sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Resenha do livro "Ameaça de 7 cabeças", de Pedro Bandeira

BANDEIRA, Pedro. Ameaça de 7 cabeças. 8 ed. São Paulo: Moderna, 1985. Coleção Veredas.

Ameaça de 7 cabeças (1985) é um livro do renomado escritor Pedro Bandeira, autor de clássicas obras da literatura infantil e infanto-juvenil nacional. Escrito em 1985, último ano da ditadura militar brasileira, a obra é uma sátira desse período negro e conturbado do país.

A história acontece numa cidade chamada Findomundo, um local pacífico, onde as pessoas escolhiam quem exercia muitas funções de sua sociedade, aparentemente, satiricamente, aristocrática: “o povo votava para rei, para príncipe, para princesa, para rainha, para ministro, para deputado, para marquês e até para técnico da seleção findomundense de futebol” (BANDEIRA, 1985, p. 5). Claramente, o oposto do que acontecia de fato no Brasil, na época; ao mesmo tempo, uma vontade do que deveria acontecer, uma espécie de democracia — que no livro é absurdamente exagerada, para efeito cômico.

O nome do rei eleito era Kakéticus I, um ex-sapateiro caquético (talvez para ironizar que o sistema vigente, tanto na obra quanto no Brasil, já estava ultrapassado, desgastado). O rei era uma pessoa justa, só reinava “respeitando as leis que os deputados aprovavam. Os deputados também eram eleitos pelo povo, e ninguém se queixava das leis, porque elas eram do jeitinho que todo mundo queria” (idem, ibidem, p. 6). O trecho nem precisa de explicação.

Todavia, é preciso ressaltar que não se podia votar para todas as funções e empregos do Findomundo, apenas

(...) para cargos que não exigiam especialização, como rei, primeiro-ministro e porteiro de teatro. Os trabalhos importantes, como de sapateiro, bailarina, professor e palhaço, eram feitos por quem tinha jeito para a coisa. Todo mundo sabe que qualquer palhaço pode ser ministro da Fazenda, mas não é qualquer ministro que consegue ser um bom palhaço. (idem, ibidem, p. 6).

Trecho bem atual, pois até hoje a política brasileira recebe palhaços, ex-jogadores de futebol e outras pessoas que não entendem muito de política, mas que foram escolhidos pelo povo para representá-lo.

Quem narra a história é um cidadão comum, um vendedor de bolhas de sabão, parceiro de um poeta, Simão, que também tenta comercializar os seus textos. Ambos não vendem nada. É interessante esta observação do narrador: “Todos gostavam de ouvir Simão declamar seus versos, mas ninguém comprava nenhum” (idem, ibidem, p. 8). O trecho demonstra a desvalorização pelos artistas, pela arte, logo, pela própria cultura. Uma realidade existente até hoje.

Tudo ia bem, até que, um dia, de repente, ouviu-se um estrondo enorme, seguido por um fogaréu no alto do Corcovado. Embora quase todos tenham entrado em pânico, há quem os ignorou e pensou em lucrar com a situação: “— Que bacana! Um vulcão no Findomundo! Isso pode ser bom para o turismo!” (idem, ibidem, p. 12). Não deixa de ser uma amostra de que o capitalismo se aproveita de qualquer circunstância para obter ganhos, mesmo que isso represente o perigo de algumas pessoas e do seu próprio ambiente.

Estavam discutindo o ocorrido, quando chegou um cavaleiro autoritário, xingando todos os presentes, inclusive o rei, alegando que ele, o cavaleiro, foi quem defendeu a cidade da ameaça no Corcovado, um dragão de sete cabeças (que ninguém viu). É interessante notar a descrição desse personagem, porque ele lembra um pouco a figura de Dom Quixote de la Mancha, e também tem um nome chamativo, Don Pendragon de Cantalupo: “Estava meio estropiado, com a cara suja, o nariz arranhado, lança partida, espada gotejando sangue e quebrada a pluma que lhe pendia do elmo” (idem, ibidem, p. 13).

Deve-se perceber, também, que o cavaleiro, além de agressivo e autoritário, utiliza-se de uma linguagem rebuscada, para enganar os pacíficos cidadãos de Findomundo, tal como alguns políticos fazem até hoje, quando usam mesóclises, por exemplo. Veja a primeira fala do personagem: “— Idiotas! (...) Pascácios! Nem merecíeis que eu tivesse arriscado a vida para salvar vossa cidade miserável!” (idem, ibidem, p. 13).

Dessa forma, Don Pendragon simplesmente toma o poder da cidade, alegando que tem direito por ser o único que enfrenta o dragão quase imortal, pois nasce uma nova cabeça sempre que uma das sete é cortada. Assim, o cavaleiro ganha o respeito e a admiração do povo alienado e medroso, que tem medo de subir ao Corcovado, ao mesmo tempo em que a nação vive sob a ameaça de uma possível invasão do dragão, notícia espalhada por Pendragon.

O fato pode ser relacionado à ditadura militar que se instaurou no Brasil, quando os militares tomaram o poder, justificando que estavam a defender o país de uma invasão ou ditadura “comunista”. Ao final, anos depois, viu-se que não havia ameaça nenhuma, mas, pelo contrário, havia acordos e objetivos entre as elites de alguns países da América.

O povo de Findomundo começou a viver em desespero, enquanto o cavaleiro, que inventava as histórias sobre o monstro, dormia tranquilo, na mordomia do reino. De vez em quando, Pendragon pegava o seu cavalo e subia ao Corcovado, voltava sempre sujo e arranhado, dizendo que venceu mais uma batalha contra o monstro, que infelizmente não morreu. Ainda assim, havia quem quisesse lucrar com a situação de “guerra”. Eram os sensacionalistas e capitalistas daquele mundo:

Daria gosto ver um espetáculo como aquele. Foi até pensando nisso que o Ministro do Turismo tentou vender ingressos, com direito a transporte até o Corcovado, para a tremenda luta entre o dragão e o bravo Don Pendragon de Cantalupo. Como a coragem dos possíveis espectadores fosse menor que sua curiosidade, o Ministro tentou vender ingressos para quem não quisesse assistir à grande luta. (idem, ibidem, p. 27)

Quando o cavaleiro soube que aquele local possuía um rei e que este era eleito pelo povo, caiu na gargalhada:

— Ah, isso sim que é uma cidade boa para ser destruída pelo dragão. Cretinos! Então não sabeis que o povo existe para obedecer e que somente alguns nascem para comandar?
(...) Uma ameaça muito maior que a vossa ignorância está às vossas portas, e só eu posso enfrentá-la. Precisamos organizar a defesa. Quem é o vosso Ministro da Guerra?
(...) Não tendes Ministro da Guerra? Não é possível!
(...) Serei eu vosso Ministro da Guerra!
(...) O quê?! (...) Quem sois vós, perituros camponeses, para opinar se Don Pendragon de Cantalupo deve ou não assumir o papel que o dedo do destino lhe apontou? Então pensais que o nobre sangue que me insufla as veias precisa da vossa aprovação para qualquer coisa? (idem, ibidem, p. 29-30).

A partir desse momento, a pequena cidade de Findomundo começou a viver uma ditadura, sob ameaças, censuras e prisões. Os ladrões, que antes eram escolhidos a dedo, sob votações do povo, presos de mentirinha (o que alude às falsas investigações e aos falsos julgamentos reais), só para haver emprego para delegados, juízes, policiais etc.  — de certa forma, uma “indústria do crime” —, agora seriam presos de verdade. E para construir os presídios/calabouços, deve-se “(...) aumentar os impostos! — berrou o herói. — O povo precisa pagar, para sentir o quanto custa enfrentar o inimigo!” (idem, ibidem, p. 33).

Todavia, mesmo com um exército e desfiles diários das tropas, cada dia mais, as pessoas estavam com medo. Agora, nem coragem para levantarem a cabeça e olharem para o Corcovado tinham. Nada mais real, pois as ditaduras só sobrevivem através do medo.

Por causa da censura, obviamente, a arte seria barrada. Foi o caso de Simão, o poeta, amigo do narrador, que foi preso, simplesmente por fazer versos sobre o tal monstro do Corcovado e rimou “cavaleiro” com “embusteiro”. Em sua defesa, disse: “Meu poema só ajudou a lutar contra o dragão. Pois a arte, quando é livre, desmascara a desgraça, fortalece o ameaçado a enfrentar a ameaça. Ela afasta o medo cego, dá a força e a consciência, abre os olhos à verdade e convoca à resistência!” (idem, ibidem, p. 39). Note que, embora escrito em prosa, as falas do personagem sempre rimam.

Mas não adianta nada dialogar com o ditador, que não aceita as suas desculpas, o que rende um bom diálogo:

(...) Poeta, de agora em diante, trarás para mim todos os versos que compuseres. Em três cópias, muito bem escritas. Só depois que eu me certificar que neles não há nenhuma traição é que poderás declamá-los!
(...) — Ordenas o impossível, cavaleiro Pendragon. (...) Na poesia, a liberdade é a razão de quase tudo. Se meu verso não for livre, será como ficar mudo!
— Pois fica mudo, então! (...) O Findomundo pode muito bem passar sem tua poesia. O que esta cidade precisa agora é de segurança contra o dragão. Não de versos. Muito menos versos como os teus, que solapam o espírito do povo, deixando-o à mercê da grande ameaça! (idem, ibidem, p. 40).

Após algumas discussões, acontecem alguns desentendimentos e prisões de personagens importantes, o que ocasiona no inesperado e diferente (por conta do narrador) desenlace da trama, que fica para quem ler a história completa.

Em suma, Ameaça de 7 cabeças é um excelente livro, que, ao mesmo tempo em que diverte, critica problemas da sociedade da época, que infelizmente existem até hoje (afinal, quando se corta uma cabeça, outra nasce...). Escrito numa forma simples, dividido em pequenos capítulos, repleto de bons e inteligentes diálogos, a obra pode ser lida rapidamente, numa única tarde. Embora faça parte da Literatura Infantil/Infanto-Juvenil, a história pode ser apreciada por leitores de qualquer idade. A propósito, quem vivenciou o período da ditadura militar brasileira, que terminou no ano em que o livro foi escrito, pode fazer muito mais analogias.

Pedro Bandeira é um renomado escritor brasileiro, autor de clássicos como A Droga da Obediência, A Droga do Amor, A Droga de Americana e O Fantástico Mistério de Feiurinha.

Carlos Siqueira é formado em Letras – Português, Inglês e respectivas Literaturas, na Faculdade de Santo André, SP.