecker. Além da máscara. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8HEzQQ5FAA0>. Acesso em: 19 maio. 2018.

QUINTANA, Mario. Caderno H. 9 ed. São Paulo: Globo, 2003.

TRINDADE, Solano. Poemas antológicos. 2 ed. São Paulo: Nova Alexandria, 2011. (Coleção Obras antológicas)

sexta-feira, 18 de maio de 2018

O jogo

Encontrei, nos meus arquivos, este "antigo" texto, de um ano atrás, e resolvi publicá-lo, embora esteja datado:

A mão global, que havia capturado a peça dilmãe, substituiu-a por um cara que se achava aristocrata só por ser velho e parecer o Conde Drácula. Porém, peças são peças e podem ser retiradas do tabuleiro.
Em outro quadrado (e em outro parágrafo), um componente da mão global começa a ser retirado do campo. É (quer dizer, "foi") o aecinho. Esse é impiedoso, não tem dó. Não captura: manda matar.
No entanto, é possível que ele continue recebendo privilégios — mesmo fora do campo —, já que uma outra peça, a de alcunha cunha, recebe para ficar em silêncio.
Esse último, como se sabe, foi um dos responsáveis pela retirada da dilmãe (embora ele tenha sido só uma marionete da mão global).
Ainda há alguns integrantes no tabuleiro, nas chamadas "side quests": de um lado, o juiz sem juízo, morinho (que lembra "marinho"); de outro, o cara que tem um dedo a menos (e que a mão global teme e sempre temeu); e aos arredores, alguns menores de nomes (alguns são até invisíveis!), mas metidos nas irregularidades. Afinal, embora as regras existam, ninguém as vê. Idem para as irregularidades.
O povo assiste ao jogo da mão global contra não-sei-quem (posto que há muitas mudanças rápidas: uma hora quem assume o lado oposto é o estado, outra hora são outras empresas, outra hora são cidadãos comuns que se cansam de esperar a jogada e tentam invadir o tabuleiro etc), sem saber que telespectadores são peões.
Engraçado é ver a mão global abrindo a boquinha (na mão, mesmo, estilo Deidara) para revelar secrets-secrets de suas peças, que fizeram parte de sua estratégia, passando-se, assim, como sincera e heroína (quem deve gostar de heroína é a sua peça aecinho). Faz parte da nova estratégia. Sacrifícios são feitos em jogos.
Qual será a próxima invocação? Sei lá, não sou jogador. Sou um mal relatador (à infeliz espera de delatores). A vontade é de fechar todo mundo dentro da caixa do xadrez, mas não sou o dono do brinquedo.

domingo, 15 de abril de 2018

Análise comparada dos contos “A aranha”, de Orígenes Lessa, e “Zoiuda”, de Luiz Vilela


Brevíssima introdução


O gênero, a Literatura comparada e os escritores: Orígenes Lessa e Luiz Vilela



O conto é um dos gêneros literários mais populares da contemporaneidade, por sua brevidade, “objetividade” (no sentido de ir direto ao ponto, sem enrolações que há, por exemplo, num romance), conflitos, imediata compreensão dos fatos (sem muito aprofundamento no passado) pelos leitores e por sua verossimilhança com a vida.

As principais características do conto são a pequena quantidade de personagens, a presença de diálogos, a cronologia do tempo/dos eventos e, principalmente, uma única célula dramática (clímax), sempre ao final. No conto, a narrativa, a dissertação, a descrição e o tempo psicológico são menos presentes.

A Literatura Comparada é um campo de pesquisa que busca, por semelhanças ou diferenças, através da interdisciplinaridade e intertextualidade, analisar duas ou mais obras, sendo elas do mesmo gênero textual ou não. Neste trabalho, procurar-se-á, brevemente, observar como dois autores, de tempos diferentes, lidam com o tema da solidão. Curiosamente, há algumas semelhanças nas duas histórias selecionadas, A aranha, de Orígenes Lessa, e Zoiuda, de Luiz Vilela.

Orígenes Lessa foi um contista, romancista, novelista, ensaísta e jornalista brasileiro. O autor, que começou sua carreira literária em 1929, entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1981. O conto A aranha, que será analisado, está presente na antologia Para gostar de ler – Volume 10 - Contos (1991), que reúne diversos contistas, de diferentes períodos literários.

Luiz Vilela é um contista, romancista e novelista brasileiro. O conto Zoiuda, que será explorado, faz parte do livro Você verá (2013). O escritor iniciou sua vida literária com o livro Tremor de terra, em 1967, aos 24 anos, o que já lhe rendeu o Prêmio Nacional de Ficção.

É preciso ressaltar, também, que este texto analisará os dois contos apenas sob a ótica de um tema, o que é muito pouco para qualquer obra literária, que é, por natureza, plurissignificativa. 

 Análise do conto A aranha, de Orígenes Lessa

A aranha é um conto de Orígenes Lessa, presente na coleção “Para gostar de ler – volume 10 – contos” (1991). A história constrói-se em duas camadas: no presente, num corredor de um prédio, através de diálogos nos quais o narrador-personagem ouve, de forma indesejada, um evento que aconteceu num sítio, no passado, com o amigo de um dos personagens presentes no corredor, que narra o acontecido durante seus turnos da conversa.

De qualquer forma, ambas as “camadas” do conto passam-se em espaços fechados (o corredor e o sítio), ambas as narrações seguem o tempo cronológico (linear), e o foco narrativo, interessantemente, oscila entre a primeira e a terceira pessoa: há um personagem-narrador, mas este apenas ouve a história de um segundo, onde o protagonista é um terceiro...

A complexidade do conto já começa nas primeiras linhas:

— Quer assunto para um conto? — perguntou o Enéias, cercando-me no corredor.
Sorri.
— Não, obrigado.
— Mas é assunto ótimo, verdadeiro, vivido, acontecido, interessantíssimo!
— Não, não é preciso... Fica para outra vez...
— Você está com pressa?
— Muita!
— Bem, de outra vez será. Dá um conto estupendo. E com esta vantagem: aconteceu... É só florear um pouco. (LESSA, 1991, p. 16)

A história é iniciada com a oferta de outra história, que será contada logo depois. Também já é demonstrado que o protagonista-narrador não quer dialogar, não quer companhia, o que está relacionado à narrativa do amigo. 

É importante notar essa valoração do fato, da não-ficção, como se a literatura fosse uma mentira e, por isso, algo de menos valor, quando, na verdade, ela é baseada na realidade e, às vezes, por “distorcê-la” tanto, ajuda o leitor a perceber melhor o seu próprio meio. Ao mesmo tempo, a valoração do amigo pelo fato justifica a narração ser em terceira pessoa, porque ela dá um caráter objetivo à história, embora, como se pode notar, esse amigo utiliza muitos adjetivos (ótimo, verdadeiro, vivido, acontecido, interessantíssimo, estupendo), o que não é aconselhável para textos impessoais...

Pois bem, o amigo do narrador conta um caso acontecido com um de seus conhecidos, o Melo, que morava numa enorme fazenda e “Passava lá enormes temporadas, sozinho, num casarão desolador (...) um verdadeiro deserto” (idem, ibidem, p. 18). Esse colega adorava tocar violão, principalmente músicas tristes como “A madrugada que passou” e “O luar do sertão”. Como se vê, canções relacionadas ao escuro, à noite, que trazem a ideia de subjetividade e demonstram a personalidade do personagem.

Outra obra que o rapaz gostava de executar era “A tarantela”, de Listz, o que já indica e cria a “rima” para o que virá a seguir no conto: o aparecimento de uma aranha caranguejeira. Sempre que o Melo tocava violão, a aranha aparecia; quando parava, ia embora, se escondia, impossibilitando, então, a sua morte, e criando, desta forma, uma espécie de companhia para o artista.

Essas intermitências da aranha continuaram por dias e também formam outra coerência na narrativa: enquanto, no passado, no interior de um sítio, um animal fugia, ia e vinha, no presente, no corredor de um prédio, o narrador-personagem quer entrar no elevador, que sobe e desce a todo momento, mas sempre lotado, impossibilitando a sua “fuga” dos amigos.

No outro dia, Melo “estava ocupadíssimo com a colheita. Só à noite voltaria para o casarão da fazenda. Teve que almoçar com os colonos, no cafezal. Andou a cavalo o dia inteiro. E sempre pensando na aranha” (idem, ibidem, p. 20). À noite

Queria saber se “ela” voltava. Começou a tocar como quem se apresenta em público pela primeira vez. Coração batendo. Tocou. O olho na fresta. Qual não foi a alegria dele quando, quinze ou vinte minutos depois, como um viajante que avista terra, depois de uma longa viagem, percebeu que era ela... o pernão cabeludo, o vulto escuro no canto mal iluminado. (idem, ibidem, p. 20)

Nesses trechos, percebe-se o tamanho da solidão do personagem que, mesmo envolto de pessoas durante o trabalho, só pensava na aranha. O Melo chegou até a colocar um nome (que o narrador não lembra) no animal, e “desde então, não sentiu mais a solidão incrível da fazenda” (idem, ibidem, p. 21).

O personagem contou o caso para outras pessoas, que vieram ver “a aranha amiga da música. Todas as noites era aquela romaria. Amigos, empregados, o administrador, gente da cidade, todos queriam conhecer a cabeluda fã de O luar do sertão e de outras modinhas.” (idem, ibidem, p. 21). É preciso se atentar ao fato de que todos iam ver a aranha, não o Melo, nem ouvir a sua música. Se, por um lado, o tocador “humanizou” um animal através da arte, por outro, isso é resultado da “desumanização” que os semelhantes fizeram com ele, ao não lhe darem atenção. Tal como as modinhas, que passam, o interesse pelas pessoas pela aranha desapareceu, mas o sentimento de Melo por ela continuou o mesmo, na verdade, ficou até maior.

Todavia, contraditórios como os seres-humanos são, assim que o tocador recebeu uma visita de uma pessoa diferente, cheia de novidades, esqueceu-se da amiga aracnídea e tocou seu violão, a música preferida da aranha, que apareceu em poucos instantes. Sem ser avisado do comportamento da amiga admiradora de melodias, o visitante matou-a sem hesitar, para a tristeza do Melo. Clímax do conto, chega o elevador para o narrador, fim da história.

O final sombrio já é esperado ao leitor que se atenta para a quantidade de palavras relacionadas à noite e ao escuro, além do rompimento na vida do protagonista, que começa triste, passa a ser feliz e, como o gênero conto pede o drama e a situação inesperada, isto é, abrupta, sempre ao final, haveria de acontecer algo que rompesse o encanto. No outro âmbito, no presente, no corredor do prédio, depois de tantas vezes em que o elevador chegou lotado, logo após a narrativa do amigo acabar, o elevador surgiu vazio, finalizando, coerentemente, os acontecimentos passados e presentes.
  
Análise do conto Zoiuda, de Luiz Vilela

Zoiuda é um conto de Luiz Vilela, presente no livro Você verá (2014). A história ocorre em espaços fechados: num bar, numa escola e num apartamento (a maior parte da narrativa acontece aqui); o tempo é cronológico, linear; o foco da narrativa é em terceira pessoa, um narrador conta a história de um professor que se apega a uma lagartixa.

Um dia, numa sexta-feira, após voltar do bar (e isso é muito significativo), um professor depara-se com uma lagartixa; após um observar o outro por algum tempo, o homem foi dormir.

Como a ida ao bar havia apontado, o professor não tem uma vida muito interessante, pois “Na noite seguinte — de novo o bar, de novo as conversas e as bebidas, conversas e bebidas que só serviam para matar o tempo e para matar dentro dele alguma coisa que ele não sabia bem o que era, mas que sabia ser essencial” (VILELA, 2014, p. 8). Além disso, o caráter repetitivo da existência do personagem é refletido na própria linguagem do narrador, que reforça as palavras “de novo”, “conversas e bebidas” e “matar”. Essa característica da narrativa é reutilizada em outros trechos do conto.

O protagonista, que não tem nome — o que pode sugerir que seja qualquer pessoa —, observa a lagartixa e nomeia-a, isto é, humaniza-a (nas palavras do narrador: “batizando-a”): Zoiuda. Ela tem nome, ele não; é como se ela fosse mais importante do que ele. De qualquer forma, o animal torna-se muito significativo para o personagem, como pode ser observado na passagem:

Na terceira noite, domingo — o mesmo bar e os mesmos amigos e as mesmas conversas e bebidas — ele, num momento de quase convulsivo tédio (“isso mesmo”, se diria depois, “convulsivo tédio”), lembrou-se da Zoiuda, isolando-se por alguns minutos do ambiente ao redor, um leve sorriso lhe aflorando aos lábios. (idem, ibidem, p. 8).

Mesmo fora de casa, mesmo rodeado de amigos, o homem distrai-se e sorri ao lembrar da lagartixa. Ela é motivo de um sorriso, algo que, em momento algum, antes ou depois, é causado ou observado no protagonista. Ao chegar em casa e chamar pelo animal, a companheira não apareceu. “Não estava. Ficou meio decepcionado. Tinha certeza de que...” (idem, ibidem, p. 9). Qual é o tamanho da solidão deste homem?

É importante ressaltar que esse personagem “dava aulas de português para um bando de adolescentes desinteressados e distraídos” (idem, ibidem, p. 9), ou seja, é um professor, alguém relacionado à comunicação humana, à língua, mas, ao contrário do que se espera, as pessoas ao seu redor não querem e nem estão abertas ao diálogo.

Ao contar para os colegas docentes que apareceu uma lagartixa na sua casa (um fato corriqueiro, banal), ouviu o relato de um que, desde que aprendeu um veneno, na sua casa “não ficou uma, nem uma só pra contar a história” (idem, ibidem, p. 9); a outra professora tem pavor; então o protagonista achou e disse que era meio maluco, “mas nenhum dos dois estava mais prestando atenção a ele” (idem, ibidem, p. 10).

É o retrato de uma vida medíocre, abandonada, vazia. O personagem sabe disso, pois “À noite, naquela plena segunda-feira, ele não saiu, substituindo o bar pela TV — a mesmice pela idiotice, pensou” (idem, ibidem, p. 10). O homem não tem a atenção dos alunos, na escola; dos colegas docentes, na sala dos professores; nem dos amigos, no bar (que já é um lugar de “fuga” da realidade sem graça).

Não é à toa que o narrador compara o protagonista a uma criança: "‘Zoiuda!’, exclamou, com a alegria de um menino; ‘você está aí!...’" (idem, ibidem, p. 11). O que o personagem deseja é amparo. Esse encontro dos dois ocorreu quando o professor foi beber água, da mesma forma que aconteceu pela primeira vez, na sexta, à noite. A água, não se pode esquecer, é fonte de vida; o homem, ao buscá-la, sacia a sede física, mas a metafórica, a sede de companhia, também é satisfeita com a presença da lagartixa. A única coisa que o personagem quer é reciprocidade, como se observa neste trecho: “lá dentro, àquela hora, o minúsculo coração também estaria batendo um pouquinho mais forte?...” (idem, ibidem, p. 10).

Mais à frente, é explicitado:

“Zoiuda, tirando minha mãe, você é a única criatura que eu amo hoje no mundo” — Zoiuda passou a ser para ele uma... uma espécie de companhia. Afinal, num apartamento onde havia somente ele de gente e onde, por dificuldade em criá-los, não havia cachorro, gato ou passarinho, ela era uma presença, um ser vivo, a quem ele podia dirigir a palavra, embora não houvesse resposta — mas para que resposta? Não queria resposta, queria apenas falar; apenas isso.
“Né, Zoiuda?” (idem, ibidem, p. 11)

No trecho supracitado, confirma-se o motivo do narrador ter comparado o professor a um menino: a lagartixa é uma segunda mãe para ele. E como não poderia deixar de ser, por se tratar de um conto, onde o clímax está sempre no final, aliado às noites da história, o corte inesperado acontece: a Zoiuda some e o protagonista volta a sofrer, “— tinha de admitir — que aquele apartamento ficara um pouco mais vazio e aqueles fins de noite mais tristes.” (idem, ibidem, p. 11). Triste, mas coeso e bem construído.
  
Relação entre os textos e conclusão

Há diversas semelhanças entre os textos escolhidos: ambos fazem parte do gênero “conto”, foram escritos por brasileiros, possuem pequenos animais, têm seus acontecimentos mais significantes à noite e tratam da solidão de homens.

O primeiro, A aranha (1991), de Orígenes Lessa, apresenta a história de um tocador de violão que, um dia, de repente, encontrou uma aranha no interior de seu enorme sítio. O bicho, primeiramente, causou medo ao personagem, mas depois se tornou uma companhia.

O segundo, Zoiuda (2014), de Luiz Vilela, é o caso de um professor de português que, numa noite, ao voltar do bar, depara-se com uma lagartixa que, com o passar dos dias, torna-se uma espécie de companheira, de ouvinte.

Ambos os contos retratam a solidão: os dois protagonistas, indiferentemente de seus meios, seja um sítio ou um apartamento, mesmo rodeados de pessoas, tanto no trabalho quanto nas horas de lazer, sentem-se sozinhos e preferem a companhia de pequenos animais, uma aranha e uma lagartixa, bichos que causam medo na maioria das pessoas com quem dialogam.

Além disso, ambos os personagens principais estão ligados, mais do que outros indivíduos, à linguagem, por um ser professor e o outro, um músico, porém, os dois têm dificuldades em dialogar com as pessoas ao seu redor. Mais ainda: os protagonistas apenas querem ser ouvidos. Essa é a angústia dos contos e um apontamento em comum nas duas histórias: é preciso dar mais atenção aos semelhantes. Talvez, o tocador e o professor só “humanizaram” os animais, porque, em diversos momentos, foram "desumanizados". Tal como os personagens, é necessário abrir os olhos para as pequenas criaturas.  


REFERÊNCIAS

LESSA, Orígenes. A aranha. In: Para gostar de ler: volume 10 – contos. 6 ed. São Paulo: Ática, 1991.

VILELA, Luiz. Zoiuda. In: Você verá. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.