sábado, 30 de janeiro de 2016

Resenha da peça teatral "Como gostais", de William Shakespeare

Sobre o autor e contexto

Apresentações sobre a vida e importância das obras de Shakespeare deveriam ser dispensadas, no entanto, há ainda quem o (e as) desconheça, e, por isso, necessite de algumas palavras sobre este grande escritor e seu importante trabalho.

William Shakespeare nasceu — possivelmente — em 1564, na Inglaterra. Ator, escritor, poeta e dramaturgo, foi um dos maiores homens de seu tempo e continua sendo até hoje.

Autor de clássicos universais como Romeu e Julieta, Hamlet, Otelo e Sonho de uma noite de verão, Shakespeare viveu e fez parte do período artístico conhecido como “Classicismo”.

Com o início das grandes navegações, descobrimento de novas culturas e formas de vida, criação da imprensa de Gutenberg, a igreja católica perdeu grande parte de seu poder e deu-se início ao fim do período histórico da Idade Média. É o início da Modernidade.

Com a Modernidade e durante o Classicismo, quase todos os valores são trocados. Agora Deus não é mais o centro do mundo, mas sim o homem; usa-se mais a razão em detrimento da emoção; não se evoca mais as figuras cristãs, mas as pagãs, deuses e divindades da mitologia greco-romana. Busca-se o belo, a perfeição e o culto à forma.

Tudo isso por influência dos pensamentos e obras dos escritores e filósofos clássicos, gregos e romanos, que agora, com a imprensa, passaram a ser (re)publicados e lidos novamente. Este novo culto à Era Clássica chamou-se Classicismo, período que Shakespeare viveu e ajudou a formar.

Sobre a obra

Como gostais é uma peça teatral de Shakespeare, uma comédia romântica (final feliz), encenada pela primeira vez em 1599. Embora não seja tão famosa como as outras obras já citadas do autor, Como gostais não perde em nada para elas, desde a complexidade de situações, personagens cativantes, momentos trágicos e cômicos, clichês e até uma frase marcante.

A peça conta a história de Rosalinda, filha de um duque que perdeu os domínios para o seu irmão, Frederico. Após seu pai ser exilado, ela continua na corte, pois o seu tio, o usurpador, sabe que sua filha, Célia, é muito amiga da prima, e sofreria caso ela saísse.

Dentro da corte há três irmãos, Jaques, Orlando e Oliver. Os três são filhos de Rowland the boys, um “rival/adversário” de Frederico. No entanto, Oliver serve a Frederico e, por inveja, humilha seu irmão mais novo, Orlando.

Orlando é um homem cheio de virtudes, por mais que tentem colocá-lo para baixo, ele supera a situação. Numa dessas situações é quando ele conhece Rosalinda e apaixona-se à primeira vista (eis o clichê).

Mas é o tempo de quando ele é forçado a sair da corte por seu irmão e Rosalinda é forçada a sair pelo seu tio invejoso. Célia decide ir junto da prima e Rosalinda dá a ideia de as duas se disfarçarem: ela (Rosalinda), de homem; e Célia, de camponesa, pois a vida na floresta é perigosa para damas.

A partir daí todo o cenário é dentro da floresta — e ninguém reclama dessa mudança, pois é mais confiável viver entre os animais e perigos da natureza do que entre as brigas e intrigas da corte. O próprio Duque Sênior diz: “(...) os velhos costumes não fazem esta vida mais agradável que aquela de pompas artificiais? Não são estas matas mais livres do perigo que a corte invejosa?” (Duque Sênior, ato II, cena I - p. 44). Shakespeare não temia em criticar a elite de sua época e parte de seu público, além de, com este trecho, já adiantar parte do mito do bom selvagem, do filósofo Rousseau.

É preciso ressaltar que naquela época as mulheres não podiam atuar, então, Célia, Rosalinda e outras personagens femininas eram encenadas por homens vestidos de mulher. O drama e a complexidade aumentam quando Rosalinda, que é um ator vestido de mulher, se finge de homem, Ganimedes, e, para enganar Orlando, pede para que ele (Orlando) imagine que ele (Ganimedes) é uma mulher, a própria Rosalinda. É uma quádrupla mudança de gênero: um homem/ator vestido de mulher que se veste de homem que pede para ser imaginado como mulher. Se hoje ainda há conservadores que não gostam nem aceitam mudanças, imaginemos naquela época.

Nota-se, também, que Rosalinda sabe da sua posição de mulher, mas diferente do que é imposto, é ela quem se impõe ao mundo, pensando racionalmente (característica do Classicismo) para superar as adversidades. Porém, é somente quando ela se veste/disfarça de homem, que é tomada, de fato, a dianteira e todos passaram a obedecê-la. É a constatação do patriarcado na sociedade.

Além do pensamento racional na obra, uma outra característica do Classicismo são as figuras mitológicas. Durante a peça são mencionados muito deuses nas expressões dos personagens, além do próprio deus grego Himeneu, responsável pelos casamentos, que é invocado para casar os vários personagens.

Outro fato interessante na obra é a quantidade de versos/estrofes/cantos. Os versos variam desde redondilhas até versos decassílabos e alexandrinos, mas há versos menores também — todos metrificados, como manda a tradição clássica.

Quanto aos personagens, há muitos clichês: o bom moço (Orlando), a boa moça (Rosalinda), a parente amiga (Célia), o irmão invejoso (Oliver) e o vilão que se arrepende (Frederico). Mas há dois personagens diferenciados e dignos de mais atenção, são eles: Touchstone e Jaques.

O primeiro é o bobo da corte e o segundo é um cavaleiro dotado de sensibilidade e poeticidade. O bobo lembra muito a figura do louco, pois é o único que diz a verdade sem se preocupar com as convenções sociais, mas por ser louco, não é levado a sério pela sociedade e termina sendo excluído (Foucault, 2014). É o mesmo caso do bobo Touchstone, que todos até dizem que é inteligente, mas é um bobo, por isso deve ser desconsiderado, que é um caso de azar o dele.

Touchstone é inteligente e sátiro, há um momento em que Shakespeare se utiliza dele para criticar a nobreza, quando um nobre jura algo por sua honra e o bobo diz que jurar por algo que não se tem é fácil, pois mesmo que não cumpra com a palavra, pelo o que foi jurado, por não o ter, não está quebrando a promessa. Ao ser repreendido, ele mesmo diz: “É uma pena, então, que aos bobos não seja permitido falar de modo sábio aquilo que os sábios fazem de modo bobo” (Touchstone, I, II – p. 30).

Já o cavaleiro Jaques é o dono da frase mais famosa da obra: “O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores. Eles saem de cena e entram em cena, e cada homem a seu tempo representa muitos papéis (...)” (Jaques, II, VII – p. 62). Frase que faz alusão à vida dos atores e aos seres humanos em geral, no teatro que é a vida. Este trecho, se completo, por si só já vale um texto.

Este cavaleiro é moldado ao estilo poeta, contemplador da vida e da natureza, da alegria e da tristeza. Aliás, percebem-se em algumas passagens, frases que lembram poemas de outros poetas que vieram muito tempo depois. No caso, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade são alguns deles.

Quando Sílvio diz que gosta de Febe; Febe, de Ganimedes (que é a Rosalinda disfarçada); Orlando, de Rosalinda; e Rosalinda disfarçada de Ganimedes diz não gostar de ninguém, é impossível não nos lembrar do poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.

E quando o bobo diz que “(...) a verdadeira poeticidade é a mais fingida (...)” (Touchstone, III, III – p. 83), Shakespeare antecede parte do poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa.

Por Shakespeare ser poeta, além dos cantos, algumas falas são compostas por jogos de palavras. Por exemplo: “(...) aí temos a Fortuna sendo muito dura com a Natureza quando a Fortuna faz o que é natural na Natureza dar cabo de uma conversa naturalmente inteligente” (Rosalinda, I, II – p. 28) — percebamos, também, o uso de divindades mitológicas e das letras maiúsculas usadas, característica do Classicismo para designar a representação perfeita e absoluta do que está sendo mostrado.

Ou ainda: “(...) Ou com uma espada vil e violenta leve a vida (...)” (Orlando, II, III – p. 48) — vejamos a aliteração em [V] — e na mesma página: “(...) estive a serviço do senhor seu pai (...)” (Adam, II, III – p. 48), utilizando-se de uma aliteração em [S]. Até o bobo Touchstone usa uma linguagem bonita e poética: “(...) Na verdade, eu queria muito que os deuses tivessem te criado criatura criativa, com poeticidade” (Touchstone, III, III – p. 83).

Como sabemos, nenhum período desaparece por completo; então, mesmo no Classicismo, ainda há elementos medievais. Em Como gostais, ao mesmo tempo em que há menções aos deuses mitológicos, há expressões e referências a Deus — e aos ensinamentos cristãos também, como por exemplo, quando Rosalinda diz que o mundo possui somente 6000 anos.

Em suma, se o mundo atual sempre traz elementos das épocas passadas, um dos motivos é por conta de obras semelhantes a Como gostais, que até hoje continua atual. Até hoje há brigas pelo poder; até hoje é necessário relacionar-se com o outro; até hoje reina o patriarcado na sociedade; até hoje (hoje mais do que nunca) precisamos da poesia; e até hoje somos atores e atrizes presos ao nosso papel, que não sabemos quem  criou nem quando terminará, e, assim, atuando, não sabemos nem quem somos.

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é estudante do curso de Letras, em IESA, Santo André – SP.

Referências

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 2014.

SHAKESPEARE, William. Como gostais. São Paulo: L&PM POCKET, 2013.