terça-feira, 19 de maio de 2020

Crônica anual


Acordei e senti meu corpo normalmente: sem dores e com a preguiça comum do dia-a-dia. Abri a janela e vi o céu: nada de extraordinário também. Hoje, meu aniversário, e como (d)escreveu o mestre Ferreira Gullar sobre a nossa galáxia num Réveillon: “nada ali indica / que um ano novo começa” (GULLAR, 2004, p. 190). Claro, afinal, como ele continua: “não começa / nem no céu nem no chão / do planeta: / começa no coração.” (idem, ibidem, p. 190). Parafraseando-o ainda, o ano se inicia com a esperança de dias melhores, sentimento humano (ser que sonha e luta). Bom pensamento para despertar, principalmente nesta época cheia de desafios.

Neste ano, 2020, uma das adversidades de todos é ficar trancado em casa, por causa da pandemia, o que é um problema, inclusive, para que eu escreva este texto, pois para escrever “é preciso ver o mundo. Aos domingos ou nos outros dias. Ir ao cinema, namorar, visitar amigos — essas coisas. Não se arrancam palavras do nada: as palavras brotam de coisas e seres viventes.” (ABREU, 2015, p. 211). Obviamente, quando o Caio Fernando Abreu escreveu essa crônica, em 1987, não havia internet; hoje, pode-se ver filmes, conversar com amigos e até mesmo namorar online. São oportunidades da nossa época.

Como ninguém pode parar no tempo (porque isso é impossível, querendo ou não) e, segundo João Cabral de Melo Neto, de toda a pontuação existente na vida, “o homem só não aceita do homem / que use a só pontuação fatal: que use, na frase que ele vive / o inevitável ponto final” (NETO, 2010, p. 46), posso tentar florescer “em casa”, regado e iluminado pela arte, pelo diálogo, pelo silêncio, pelos estudos e pelas diversas atividades possíveis, mesmo “isolado”, afinal, se não somos mais sementes nem ovos para nascer pela primeira vez (a nós, crescidinhos, “só” nos é permitido renascer), a gente se desenvolve por e para dentro.

Enfim, não saí de casa, mas este texto, que era uma semente até ontem, cresceu e pode vir a ter frutos, tal como o meu antigo eu e o eu de agora, que estamos sonhando e nos preparando para o amanhã, visto que “o futuro se impõe, / o passado não aguenta” (ENGENHEIROS DO HAWAII, 1992), mesmo que o céu não diga nada. Quem diz é meu coração.  

REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. O melhor de Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

ENGENHEIROS DO HAWAII. Pose (Anos 90). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=4Q3R0eaF07k>. Acesso em: 19 de maio. 2020.

GULLAR, Ferreira. Melhores poemas de Ferreira Gullar. 7 ed. São Paulo: Global, 2004.

NETO, João Cabral de Melo. Poemas para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.