Brevíssima introdução
O gênero, a
Literatura comparada e os escritores: Orígenes Lessa e Luiz Vilela
O conto é um dos
gêneros literários mais populares da contemporaneidade, por sua brevidade,
“objetividade” (no sentido de ir direto ao ponto, sem enrolações que há, por
exemplo, num romance), conflitos, imediata compreensão dos fatos (sem muito aprofundamento no passado) pelos leitores e por sua verossimilhança
com a vida.
As principais
características do conto são a pequena quantidade de personagens, a presença de
diálogos, a cronologia do tempo/dos eventos e, principalmente, uma única célula
dramática (clímax), sempre ao final. No conto, a narrativa, a dissertação, a
descrição e o tempo psicológico são menos presentes.
A Literatura
Comparada é um campo de pesquisa que busca, por semelhanças ou diferenças,
através da interdisciplinaridade e intertextualidade, analisar duas ou mais
obras, sendo elas do mesmo gênero textual ou não. Neste trabalho, procurar-se-á, brevemente, observar como dois autores, de tempos diferentes, lidam com o tema da solidão.
Curiosamente, há algumas semelhanças nas duas histórias selecionadas, A
aranha, de Orígenes Lessa, e Zoiuda, de Luiz Vilela.
Orígenes Lessa foi um
contista, romancista, novelista, ensaísta e jornalista brasileiro. O autor, que
começou sua carreira literária em 1929, entrou para a Academia Brasileira de
Letras em 1981. O conto A aranha, que será analisado, está presente na
antologia Para gostar de ler – Volume 10 - Contos (1991), que
reúne diversos contistas, de diferentes períodos literários.
Luiz Vilela é um
contista, romancista e novelista brasileiro. O conto Zoiuda, que será
explorado, faz parte do livro Você verá (2013). O escritor
iniciou sua vida literária com o livro Tremor de terra, em 1967,
aos 24 anos, o que já lhe rendeu o Prêmio Nacional de Ficção.
É preciso ressaltar, também, que este texto analisará os dois contos apenas sob a ótica de um tema, o que é muito pouco para qualquer obra literária, que é, por natureza, plurissignificativa.
Análise do
conto A aranha, de Orígenes Lessa
A aranha é um conto de Orígenes Lessa, presente na
coleção “Para gostar de ler – volume 10 – contos” (1991). A história
constrói-se em duas camadas: no presente, num corredor de um prédio, através de
diálogos nos quais o narrador-personagem ouve, de forma indesejada, um evento
que aconteceu num sítio, no passado, com o amigo de um dos personagens
presentes no corredor, que narra o acontecido durante seus turnos da conversa.
De qualquer forma,
ambas as “camadas” do conto passam-se em espaços fechados (o corredor e o
sítio), ambas as narrações seguem o tempo cronológico (linear), e o foco
narrativo, interessantemente, oscila entre a primeira e a terceira pessoa:
há um personagem-narrador, mas este apenas ouve a história de um
segundo, onde o protagonista é um terceiro...
A complexidade do
conto já começa nas primeiras linhas:
— Quer assunto para um conto? — perguntou o Enéias,
cercando-me no corredor.
Sorri.
— Não, obrigado.
— Mas é assunto ótimo, verdadeiro, vivido,
acontecido, interessantíssimo!
— Não, não é preciso... Fica para outra vez...
— Você está com pressa?
— Muita!
— Bem, de outra vez será. Dá um conto estupendo. E
com esta vantagem: aconteceu... É só florear um pouco. (LESSA, 1991, p. 16)
A história é iniciada
com a oferta de outra história, que será contada logo depois. Também já é
demonstrado que o protagonista-narrador não quer dialogar, não quer companhia,
o que está relacionado à narrativa do amigo.
É importante notar essa valoração do fato, da não-ficção, como se a literatura fosse uma mentira e, por isso, algo de menos valor, quando, na verdade, ela é baseada na realidade e, às vezes, por “distorcê-la” tanto, ajuda o leitor a perceber melhor o seu próprio meio. Ao mesmo tempo, a valoração do amigo pelo fato justifica a narração ser em terceira pessoa, porque ela dá um caráter objetivo à história, embora, como se pode notar, esse amigo utiliza muitos adjetivos (ótimo, verdadeiro, vivido, acontecido, interessantíssimo, estupendo), o que não é aconselhável para textos impessoais...
É importante notar essa valoração do fato, da não-ficção, como se a literatura fosse uma mentira e, por isso, algo de menos valor, quando, na verdade, ela é baseada na realidade e, às vezes, por “distorcê-la” tanto, ajuda o leitor a perceber melhor o seu próprio meio. Ao mesmo tempo, a valoração do amigo pelo fato justifica a narração ser em terceira pessoa, porque ela dá um caráter objetivo à história, embora, como se pode notar, esse amigo utiliza muitos adjetivos (ótimo, verdadeiro, vivido, acontecido, interessantíssimo, estupendo), o que não é aconselhável para textos impessoais...
Pois bem, o amigo do
narrador conta um caso acontecido com um de seus conhecidos, o Melo, que morava
numa enorme fazenda e “Passava lá enormes temporadas, sozinho, num casarão
desolador (...) um verdadeiro deserto” (idem, ibidem, p. 18). Esse colega adorava tocar violão, principalmente músicas tristes como “A madrugada que
passou” e “O luar do sertão”. Como se vê, canções relacionadas ao escuro, à
noite, que trazem a ideia de subjetividade e demonstram a personalidade do personagem.
Outra obra que o
rapaz gostava de executar era “A tarantela”, de Listz, o que já indica e cria a
“rima” para o que virá a seguir no conto: o aparecimento de uma aranha
caranguejeira. Sempre que o Melo tocava violão, a aranha aparecia; quando
parava, ia embora, se escondia, impossibilitando, então, a sua morte, e
criando, desta forma, uma espécie de companhia para o artista.
Essas intermitências
da aranha continuaram por dias e também formam outra coerência na narrativa:
enquanto, no passado, no interior de um sítio, um animal fugia, ia e vinha, no
presente, no corredor de um prédio, o narrador-personagem quer entrar no
elevador, que sobe e desce a todo momento, mas sempre lotado, impossibilitando
a sua “fuga” dos amigos.
No outro dia, Melo
“estava ocupadíssimo com a colheita. Só à noite voltaria para o casarão da
fazenda. Teve que almoçar com os colonos, no cafezal. Andou a cavalo o dia
inteiro. E sempre pensando na aranha” (idem, ibidem, p. 20). À noite
Queria saber se “ela” voltava. Começou a tocar como
quem se apresenta em público pela primeira vez. Coração batendo. Tocou. O olho
na fresta. Qual não foi a alegria dele quando, quinze ou vinte minutos depois,
como um viajante que avista terra, depois de uma longa viagem, percebeu que era
ela... o pernão cabeludo, o vulto escuro no canto mal iluminado. (idem, ibidem,
p. 20)
Nesses trechos, percebe-se
o tamanho da solidão do personagem que, mesmo envolto de pessoas durante o
trabalho, só pensava na aranha. O Melo chegou até a colocar um nome (que o
narrador não lembra) no animal, e “desde então, não sentiu mais a solidão
incrível da fazenda” (idem, ibidem, p. 21).
O personagem contou o
caso para outras pessoas, que vieram ver “a aranha amiga da música. Todas as
noites era aquela romaria. Amigos, empregados, o administrador, gente da
cidade, todos queriam conhecer a cabeluda fã de O luar do sertão e
de outras modinhas.” (idem, ibidem, p. 21). É preciso se atentar ao fato de que
todos iam ver a aranha, não o Melo, nem ouvir a sua música. Se, por um lado, o
tocador “humanizou” um animal através da arte, por outro, isso é resultado da
“desumanização” que os semelhantes fizeram com ele, ao não lhe darem atenção.
Tal como as modinhas, que passam, o interesse pelas pessoas pela aranha
desapareceu, mas o sentimento de Melo por ela continuou o mesmo, na verdade,
ficou até maior.
Todavia, contraditórios
como os seres-humanos são, assim que o tocador recebeu uma visita de uma pessoa
diferente, cheia de novidades, esqueceu-se da amiga aracnídea e tocou seu
violão, a música preferida da aranha, que apareceu em poucos instantes. Sem ser
avisado do comportamento da amiga admiradora de melodias, o visitante matou-a
sem hesitar, para a tristeza do Melo. Clímax do conto, chega o elevador para o
narrador, fim da história.
O final sombrio já é
esperado ao leitor que se atenta para a quantidade de palavras relacionadas à
noite e ao escuro, além do rompimento na vida do protagonista, que começa
triste, passa a ser feliz e, como o gênero conto pede o drama e a situação
inesperada, isto é, abrupta, sempre ao final, haveria de acontecer algo que
rompesse o encanto. No outro âmbito, no presente, no corredor do prédio, depois
de tantas vezes em que o elevador chegou lotado, logo após a narrativa do amigo
acabar, o elevador surgiu vazio, finalizando, coerentemente, os acontecimentos
passados e presentes.
Análise do conto Zoiuda,
de Luiz Vilela
Zoiuda é um conto de Luiz Vilela, presente no
livro Você verá (2014). A história ocorre em espaços fechados:
num bar, numa escola e num apartamento (a maior parte da narrativa acontece
aqui); o tempo é cronológico, linear; o foco da narrativa é em terceira pessoa,
um narrador conta a história de um professor que se apega a uma lagartixa.
Um dia, numa
sexta-feira, após voltar do bar (e isso é muito significativo), um professor
depara-se com uma lagartixa; após um observar o outro por algum tempo, o homem
foi dormir.
Como a ida ao bar
havia apontado, o professor não tem uma vida muito interessante, pois “Na noite
seguinte — de novo o bar, de novo as conversas e as bebidas, conversas e
bebidas que só serviam para matar o tempo e para matar dentro dele alguma coisa
que ele não sabia bem o que era, mas que sabia ser essencial” (VILELA, 2014, p.
8). Além disso, o caráter repetitivo da existência do personagem é refletido na
própria linguagem do narrador, que reforça as palavras “de novo”, “conversas e
bebidas” e “matar”. Essa característica da narrativa é reutilizada em outros
trechos do conto.
O protagonista, que
não tem nome — o que pode sugerir que seja qualquer pessoa —, observa a
lagartixa e nomeia-a, isto é, humaniza-a (nas palavras do narrador:
“batizando-a”): Zoiuda. Ela tem nome, ele não; é como se ela fosse mais
importante do que ele. De qualquer forma, o animal torna-se muito significativo para o personagem, como pode ser observado na passagem:
Na terceira noite, domingo — o mesmo bar e os
mesmos amigos e as mesmas conversas e bebidas — ele, num momento de quase
convulsivo tédio (“isso mesmo”, se diria depois, “convulsivo tédio”),
lembrou-se da Zoiuda, isolando-se por alguns minutos do ambiente ao redor, um
leve sorriso lhe aflorando aos lábios. (idem, ibidem, p. 8).
Mesmo fora de casa,
mesmo rodeado de amigos, o homem distrai-se e sorri ao lembrar da lagartixa.
Ela é motivo de um sorriso, algo que, em momento algum, antes ou depois, é
causado ou observado no protagonista. Ao chegar em casa e chamar pelo animal, a companheira não apareceu.
“Não estava. Ficou meio decepcionado. Tinha certeza de que...” (idem, ibidem,
p. 9). Qual é o tamanho da solidão deste homem?
É importante
ressaltar que esse personagem “dava aulas de português para um bando de
adolescentes desinteressados e distraídos” (idem, ibidem, p. 9), ou seja, é um
professor, alguém relacionado à comunicação humana, à língua, mas, ao contrário
do que se espera, as pessoas ao seu redor não querem e nem estão abertas ao
diálogo.
Ao contar para os
colegas docentes que apareceu uma lagartixa na sua casa (um fato corriqueiro,
banal), ouviu o relato de um que, desde que aprendeu um veneno, na sua casa
“não ficou uma, nem uma só pra contar a história” (idem, ibidem, p. 9); a outra
professora tem pavor; então o protagonista achou e disse que era meio maluco,
“mas nenhum dos dois estava mais prestando atenção a ele” (idem, ibidem, p.
10).
É o retrato de uma
vida medíocre, abandonada, vazia. O personagem sabe disso, pois “À noite,
naquela plena segunda-feira, ele não saiu, substituindo o bar pela TV — a
mesmice pela idiotice, pensou” (idem, ibidem, p. 10). O homem não tem a atenção
dos alunos, na escola; dos colegas docentes, na sala dos professores; nem dos
amigos, no bar (que já é um lugar de “fuga” da realidade sem graça).
Não é à toa que o
narrador compara o protagonista a uma criança: "‘Zoiuda!’, exclamou, com a
alegria de um menino; ‘você está aí!...’" (idem, ibidem, p. 11). O que o
personagem deseja é amparo. Esse encontro dos dois ocorreu quando o professor
foi beber água, da mesma forma que aconteceu pela primeira vez, na sexta, à
noite. A água, não se pode esquecer, é fonte de vida; o homem, ao buscá-la,
sacia a sede física, mas a metafórica, a sede de companhia, também é satisfeita
com a presença da lagartixa. A única coisa que o personagem quer é
reciprocidade, como se observa neste trecho: “lá dentro, àquela hora, o
minúsculo coração também estaria batendo um pouquinho mais forte?...” (idem,
ibidem, p. 10).
Mais à frente, é explicitado:
“Zoiuda, tirando minha mãe, você é a única criatura
que eu amo hoje no mundo” — Zoiuda passou a ser para ele uma... uma espécie de
companhia. Afinal, num apartamento onde havia somente ele de gente e onde, por
dificuldade em criá-los, não havia cachorro, gato ou passarinho, ela era uma
presença, um ser vivo, a quem ele podia dirigir a palavra, embora não houvesse
resposta — mas para que resposta? Não queria resposta, queria apenas falar;
apenas isso.
“Né, Zoiuda?” (idem, ibidem, p. 11)
No trecho
supracitado, confirma-se o motivo do narrador ter comparado o professor a um
menino: a lagartixa é uma segunda mãe para ele. E como não
poderia deixar de ser, por se tratar de um conto, onde o clímax está sempre no
final, aliado às noites da história, o corte inesperado acontece:
a Zoiuda some e o protagonista volta a sofrer, “— tinha de admitir — que aquele
apartamento ficara um pouco mais vazio e aqueles fins de noite mais tristes.”
(idem, ibidem, p. 11). Triste, mas coeso e bem construído.
Relação entre os
textos e conclusão
Há diversas
semelhanças entre os textos escolhidos: ambos fazem parte do gênero “conto”,
foram escritos por brasileiros, possuem pequenos animais, têm seus
acontecimentos mais significantes à noite e tratam da solidão de homens.
O primeiro, A
aranha (1991), de Orígenes Lessa, apresenta a história de um tocador
de violão que, um dia, de repente, encontrou uma aranha no interior de seu
enorme sítio. O bicho, primeiramente, causou medo ao personagem, mas depois se
tornou uma companhia.
O segundo, Zoiuda (2014),
de Luiz Vilela, é o caso de um professor de português que, numa noite, ao
voltar do bar, depara-se com uma lagartixa que, com o passar dos dias, torna-se
uma espécie de companheira, de ouvinte.
Ambos os contos
retratam a solidão: os dois protagonistas, indiferentemente de seus meios, seja
um sítio ou um apartamento, mesmo rodeados de pessoas, tanto no trabalho quanto
nas horas de lazer, sentem-se sozinhos e preferem a companhia de pequenos
animais, uma aranha e uma lagartixa, bichos que causam medo na maioria das
pessoas com quem dialogam.
Além disso, ambos os
personagens principais estão ligados, mais do que outros indivíduos, à
linguagem, por um ser professor e o outro, um músico, porém, os dois têm
dificuldades em dialogar com as pessoas ao seu redor. Mais ainda: os
protagonistas apenas querem ser ouvidos. Essa é a angústia dos contos e um
apontamento em comum nas duas histórias: é preciso dar mais atenção aos
semelhantes. Talvez, o tocador e o professor só “humanizaram” os animais,
porque, em diversos momentos, foram "desumanizados". Tal como os personagens, é
necessário abrir os olhos para as pequenas criaturas.
REFERÊNCIAS
LESSA, Orígenes. A
aranha. In: Para gostar de ler: volume 10 – contos. 6 ed. São
Paulo: Ática, 1991.
VILELA, Luiz. Zoiuda.
In: Você verá. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.
Para quem se interessar e não achar os contos citados, eu posso escaneá-los e enviar por e-mail.
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