segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Beastars, mais do que uma fábula


Quando se fala em anime feito em CGI (computer generated imagery), todos já olham estranhamente, mas não deve ser o caso de Beastars, de 2019, produzido pelo estúdio Orange, que só trabalha com esse tipo de técnica. Adaptação do mangá homônimo de Paru Itagaki, terminada agora a primeira temporada, a obra consagra-se como uma das melhores do ano na cena, por diversos motivos.
Beastars passa-se num universo de animais humanizados, isto é, antropomórficos, predominantemente dentro de uma escola, a Cherryton, numa sociedade onde é proibido que carnívoros devorem herbívoros. Mais do que isso, toda ação gira em torno do clube de teatro e o protagonista é um lobo que esconde ao máximo a sua natureza. Já deve ter ficado claro que, como as fábulas, o anime metaforiza a vida em comunidade e engloba questões psico-filosóficas, não é?
 Antes de tudo, é preciso lembrar que a sociedade é um lugar onde, segundo Freud, pai da psicanálise, “ao menos todos capazes de viver em comunidade — contribuem com o sacrifício de seus instintos, e que não permite — de novo com a mesma exceção — que ninguém se torne vítima da força bruta” (FREUD, 2011, p. 40-41). Ou seja, é necessário reprimir os seus sentidos animais para se viver socialmente. Ora, essa é a premissa da vida civilizada, do anime de Beastars, e que é quebrada logo no começo do primeiro episódio: ninguém sabe quem foi o malfeitor, mas um animal foi devorado na escola.


 Essa situação deixa todos os herbívoros em pânico e, ao mesmo tempo, revela um preconceito sobre os carnívoros que, por sua vez, sentem relativa raiva dos primeiros e da lei que os defende, o que lembra o pensamento nietzschiano de que a sociedade é um local em que uma massa de fracos vence os fortes (NIETZSCHE, 2009).
 Além disso, não se pode esquecer de que o anime foca no grupo de teatro, isto é, uma arte que busca o Belo através da atuação; de certa forma, do fingimento. Como disse Shakespeare, mestre da dramaturgia: “O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores” (SHAKESPEARE, 2013, p. 62). A representação, tanto em Beastars quanto na vida real, continua além dos holofotes, já que não se pode fazer nem falar tudo o que se deseja à luz do dia, em qualquer que seja o contexto social, pois há regras implícitas e explícitas que norteiam e “vigiam” seus usuários e punem quem as infringe (FOUCAULT, 2014).
 Como não poderia deixar de ser, embora não pareça, toda esta pressão e vigilância causa sofrimento às pessoas: “(...) privar um instinto de satisfação (...) É algo que tem seus perigos; se não for compensado economicamente, podem-se esperar graves distúrbios” (FREUD, 2011, p. 43). É o caso do protagonista da história, o lobo Legoshi, que, diferente de tudo o que se espera (inclusive dentro da obra), não é violento nem se exibe pela sua força, mas é gentil e calmo. Todavia, como já revela a abertura do anime, uma noite  — o que é simbólico, horário que a razão diminui um pouco, as subjetividades e vontades vêm à tona —, o lobo se deixa levar pelos instintos e quase devora uma coelha (pela qual, depois, ele se apaixona).


 Essa personagem, Haru, não é bem vista pelas outras coelhas e mesmo por alguns espectadores, porque ela “fica” (faz sexo) com qualquer animal, mesmo de outras espécies, como o cervo e líder do teatro, Louis, ou como quando já ia se entregar ao Legoshi, mesmo sem conhecê-lo, antes de ele fugir. Beastars é muito competente nisso, por juntar, ao mesmo tempo, questões humanas (morais) e animais (instintivas).
 No anime, Haru diz que cede a todos por medo, pois sabe que é fraca e frágil, então, se ser usada por outro animal lhe permitirá continuar viva, ela deixará, mesmo que não haja amor envolvido. É triste e reflexivo. Por outro lado, ela também diz que é só durante a relação sexual que todos são iguais. Não é nem preciso dizer que “tirar a roupa” e “ficar nu” é algo tanto literal quanto metafórico. Sem contar que “o amor sexual (genital) proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satisfação, dá-lhe realmente o protótipo de toda felicidade” (idem, ibidem, p. 46). Daí, o preconceito que mascara a possível inveja inconsciente das outras coelhas sobre Haru e, na vida real, das pessoas “tradicionalistas/reacionárias” quanto à liberdade sexual dos outros. Novamente, pode-se lembrar de Nietzsche e a moral dos fortes e fracos.
 O anime aborda, então, um triângulo amoroso entre Legoshi, que ora se move pelos sentimentos, ora pela racionalidade, Haru, que se deixa levar mais pelos instintos, e Louis (o cervo, líder e ídolo da turma do teatro), que tenta ao máximo esconder seus medos e fraquezas de herbívoro e mostrar uma imagem de forte e elegante — muito coerente, já que é o maior representante da arte de atuar. O lobo gosta da coelha que gosta do cervo. Situação complicada, difícil de lidar, que evoca questões psicológicas.


 Por falar nessa área de estudo, há uma espécie de “psicólogo”, um panda que vive fora da escola, na cidade, no “mundo dos adultos”, ou, como ele mesmo diz, de quem aprendeu a dominar os seus instintos e que sabe que, de qualquer forma, há uma fuga, no caso, o “mercado negro”, local em que é possível comprar e vender carne, onde crimes acontecem, todos sabem, mas não fazem nada para impedir, apenas afastam as crianças e os estudantes. Nada mais verossímil. Se quiser aproximar da realidade de cá, troque “carne” por “drogas” ou “prostituição”.
 É esse panda que ensina a Legoshi que, na verdade, o que ele sente pode não ser amor, mas somente desejo; que o medo que ele tem de perder a coelha para alguém é, no fundo, medo de perder a própria presa, seu objeto de prazer. É impossível não lembrar de Nietzsche: “Amamos, em definitivo, somente nossas inclinações e não aquilo a que nos inclinamos” (NIETZSCHE, 2013, p. 111). Isto é, ama-se o desejo, não o desejado; gosta-se apenas dos sentimentos e das sensações boas que o outro pode causar, mas não própria e especificamente do causador, tanto que, quando alguém deixa de ser fonte de prazer, é trocado por outra pessoa.
 Ainda assim, Beastars não se trata apenas de romance. Há ação, outros personagens interessantes, lutas/brigas (obviamente, sem poderes e exageros, pois a obra, como já deve ter ficado claro, não é um shounen), cenas cômicas, diálogos reflexivos e poéticos e momentos muito tensos, tudo feito com bastante cuidado, tanto na animação e nos enquadramentos, quanto nas cores e na trilha sonora. Aliás, a abertura é um show à parte, com imagens em stop-motion (aquela técnica de sequência de fotografias de objetos para simulação de movimentos) e música jazz, bem ao estilo das openings de Cowboy Bebop (1998) e Baccano! (2007), embora sejam instrumentais.

(Abertura de Beastars)

 Se fosse para apontar um ou outro “defeito” nesta primeira temporada, pode-se falar que alguns episódios soam desconectados, como, por exemplo, um no qual muito do tempo é gasto descrevendo ações e pensamentos de uma galinha. O capítulo é interessante e engraçado, tem seus próprios questionamentos e a personagem até possui relação com Legoshi, mas soa relativamente desnecessário.
 Outro ponto que parece desconexo é a falta de investigação sobre a morte que acontece no começo da história: ninguém sabe como foi, quem praticou o assassinato, as consequências etc. De vez em quando, até mencionam o fato, mas em boa parte do anime é esquecido. Uma hora, retomam, mas leva tempo. De qualquer forma, são apenas 12 episódios e esses detalhes não estragam a obra. Na já confirmada segunda temporada, ao menos a parte do crime deve ser melhor trabalhada.
 Em resumo, Beastars foi uma grata surpresa neste 2019. Por vezes, nem parece que é feito em CGI. Repleto de metáforas e levantamentos sócio-psico-filosóficos, é uma obra adulta que merece atenção não apenas pelo seu conteúdo, mas pela forma como aborda tudo, afinal, não se vê narrativas com animais antropomórficos toda hora, quase uma fábula moderna, mas sem o clichê maniqueísta de Bem e Mal, “final feliz” (pelo menos por enquanto) e lição de moral. Um verdadeiro trabalho artístico. Que venha a segunda temporada.



REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.  24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics & Companhia das Letras, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do Mal. Tradução de Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2013.

NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moraluma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SHAKESPEARE, William. Como gostais, seguido de Conto de inverno. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre, RS: L&PM POCKET, 2013. (Coleção L&PM Pocket, v. 727).

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Isshuukan Friends: amizade e memória


Isshuukan Friends, também conhecido como One week friends, é um anime de 2014, baseado no mangá homônimo que foi publicado entre 2012 e 2015, de Matcha Hazuki. A animação ficou ao cargo do estúdio Brain’s Base, responsável pelos relativamente conhecidos Rin-ne (de Rumiko Takahashi, criadora de Ranma ½ e InuYasha), Durarara e Bacanno! (ambos de Ryohgo Narita).

A história dura apenas 12 episódios e é muito bonita e relativamente simples, mas pode produzir reflexões interessantes. Em resumo, um menino, Hase, deseja ser amigo da menina mais quieta e reservada da sala, Fujimiya, e depois de muita insistência, descobre que o motivo de ela ser assim, afastada, é porque toda semana ela perde a memória dos amigos, lembrando-se apenas dos familiares e de questões que não envolvem pessoas, como o conteúdo das lições, os caminhos, as vontades, os gostos etc. Mesmo assim, toda segunda-feira, Hase pede para ser amigo de Fujimiya novamente.


Essa situação, pedir a amizade de alguém, é ambivalente, pois, de um lado, mostra a ingenuidade dos envolvidos, como se fossem crianças, o que, pelo design escolhido na obra, é o que eles aparentam ser, desenhados bem bonitinhos, com as bochechas coradas etc. Quando se é pequeno, é verossímil que uma pessoa peça para ser amiga da outra, mas, por outro lado, os personagens de Isshuukan Friends estão no ensino médio, são adolescentes, mesmo que, pelos traços e até pelas personalidades, não pareçam. Todavia, por causa do problema da menina que perde a memória toda semana, o anime mostra que amizade não se ganha, pelo contrário, se constrói dia após dia, o que combina com a estrutura episódica da obra.

Para evitar o infortúnio da amiga, o protagonista sugere que ela escreva as experiências cotidianas num diário, o que é uma boa ideia, pois, como se sabe, alguém sem memória, sem história, é, também, sem identidade. No entanto, isso levanta um questionamento psicológico: como toda relação humana, há certo egoísmo envolvido (não se pode esquecer que “ego”, em latim, significa “eu”), porque, no fundo, mesmo que quem sofra mais seja a Fujimiya, é o Hase que não quer ser esquecido... Episódios mais à frente, com outras palavras, essa dúvida é levantada: você realmente se esforça tanto por mim, ou por você mesmo? Todo contato tem atrito...


Outra indagação que o espectador pode fazer e que também é realizada no anime é que há uma diferença entre a realidade objetiva do mundo e a subjetiva de Fujimiya: mesmo que ela escreva para não se esquecer das suas experiências, ao ler sobre elas e desejar crer naquilo, acreditaria em qualquer coisa que estivesse escrita, mesmo que modificada, por exemplo. Ou mesmo em outra ocasião, veja, se ela lê que tem um amigo chamado Hase e um menino chegasse falando com ela, a menina poderia pensar que é o seu colega (há episódios em que ela chega ao colégio, na segunda-feira, e pergunta: “Você é o Hase-kun?”), mas se fosse alguém mal-intencionado, conseguiria criar confusões e problemas entre eles. De qualquer forma, são apenas possibilidades que não acontecem na obra.

A direção do anime é eficiente e consegue conciliar bem conteúdo e forma, demonstrando os sentimentos dos personagens através do clima do momento, das cores ou por meio do enquadramento da tela. Então, por exemplo, enquanto querem revelar seus anseios, mas vivenciam dúvidas interiores, vão à praia e está chovendo, isto é, um tempo instável, além de estarem na presença do mar, que vai e volta, que é o movimento da vontade subjetiva deles. Não à toa, no fim desse episódio, uma pessoa relacionada ao passado de Fujimiya, tal como uma onda ou maré, retorna. Outro momento é quando a menina ainda não confiava no Hase e os seus encontros, na tela, eram sempre marcados por algo, no fundo, que os separava, como uma grade ou uma barra de ferro.


Uma dificuldade que os animes curtos têm, principalmente os do gênero “Slice of life”, como é o caso de Isshuukan Friends, é desenvolver os personagens, já que a história é curta e cada episódio tem seu próprio conflito, com início, meio e fim. Além dos já mencionados Hase e Fujimiya, o anime trabalha com outras três figuras: Kiryu, que é amigo do Hase; Yamagishi, que é uma menina que sempre quis ser colega da protagonista e que, curiosamente, gosta de Kiryu e também é esquecida das coisas (mas só de fazer a lição, lembrar do nome dos colegas de classe etc.); e Kujo, que era um amigo de Fujimiya do passado e parte do motivo de ela ter perdido as memórias.

Como se não bastasse a coincidência deste último personagem retornar para Tóquio, para a mesma escola que sua antiga melhor amiga está estudando, no mesmo horário que ela, de cair na mesma sala, de o único lugar vazio ser ao lado dela, Kiryu, por outro lado, também estudou com Yamagishi no ensino fundamental (embora esta não lembre) e mesmo que ele não demonstre suas emoções — típico personagem que é bom em tudo o que faz sem precisar se esforçar — já no passado, ajudava Yamagishi sem que ela soubesse... Por quê? Para quê? Eles nunca haviam trocado palavras e se dependesse dos dois, nunca trocariam, já que uma é extremamente tímida e o outro é quase totalmente indiferente a tudo e a todos.


Ainda assim, esses são problemas pequenos que não afetam a beleza da obra, nem desmerecem as sutis reflexões que ela proporciona, às vezes, sobre questões bobas que acontecem nas melhores amizades, como quando Hase apresenta seu amigo Kiryu para Fujimiya e ela se dá muito bem com ele, embora, no começo, não o considere um amigo e, por isso mesmo, na outra semana, lembre-se dele, mas não de Hase que, irracionalmente, sente ciúmes, como amigos que têm esse sentimento quando veem que seu/sua parceiro (a) agora é companheiro (a) de outro (a) colega seu/sua. Bobo, mas normal e verossímil.

O pensamento do protagonista sobre o fato da amiga perder a memória também vale para a vida de qualquer um: o passado é importante, claro, mas se você não consegue lembrar do ontem, viva o hoje, o amanhã, o depois de amanhã, hoje, amanhã e depois de amanhã; crie novas vivências que poderão ser lembradas, se não por você, então, por outros. Diz-se que, no grego antigo, os verbos “morrer” e “esquecer” têm semelhança, daí a preocupação em querer ser lembrado... Carlos Drummond de Andrade possui um poema onde diz que “eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo / mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata (DRUMMOND, 2010, p. 301)”. Essa é uma lição que todos sabem, mas que não deveria ser esquecida...


Todavia, há experiências que não apenas são abandonadas involuntariamente, quanto devem sê-lo, que o próprio corpo se encarrega de fazê-lo. Fujimiya não nasceu com o problema que ela tem, mas o adquiriu após uma série de eventos que ocasionaram um acidente que, por sua vez, gerou um trauma. A menina passa mal quando surge o Kujo e tenta lembrá-la do seu passado. Não é bom recordar de certas coisas (o sentido etimológico da palavra “recordar” é “passar de novo pelo coração”), e nem é necessário fazê-lo: quantas informações o cérebro capta durante o dia todo, num centro urbano? Agora, para quê lembrar de tudo o que foi visto ou ouvido? Além de ser impossível, é desnecessário, e a máquina do corpo humano sabe disso.

Em suma, Isshuukan Friends é um anime bom, leve e muito bonito, sobre amizade e lembranças e, portanto, sobre parte da vida. O design dos personagens ajuda a deixar tudo mais belo e até “inocente” e fofo, o que não condiz com a idade deles; a direção é bem trabalhada; a história termina bem, mas não cobre todo o mangá, então ainda ficam algumas pontas soltas, mas nada que interfira muito no produto final. Por ser curto, pode-se assistir ao anime em um ou poucos dias mais — e vale a pena vê-lo. Quer dizer, é memorável.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. 65. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.



terça-feira, 30 de julho de 2019

Análise do poema A terra das crianças pretas, de Paulo Franco


Este texto é parte modificada do último trabalho feito para o curso de Letras – Português, Inglês e respectivas literaturas, da Faculdade de Santo André, no segundo semestre de 2017.

 

Análise do poema A terra das crianças pretas, de Paulo Franco


Paulo Franco é um escritor contemporâneo, iniciou sua carreira ainda na infância; por volta dos catorze anos, um de seus poemas tornou-se o primeiro hino do município Rio Grande da Serra, local onde morava. Vencedor de muitos concursos literários no país, sua obra revela uma indignação com a sociedade, com a pobreza, com o preconceito, com a alienação e, ao mesmo tempo, um encanto pelas pequenas imagens do dia-a-dia e pelos sonhos. Seus versos variam entre os brancos e os rítmicos sonoros, vão do belo ao trágico.

A terra das crianças pretas, poema contido no livro Pétalas de Insônia, de 1999, traz à tona uma infeliz realidade: a exclusão do negro na sociedade, que persiste desde a época em que o Brasil era uma colônia escravista. A seguir, o poema e a sua análise:

A terra das crianças pretas


E os soldados brancos
sentinelam as crianças pretas.
E as crianças pretas
já não brincam de marchar
e observam os desfiles
dos soldados brancos.

E os soldados brancos
nunca brincam
vigiando
esta terra de crianças pretas.

E as crianças pretas
se acostumam a jamais serem soldados
e só brincam de crianças pretas
dominadas por soldados brancos.

...Pois que ser soldado
deve ser só para crianças brancas
que já nascem dominando
até os sonhos das crianças pretas.

É interessante o fato de o poema começar com a conjunção “E”, pois dá a impressão de que o que virá a seguir é uma continuação de um acontecimento que já ocorreu ou que ainda insiste, o que, realmente, o é: “E os soldados brancos / sentinelam as crianças pretas” (FRANCO, 1999, p. 3): são os negros que até hoje são vigiados por soldados, guardas, policiais e pessoas brancas.

Por outro lado, “as crianças pretas / já não brincam de marchar / e observam os desfiles / dos soldados brancos” (idem, ibidem, p. 3). São versos que denotam a forma como as crianças negras, desde pequenas, acostumam-se à passividade, à exclusão, a apenas serem observadas e, assim, deixam até mesmo de brincar, de se divertir, de ser sujeitos que agem; enfim, passam apenas a ser espectadores.

É necessário lembrar que a brincadeira das crianças pretas, às vezes, também é interrompida pela realidade pobre, muitas vezes presente em suas vidas, quando perdem a infância para trabalharem e ajudarem a sustentar as suas famílias. Por serem menores de idade, obviamente, o trabalho é ilegal, o que gera mais desconforto e permite mais abusos, ocasionados pela discriminação. Em suma, trocam o mundo lúdico das crianças pelo mundo do trabalho dos adultos.

Já os soldados brancos “nunca brincam / vigiando / esta terra de crianças pretas.” (idem, ibidem, p. 3). Os soldados, os guardas, os policiais, são agentes do sistema, perpetuam-no, dão continuidade à exclusão dos negros e ao preconceito, posto que não abrem os seus olhos para o diferente ou mesmo para a compreensão de sua própria realidade.

No entanto, eles também são vítimas do próprio sistema, pois os soldados são, de certa forma, alienados, que apenas seguem ordens de sentinelar as crianças pretas e nunca se questionam sobre o porquê de estarem fazendo o que fazem. Pela descrição do eu-lírico, são sérios, nunca brincam, apenas trabalham.

A quarta estrofe confirma que “as crianças pretas / acostumam-se a jamais serem soldados / e só brincam de crianças pretas / dominadas por soldados brancos.” (idem, ibidem, p. 3). Desta forma, com a existente e persistente opressão que há sobre elas, desistem de seus sonhos. A brincadeira deixa de ser marchar e passa a ser observar a marcha dos brancos, “... Pois que ser soldado / deve ser só para crianças brancas / que já nascem dominando / até os sonhos das crianças pretas” (FRANCO, 1999, p. 3).

Semanticamente e esteticamente, é interessante perceber que este jogo de palavras criado pelo poeta, esta repetição dos vocábulos “soldados brancos” e “crianças pretas”, que se intercalam ao longo dos versos e estrofes, sugere a própria marcha dos soldados, para lá e para cá. Outro ponto a ser considerado é que o adjetivo “pretas” aparece mais vezes (seis, ao todo) do que o “brancos” (quatro vezes — cinco, se contar com a variação “branca”, no décimo sexto verso), o que remete à população brasileira, onde há mais negros do que brancos, mas estes sempre dominaram aqueles (antes, fisicamente; agora, simbolicamente).

Além disso, o uso contínuo dos termos “soldados brancos” e “crianças pretas”, sem sinônimos, elipses ou troca por pronomes, pode manifestar a ideia de que a descrição dessa realidade é feita justamente por uma criança, que ainda não utiliza de forma eficaz e sem redundância a linguagem.

É um poema que explicita um determinismo social, uma predestinação para cada pessoa: melhores para os brancos, piores para os negros. Este determinismo, no Brasil, acontece desde quando o país era uma colônia, quando o branco tinha escravos negros (bem como índios), quando os filhos destes já nasciam escravos daqueles também, exceto se fossem filhos — frequentemente nascidos sob abusos sexuais — da escrava com o “senhor” branco, pois, nesses casos, estariam livres.

Já na época da escravidão existiam os soldados brancos, os capitães do mato, os caçadores de escravos, que vigiavam as crianças, os jovens e os adultos negros; que se sentiam alheios às dores e à falta de liberdade dos semelhantes; que se achavam superiores a eles, simplesmente pela cor da pele, o que lhes rendiam classes sociais distintas.

Aliás, é importante notar que o eu-lírico de Paulo Franco não utiliza a palavra “negras”, mas “pretas”, o que pode indicar que, para o eu-lírico, só há uma raça, a humana, não a “branca” ou a “negra”, como alguns dizem até hoje. Dentro desta única raça, há os brancos (soldados) e os pretos (crianças pobres).

No entanto, essa separação denota que, mais do que racial, há uma separação social, as crianças brancas já nascem dominando os sonhos das crianças negras, dominando como os soldados brancos dominam as ações das crianças pretas. As brancas poderão e serão líderes e livres; as negras, lideradas e vigiadas; as brancas podem brincar do que quiserem, têm acesso à escola e à boa alimentação; as negras, quase sempre, não.

É desta maneira que a terra de crianças pretas é criada. Não é um local específico, mas qualquer um feito através da segregação, do preconceito, da opressão. As favelas não foram criadas por livre e espontânea vontade, mas porque eram os locais onde os brancos não queriam morar, eram os restos, eram as margens da sociedade (daí a palavra “marginal”); era para onde os negros “livres” se refugiaram após a sua “libertação” (que só lhe deu o nome de “livre”, mas não lhe deu emprego, moradia, educação, vestimentas, alimentação, nada). Obviamente, se uma terra de crianças pretas é criada, por outro lado, uma terra das crianças brancas também o é, sempre o oposto da primeira.

Assim, a mímesis continua a acontecer: se as crianças brancas veem que só há soldados brancos, líderes brancos, presidentes brancos, atrizes e atores brancos, apresentadores de televisão brancos, acostumam-se e acreditam que é seu direito sê-los, quando, na verdade, é um privilégio. A criança negra, ao não ver ninguém de sua cor e de sua classe social nesses locais, quando a “representação” dos seus aparece apenas como empregados passivos ou vítimas, ela também se acostuma à situação.

REFERÊNCIAS


FRANCO, Paulo. Pétalas de Insônia. São Paulo: C. Cranchi, 1999.

sábado, 8 de junho de 2019

Mestre, Maestro, Andre Matos


Hoje, infelizmente, faleceu um dos maiores vocalistas e músicos mundiais, o brasileiro Andre Matos. Quando soube, nem acreditei, pois o havia visto ao vivo no domingo passado, com o Shaman e o Avantasia, duas de minhas bandas preferidas. Ao todo, pessoalmente, pude assistir aos seus shows cinco vezes: duas em carreira solo, duas com o Shaman e uma com o Viper. Três dessas (inclusive a última, há seis dias), aliás, presenciei sozinho, sem companhia de amigos, tamanha admiração, vontade e gosto que tenho por sua obra.
Conheci o seu trabalho quando eu ainda estava descobrindo o Metal, em 2009, gênero que viria a se tornar o meu preferido, e desde então passei a ouvi-lo diariamente, seja com o Viper, o Angra, o Shaman, o Virgo, a carreira solo, o Symfonia, o Avantasia ou outros projetos, nacionais e internacionais.
A primeira letra de música em inglês que decorei foi "Time", do Angra, e é com um trecho dela que encerro esta mísera publicação, posto que as palavras de suas letras, aliadas ao som que o Mestre, o Maestro do Metal, ajudou a criar, ao contrário do que escrevo, continuarão a ser lidas, ouvidas e cantadas: "Life makes us feel the time we cannot hold / Time makes us live a tale already told".
Sim, a vida nos faz sentir o tempo que não conseguimos segurar, tempo que, por sua vez, nos faz viver um conto já contado. Não dará mais para ver o ídolo ao vivo, mas eu continuarei a apreciar e a recomendar a sua obra a todos, ao mesmo tempo em que contarei e recontarei as minhas boas experiências a quem estiver disposto.

R.I.P.


domingo, 19 de maio de 2019

Voltas e idas


“Aniversário”, etimologicamente, “Aquilo que volta todos os anos”. Por isso, cá estou escrevendo mais um texto sobre esta data que não pode passar batida, na verdade, como nenhum outro momento do dia, da semana, do mês, da vida, pois, como escreveu Marina Colasanti: “Sou meio impaciente / a vida é um prato / que se come quente.” (2013, n.p.). Não se pode deixar esfriar o momento.

Leio, utilizo e tento escrever poesia (às vezes, em prosa...), portanto, para não deixar não só a data, mas a minha existência passar em branco, pois “Não morre aquele / que deixou na terra / a melodia do seu cântico / na música de seus versos.” (CORALINA, 2008, p. 239); versos de uma arte que, muitas vezes, “nem mesmo / codifica a luz do dia, / mas que a alma intensifica, / já que a vida é passageira, / mas a poesia fica!” (FRANCO, 2017, p. 46).

Não gosto nem desejo frios parabéns de desconhecidos ausentes-presentes, artifícios de pessoas de relações super e artificiais. Carlos Drummond de Andrade tem um poema chamado “Idade madura”, penso não estar nela ainda — e talvez nunca estarei —, mas concordo que “Já não quero palavras / nem delas careço.” (2010, p. 39). Quero criar realidades e gravar memórias que viverão para sempre: “eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo / mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata (DRUMMOND, 2010, p. 301).

Para isso, não é preciso esperar pelo aniversário; e nesse, como já disse em outras oportunidades, todavia não com estas próximas palavras, é necessário que se “Vença o ideal de andar caminhos planos” (MORAES, 2009, p. 271). Sim, a vida não é plana, está “sempre dividida / Entre compensações e desenganos.” (idem, ibidem), o que não é perfeito, claro, posto que perfeito, até pela origem da palavra, significa algo “feito completamente”, efeito que não se aplica ao ser-humano, que está sempre em construção, desconstrução, reconstrução etc.

Daqui a um tempo, desconstruído e reconstruído de novo, quero acreditar que meu eu do amanhã conversará com meus outros eus sobre o nosso futuro presente e juntos possivelmente pensaremos: “Velho, saca só esse moleque! / Fazendo seu caminho pelo mundo / Cada vez que volta / Tá cada vez mais longe / Cada vez mais.” (GESSINGER, 2013). Quem sabe. Espero. Tentarei.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. 65. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.

COLASANTI, Marina; GRILO, Rubem. Classificados e nem tanto. 5. ed. Rio de Janeiro: Galerinha Record, 2013.

CORALINA, Cora. Melhores poemas. 3. ed. São Paulo: Global, 2008. (Coleção Melhores Poemas)

FRANCO, Paulo. A Rua dos Dias. São Paulo: Scortecci, 2017.

GESSINGER, Humberto. Segura a onda, DG. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=7rHPkSmNiwo>. Acesso em: 18 maio. 2019.

MORAES, Vinicius de. Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Breve comentário sobre Otelo, o Mouro de Veneza


Shakespeare viveu no período do Classicismo, uma época em que os artistas buscavam inspiração nos elementos da mitologia greco-romana. Este fato aconteceu por os textos clássicos terem sido publicados em maior escala, por causa da invenção da imprensa, e os pensadores quererem novos ares, até pelo momento de descobrimento de novas terras, povos e culturas, com as navegações.

Sobre os gregos, como se sabe, eles buscavam o ideal, a perfeição, o culto à forma, a padronização, o belo e a racionalização. O teatro era dividido em dois grandes gêneros: Tragédia e Comédia. Otelo (2014) é uma tragédia (final triste que consagra o herói) que possui todos esses tópicos.

A peça se passa, na maior parte do tempo, nas ruas de Veneza (cidade italiana) e em um único momento, num porto de Chipre (ilha do mar Mediterrâneo). A obra narra a história de Otelo, um mouro a serviço de Veneza, um dos homens mais respeitados do exército, e sua esposa Desdêmona, filha de Brabâncio, que é um senador veneziano.

Dentre os servos de Otelo há Iago, um homem cruel, mentiroso, ganancioso e inteligente, mas que usa sua esperteza para o mal. É bom lembrar que a racionalização é um dos elementos valorizados pelos gregos, logo, pelos classicistas. Ao ver que o posto que queria tomar foi assumido por Cássio, que é outro servo de Otelo, Iago deseja se vingar de todos: de Cássio, por ter conseguido o cargo que ele queria; de Otelo, por ser negro, estrangeiro, casado com uma das mais belas mulheres locais e por desconfiar de que o mouro tenha dormido com sua esposa,  Emília; e de Desdêmona, por deseja-la e ela ter aceitado se casar com Otelo.

Utilizando-se de toda sua capacidade argumentativa e persuasiva, Iago engana todos, fazendo com que Otelo despeça Cássio de seu cargo (por causa de uma briga arranjada com outro servo de Iago); depois, faz com que Otelo desconfie de que Cássio possua um relacionamento extraconjugal com sua mulher, Desdêmona. E após mais armações de Iago, Otelo termina louco de ciúme e mata sua própria esposa.

A obra é dividida em cinco atos e quinze cenas. Nela, são apresentadas algumas formas de preconceito, uma crise política e visões (algumas, distorcidas) sobre honra, traição e amor.

Sobre o preconceito presente na peça, é possível destacar o racial, o religioso e o xenofóbico. Como se sabe, a Inglaterra é uma ilha, portanto, um lugar isolado dos outros países europeus. Isso é refletido na sua literatura, na qual, muitas vezes, quando aparece algum estrangeiro, é observado com maus olhos e desconfiança. É o caso de Otelo, que não é bem visto por Iago e outros personagens, por ter vindo de fora (a raiva de Iago por Cássio também é justificada com esse argumento: Cássio subiu de cargo e era florentino, enquanto ele, veneziano, continuou no que estava).

O preconceito racial, por sua vez, é presente em quase toda a obra. É fácil encontrar trechos em que outros personagens zombam de Otelo por causa de sua cor, mesmo que ele seja de uma classe superior: “Iago – (...) Neste momento, um carneiro velho e preto está cobrindo sua ovelhinha branca.” (p. 23). Nota-se, nesse trecho e em vários outros, a comparação de Otelo aos animais. Quando Iago profere essas frases de cunho erótico, essa analogia é frequente.

O preconceito religioso também é percebido nas falas de Otelo: “(...) eu agarrei o cão peçonhento circuncidado pelo pescoço e o apunhalei assim” (p. 191). A circuncisão é uma operação que retira parte do prepúcio do corpo masculino. Esse tipo de cirurgia é feito pelos judeus para serem confirmados na religião. No Novo e no Velho Testamentos, sempre que é usado o termo “circuncidado”, faz-se referência aos judeus. Há outros momentos em Otelo nos quais Iago faz comparações do cristianismo com outras religiões, sempre rebaixando-as. Dialeticamente, por ser escrita no período do Classicismo, há várias expressões exaltando alguns deuses mitológicos ao mesmo tempo em que o Deus cristão é citado.

No campo social, a peça demonstra haver certa instabilidade e crise política no país. Em um trecho, Brabâncio (pai de Desdêmona) xinga Iago de “canalha”, ao que este devolve, ironizando, chamando-o de “senador”: “Brabâncio – Você é um canalha. / Iago – E você um senador!” (p. 17). Além disso, há conversas de alguns personagens sobre uma guerra e ameaça do Império Otomano.

Ademais, a obra demonstra algumas questões sobre amor e traição: o que é o amor? Do que ele é capaz? Quando o sentimento deixa de ser amor e torna-se ciúme? Até que ponto o ciúme (representado por Otelo) pode chegar? Qual o preço por uma traição?

Claro que são perguntas subjetivas, mas na obra elas possuem muito peso, chegando ao ponto de haver mortes (de inocentes!), segundo alguns personagens, “por uma questão de honra”, que na verdade é vista através de uma concepção patriarcal, a qual o homem sempre manda na família e na mulher.

As mulheres, por sua vez, nem podiam encenar na época de Shakespeare, então, eram representadas por homens vestidos como mulheres. Na obra, há três personagens femininas: Desdêmona (que representa a mulher ideal — para os padrões gregos), Emília (mulher de Iago) e Bianca (uma prostituta). Cada uma representa uma classe social diferente, respectivamente: aristocracia, "classe média" e baixa. Embora sejam de camadas sociais distintas, todas são submissas aos seus maridos (no caso de Bianca, ao seu amante Cássio).

Em suma, Otelo continua sendo uma história atual neste mundo violento, ciumento, ganancioso, preconceituoso, racista e ainda machista. Os temas discutidos por Shakespeare são universais, por isso é um autor que está sempre em voga.

REFERÊNCIAS

SHAKESPEARE, William. A tragédia de Otelo: o Mouro de Veneza. Tradução de Marilise Rezende Bertin. São Paulo: Matin Claret, 2014. (Coleção A obra-prima de cada autor, v. 123).

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Presidente, o jogo


Os jogos podem refletir a nossa realidade ou as nossas vontades; o xadrez, por exemplo, demonstra um pouco de como era a Idade Média e suas hierarquias, com torres de castelos, cavalos e bispos; a limitação dos peões, trabalhadores comuns, que estão sempre à frente das outras peças, prontos para serem sacrificados, e que só podem andar uma casa por vez, somente para frente ou, em caso único de captura de outras peças, em diagonal; a liberdade de movimentação da rainha e toda a estratégia para defender o rei etc. Desconfio até da ordem de jogada no início da partida (embora isso não seja uma real desvantagem, dependendo do jogador): primeiro, as brancas; por último, as pretas. Tudo é simbólico.

Mais moderno, geralmente jogado por crianças (criado talvez para incentivá-las a esse contexto), é o Banco Imobiliário, fruto e reflexão de uma realidade não mais medieval, mas capitalista, burguesa. O nome do jogo em inglês mostra bem o seu objetivo: Monopoly. Significativo.

Desconhecido, há um jogo de baralho chamado “Presidente”. Descobri-o em 2007, através de um amigo que, por sua vez, aprendeu-o com os colegas da irmã mais velha, o que revela certa idade de existência da brincadeira. As regras são simples:

- Todas as cartas do baralho devem ser distribuídas entre os jogadores.
- O objetivo é acabar com as cartas que estão na mão;
- A ordem é: 3 é mais fraco que o 4, que é inferior ao 5, que perde para o 6, que é derrotado pelo 7, que é vencido pelo 8, que é batido pelo 9 etc. Em resumo, a carta mais forte é o 2, enquanto a mais fraca é o 3.
- Se alguém jogar um par, um trio ou um conjunto maior de cartas iguais (cinco oitos, por exemplo) na rodada, só pode ser vencido por outro jogador que lançar a mesma quantidade de cartas de valor maior do que o já posto na mesa (por exemplo, cinco damas).
- Se ninguém conseguir superar a jogada, quem a fez, isto é, o último a jogar, iniciará uma nova rodada.
Por fim, os títulos simbólicos:
- Quem acabar primeiro com as cartas que tem na mão vira o Presidente;
- O segundo a terminar as suas cartas torna-se o Vice-Presidente;
- O terceiro é chamado de Nada.
- O penúltimo a finalizar suas cartas é o Vice-Cu.
- O último, o maior perdedor, é o Cu.
- Quanto mais jogadores existirem, mais Nadas existirão.

Postos os cargos de cada um, na próxima rodada, começa a violência simbólica da vida real dentro do jogo. O Presidente, por exemplo, deve receber as duas melhores cartas do Cu, que, por sua vez, recebe as duas piores cartas do Presidente. Ora, isto nada mais é do que recolhimento de impostos em troca dos piores serviços. Além disso, o Presidente é o primeiro a jogar, descartando as suas piores cartas. Quando a rodada chega ao Cu, o valor já está muito alto, quase impossibilitando o coitado de jogar, já que ele perdeu suas duas melhores cartas antes do início da partida como tributo ao Presidente.

Os Vices, tanto o Vice-Presidente quanto o Vice-Cu, também fazem trocas, mas de apenas uma carta. O primeiro dá a sua pior ao segundo, que lhe dá sua melhor. Novamente, impostos, mas em escala menor.

Os Nadas são a representação da verdadeira elite brasileira. Engana-se quem pensa que quem mandam são os políticos. Não, não. Os Nadas são os burgueses, que não pagam impostos para ninguém, que “estão fora” do sistema, que não têm responsabilidade a cumprir, que podem trocar quantas cartas quiserem entre si, coisa que nenhuma outra posição pode fazer, possuindo, assim, os melhores combos, e que ainda possuem esse nome, “Nada”, como se fossem neutros na partida.

Tudo isso acaba criando um determinismo, também existente na sociedade, que desmistifica a ideia de meritocracia: é muito difícil um Cu, que joga por último (quando tem poder aquisitivo para jogar!), que recebe as duas piores cartas do Presidente, que dá as suas duas melhores ao Chefe do Executivo, subir de posição.

Além desta perpetuação de classes, há um outro elemento que é uma herança na vida do brasileiro: o preconceito, a discriminação a quem tem menos poder. Nesse jogo, todo mundo, expondo os seus anseios que não podem ser realizados no cotidiano, humilha o Cu: xinga-o quando ele demora para entregar as cartas; joga-as ao chão e manda o pobre pegá-las (arrumar tudo é dever dele); faz piadinhas sobre sujeira etc.

Em suma, Presidente é psicologicamente e simbolicamente violentíssimo. Seu inventor é alguém notável! Como todo jogo, ele revela vontades, realidades e problemas sociais. No Brasil, hierarquia política, “toma lá, dá cá”, preconceito e determinismo são coisas comuns; todavia, diz-se também que Deus é brasileiro, então, milagres surgem às vezes. É por isso que pode acontecer que alguém seja Presidente por quatro ou oito anos/rodadas e, por diversos motivos, no outro dia/na outra rodada, vire cu; enquanto alguém que a vida toda foi um cu pode tornar-se Presidente, apesar de, no fundo, continuar sendo um cu que só fala e faz merda. Há sempre os seus cegos seguidores, geralmente cus (a identidade é um conceito interessante), que adoram dizer: “Não ligue. Por favor, inicie o jogo, Presidente...” ou “Nossa, senhor Presidente! Vai deixar passar essa?”.