terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Uma pequena reflexão #7: Sopros

Pintando uma parede, a tinta ainda fresca, pousou um mosquito. Eu, sem querer matá-lo, assoprei-o para que saísse de lá. Porém, ao tocar na parede, suas finíssimas perninhas ficaram presas e o seu corpo se esmagou com o sopro... Fiquei triste por isso, pois não era a minha intenção...

Em seguida, pensei: também nós, com uma simples brisa da natureza, morremos. O bichinho não deve nem ter tido ideia do que aconteceu, nem do motivo, assim como eu não imaginei que seria essa a consequência.

Nós, humanos, às vezes, até conseguimos prever o nosso fim, podemos estudar a causa da morte do outro etc. E embora tenhamos consciência de tantos possíveis (e também impossíveis) fatores, na maioria das vezes, ignoramo-la (e ignoramo-los). Destruímos o nosso habitat, moramos em áreas perigosas e quando somos esmagados, imaginamos e acreditamos ter sido um sopro divino.

No entanto, essas são questões da Natureza, algo em que fomos inseridos (antes de existirmos, o mundo já estava aí). Mas é que eu também pensei na nossa natureza, na linguagem, algo que inserimos ao mundo — ao mesmo tempo em que, utilizando-nos dela, inserimo-nos mais profundamente ao Cosmos.

Ao ver o inseto esmagado por algo invisível, refleti: quantas vezes, por uma única palavra, algo invisível, que sai da boca de alguém e, através do ar, atinge-nos, somos destruídos? Ainda bem que a linguagem é dialética e, assim como pode derrubar, também pode levantar e despertar-nos. Ainda bem que nela nem tudo é literal, mas metafórico. 

Espero que esse curto texto sirva como ponte ou escada, que pinte em vós uma nova cor (não precisa ser bonita — até porque isso é subjetivo —, apenas diferente da de sempre). 

domingo, 11 de dezembro de 2016

Um brevíssimo comentário sobre o livro Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley

Admirável Mundo Novo (2016), de Aldous Huxley, é um romance distópico futurista, escrito em 1932, que apresenta uma crítica muito forte aos sistemas ditatoriais, à ciência e à sociedade. Um livro que lançou premissas que já se concretizaram e outras que estão para se concretizar, além de influenciar diversas áreas da arte, como o cinema e a música, por exemplo.

O tempo do romance é dividido entre antes e depois de Ford, o empresário que virou um revolucionário para a sociedade, com a criação do sistema de produção em massa. Desde então, tudo o que é autenticamente humano dissipou-se, tornando-se algo maquinal. As pessoas, por exemplo, já nascem dentro de laboratórios; a família é algo do passado, não existe mais (é até uma ofensa mencioná-la).

Não só isso. Assim que alguém é criado (por meio de uma reprodução artificial), sua casta é definida: será líder, presidente, empregado, escravo etc. Desde que se tenha consciência, a pessoa, ao dormir, já recebe informações que moldarão o seu caráter e o seu comportamento. São os chamados condicionamentos, criados, sabemos, pelos behavoristas, no início do século XX.

Esses condicionamentos acompanham as pessoas durante toda a vida, sendo, em cada época do seu desenvolvimento, um tipo diferente, fazendo o ser amar ou odiar algo, alguém ou uma classe social. Não à toa, o nome de um dos departamentos faz menção a Pavlov, um dos inventores do Behaviorismo. Mais à frente, no romance, surge um personagem chamado Watson, que também foi importante nessa área da Psicologia.

Nessa sociedade de Admirável Mundo Novo, o questionamento não existe e é proibido, assim como a leitura e a tristeza. Para que ninguém pense nessas questões, são condicionados a trabalharem ou a fugirem da realidade, através dos esportes e de uma droga distribuída pelo governo, chamada Soma. Essa droga faz, na hora, a pessoa esquecer o problema e a situação em que está inserida, para delirar num mundo alegre e imaginário. Todos os dias, após saírem das fábricas, os trabalhadores recebem uma dose desse medicamento...

Uma outra forma de se passar o tempo, além dos esportes, que são criados para serem praticados com muitos equipamentos, para que se precise comprá-los (tudo gira ao redor do capitalismo), é o cinema-sensível. Um cinema moderno que de conteúdo é muito pobre, mas sua qualidade está nas sensações que ele consegue transmitir, tais como o cheiro, o gosto e o tato que os personagens estão vivenciando.

Nesse mundo distópico camuflado como utópico, as relações humanas de sentimento e amor são proibidas, pois criar laços é perigoso: as pessoas podem se revoltar por quem ou pelo o quê elas gostam. Não existe monogamia, todos são de todos, as relações sexuais são feitas por puro prazer, já que é o que a sociedade deseja, além de a gravidez quase não existir mais.

Inserido nesse contexto está Bernard Marx, um homem que não se identifica com esse sistema e que valoriza o que ninguém preza (como observar a natureza, por exemplo — aliás, todos são incitados a não quererem se aproximar dela, pois é grátis e não traz lucro: é preferível que vivam dentro da cidade, gastando), além de recusar o Soma. Não é à toa que o autor deu esse sobrenome a esse personagem, lembrando-nos o sociólogo e filósofo alemão Karl Marx, que propôs um sistema econômico diferente (comunismo) daquele no qual vivia, o capitalismo.

No entanto, Marx já estava sendo observado por seus superiores e colegas; e, por isso mesmo, era excluído de todos. Numa viagem para uma reserva de selvagens — havia ainda pessoas que viviam “à moda antiga”, com religiões (que não existem na “civilização”), ritos, gestações e sentimentos —, junto da mulher que ele gosta, Lenina, conhece John (que também se apaixona por Lenina) e sua mãe, Linda. 

Descobrindo que eram, na verdade, “mulher” e filho abandonado pelo superior que estava querendo enviá-lo a uma ilha, ele (Marx) leva-os para a Utopia e humilha o diretor, que pede demissão ao saber (e ser exposto a todos) que tem um filho e que sua "antiga mulher" está viva, feia e gorda. Marx, assim, evita o seu exílio.

A partir daí, o personagem principal torna-se o Selvagem (John), que estranha e nega veemente esse mundo de falsidades, onde a humanidade é dispensada. É com ele que as maiores críticas são feitas. É preciso ressaltar que o Selvagem conhece toda a obra de Shakespeare e, por isso, compreende bem os sentimentos humanos, diferente dos cidadãos do Admirável Mundo Novo (aliás, “Admirável Mundo Novo” é uma expressão proferida na obra A tempestade, de Shakespeare, que é citada por John ao saber que será levado à Utopia).

Por conhecer e compreender a genialidade do Bardo Inglês, o Selvagem percebe que os conteúdos dos filmes são muito pobres e que o que prende as pessoas à cadeira são as sensações (que ele detesta sentir). Podemos dizer que é o que acontece hoje, com essas histórias de pouca criatividade, mas repletas de efeitos 3D...

Não só isso, John acaba por influenciar um outro personagem, Watson, um Alfa (classe alta), que, com ele e Marx, se revoltam — embora nesse momento Marx mostre ser um covarde, com medo do sistema e do exílio —, dizendo às pessoas para jogarem fora o Soma, que aquilo é veneno e que faz mal para eles. No entanto, a massa agride-os, querendo a droga... É o retrato da Caverna de Platão.

Assim, os três possuem uma conversa com o presidente dessa fundação, que revela saber de todos esses problemas, que ele também sofre com isso, mas é necessário para manter a ordem e a segurança de todos. Que na verdade, os assuntos e autores do “passado” são atuais (por isso proibidos), mas o povo não compreende nem a sua realidade, quanto mais um pensamento que o faça ir além. Não vale a pena. É preciso que alguém sustente a elite sem reclamar, trabalhando, por isso há o condicionamento, por isso há o Soma e todos os confortos que desejam.

Com isso, os três (John, Marx e Watson) são exilados: os dois últimos (obrigatoriamente) numa ilha onde só há pessoas sãs, conscientes da sociedade em que vivem; e John, por escolha própria (não à toa, pois ele já veio de fora, onde, de certa forma, há o livre-arbítrio) se refugia na floresta, pois prefere viver solitariamente uma vida “selvagem” do que confortavelmente numa mentira que lhe faz mal.

No fim, o que se percebe é que Aldous Huxley era e é um homem muito a frente de seu tempo, que percebeu que os melhores sistemas ditatoriais não são/não serão aqueles que agem/agirão através da violência (como pensou Orwell), mas através do prazer e do lazer. Assim, as pessoas defenderão o sistema que as prende. Um homem que adiantou o perigo que a ciência pode trazer, caso ela seja tomada como fim e não como meio, pois em Admirável Mundo Novo é o homem que serve ao sistema e à ciência, não ela ao homem.

O Soma pode ser substituído por qualquer um desses prazeres de curto prazo que vendem em qualquer lugar (droga, cigarro, bebida, doces, redes sociais etc.); o ensinamento através do sono pode ser comparado às imposições implícitas dadas pela mídia e pelas propagandas; os relacionamentos rápidos são a marca da sociedade líquida atual; a ausência da leitura dos clássicos já é sentida há tempos, a qual é trocada por leituras de rápidas e desnecessárias mensagens na internet. Só nos falta sermos criados em larga escala de gêmeos de laboratórios (a diferença é um problema na sociedade de Huxley, por isso é evitada), porém a esterilização e a inseminação artificial já estão presentes há alguns anos — e a padronização de estilos, ações e características já é comum.

Além de revolucionar com suas “previsões”, o livro de Aldous influenciou na criação de outras artes também. Há filmes que trazem algumas semelhanças com trechos da obra, como, por exemplo, A Viagem (Cloud Atlas), filme de 2012, que traz um futuro onde há várias personagens gêmeas que só vivem para o trabalho. Além disso, há algumas músicas que tomam o romance como referência, a saber: Admirável Gado Novo (1979), de Zé Ramalho; Admirável Chip Novo (2003), da cantora Pitty; Brave New World (2000), da banda Iron Maiden; e Soma (2001), da banda The Strokes.

Em suma, Admirável Mundo Novo é um livro riquíssimo de críticas e metáforas que nos ajudam a nos conhecermos melhor, assim como visões sobre quem podemos ser e/ou nos tornar. Um texto de apenas quatro laudas é pouquíssimo (muito pouco, mesmo!) para descrever uma obra tão genial. Leitura obrigatória.


Referências

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Tradução de Lino Vallandro e Vida Serrano. 22. ed. São Paulo: Globo, 2014.

Resenha do livro Os ratos, de Dyonelio Machado, com enfoque no tempo e espaço da obra

Os ratos, de Dyonelio Machado, é um romance de 1935, que conta a história de Naziazeno, um homem que, logo no início do livro, descobrimos que só possui vinte e quatro horas para conseguir o dinheiro para pagar o leiteiro, caso contrário, não receberia mais o leite, o que significaria um problema para o seu filho. Isso é apenas uma síntese dessa grandiosa obra, mas antes de verificarmos um pouco da sua complexidade é preciso rever alguns conceitos.

Segundo Bosi (2013), há, no mínimo, a partir de 1930, quatro tipos de romance: os de tensão mínima, os de tensão crítica, os de tensão interiorizada e os de tensão transfigurada. Os ratos (2004) encaixa-se nos de tensão crítica, isto é, o herói lutando contra o seu meio.

Naziazeno é um homem pobre e devedor (ele deve a mais pessoas além do leiteiro). Embora viva na cidade, cresceu no campo, o qual ele lembra sempre idealizando, sendo, assim, o retrato do homem que saiu da zona rural para trabalhar na área urbana e que, talvez, ainda não esteja familiarizado com essas diferenças.

Embora a partir dos anos 30 tenha havido um crescimento na criação de romances em que as histórias se passavam no nordeste ou em outras regiões que não fossem os centros das cidades, Dyonelio Machado vai no sentido oposto de seus contemporâneos, escrevendo uma ficção que se passa na área urbana (em Porto Alegre, para ser mais exato).

Na verdade, ele apenas seguiu uma tradição, já que “(...) o romance surgiu identificado com a burguesia. Por isso, é urbana sua geografia” (MOISÉS, 2001, p. 178). Outra característica dos romances é que eles geralmente se passam em vários espaços diferentes, sendo abertos ou fechados. No caso d’ Os Ratos, o personagem principal perambula pelas ruas e pelos interiores de casas e comércios.

Uma última informação antes de adentrar a história é sobre o tempo. Como se sabe, há três tipos de tempo nos romances: o histórico/cronológico, o psicológico e o metafísico/mítico (idem, ibidem). Dyonelio consegue juntar os dois primeiros em sua obra de forma bem intrincada, além de, como sabemos, o tempo interferir no espaço e vice-versa.

É início do dia, cedinho, e o leiteiro já está brigando com Naziazeno, pois este não pagou o que lhe deve. Os vizinhos estão todos observando a discussão. Naziazeno só tem “mais um dia” (MACHADO, 2004, p. 8). Assim começa Os ratos. A partir daí, começa a incansável (não tão incansável assim) busca do anti-herói pelo dinheiro, cinquenta e três mil réis. O problema do personagem principal é que o tempo da cidade, do espaço, é diferente do tempo que ele tem.

A narração da obra é em terceira pessoa na maior parte do tempo (embora em alguns momentos passa-se em primeira), o narrador observa de longe o protagonista, como é característica do Realismo e do Naturalismo, para dar um caráter de objetividade. Temos uma noção de tempo cronológico, da rotina de Naziazeno, logo no início: “O bonde leva uma ‘outra gente’. Não a que ele está acostumado a ver, às nove ou dez horas, a ‘sua hora’. — ‘Melhor, melhor’. Essa falta de ‘conhecidos’ apazigua-o” (idem, ibidem, p. 13). Neste momento que a personagem pega o bonde, são sete e meia.  

Isso é um indício das noções de tempo que virão com o passar da obra. Além disso, percebemos que o personagem principal vê-se acuado, observado — assim como na primeira página do livro, quando ele percebe que está sendo observado pelos vizinhos —, como se estivesse preso na cidade.

É interessante como algumas palavras interferem no mal-estar do herói e como a sua mente abalada distorce o seu cenário. Ao saber que um homem no bonde carregava leite, Naziazeno se sente mal; e todo leiteiro que passa na rua, para ele, está mal encarado.

Neste começo da história, todo o tempo é incerto, psicológico: “É que é cedo” (idem, ibidem, p. 23). Cedo “quanto/quando”? Nem o narrador sabe, porque o próprio personagem perdeu a noção do tempo: “Mas, espera: que horas serão? Não há mais tempo agora: é preciso ir direto à repartição. Foi o seu primeiro plano, e é força segui-lo.” (idem, ibidem, p. 24).

O anti-herói trabalha na repartição, isto é, um local fechado, que é o espaço. Ele pensa em pedir dinheiro ao diretor, pois este já o ajudou antes (tempo cronológico, embora não se diga exatamente “quando”), uma vez que teve problemas com a saúde do filho.

“O relógio da prefeitura marca pouco mais de oito horas” (idem, ibidem, p. 25). A partir desse ponto aparecerão muitas passagens de tempo cronológico no romance, para lembrar a Naziazeno que o seu tempo está acabando e para criar a catarse em nós, leitores. Por outro lado, começa a aparecer o tempo psicológico também, pois passam-se cinco parágrafos e “’— Este relógio ainda está marcando oito e dez.’ Os relógios não andam certos. Mas já há de ser umas oito e vinte ou oito e meia. Às nove ele se encaminhará pra a repartição” (idem, ibidem, p. 26).

Naziazeno ficou imaginando o que lhe poderia acontecer durante cinco parágrafos. Notemos a palavra “ainda” na citação anterior, pois o tempo psicológico “(...) aborrece ou ignora a marcação do relógio. Tempo interior, imerso no labirinto mental de cada um, cronometrado pelas sensações, idéias, pensamentos, pelas vivências, em suma, que, como sabemos, não têm idade (...)” (MOISÉS, 2001, p. 183).

Essa mudança do estado mental de Naziazeno afeta até mesmo o narrador (ou, pela confusão, os dois, narrador e interlocutor, se confundem): “Quanto custa um jornal?... É estranho, está em dúvida... Duzentos ou trezentos? A sua cabeça anda cansada, é isto. Mas não lembra bem mesmo. Parece que é trezentos: sofreu dois aumentos” (MACHADO, 2004, p. 26). Passa-se uma página inteira e ainda “São oito e meia quase no relógio do café” (idem, ibidem, p. 28). Tempo psicológico. Fim do capítulo três, vinte e oito páginas decorridas, apenas uma hora desde que ele saiu de casa.

A primeira frase do quarto capítulo já anuncia: “9 horas! Já está arrependido daquela longa ‘folga’. Parece-lhe tarde agora. Daí que chegue à repartição, perde mai uns dez ou quinze minutos” (idem, ibidem, p. 29). De um capítulo para o outro passaram-se trinta minutos, passamos o olhar de uma página à outra em menos de alguns segundos, mas para o personagem passou-se muito tempo. É que

trata-se do tempo psicológico experimentado pela personagem, não como dimensão da narrativa: esta, pode passar-se num vasto lapso de tempo, correspondente à vida inteira da personagem, ou numas poucas horas. Entretanto, “a área do tempo dos romances psicológicos é comumente restrita a um curto período, ou a um número de curtos períodos de variado intervalo” (MENDILOW, A. A, op. cit. p. 218 apud MOISÉS, Massaud, 2001, p. 204)

Além disso, percebemos que Naziazeno já está calculando o tempo que sabe que está perdendo. Falando sobre o seu trabalho, é visto que ele (Naziazeno) trabalha com contas, mas que, como não necessita de pressa (crítica à burocracia do governo), como não precisa estar em dia, atrasa uns “bons dez meses” (MACHADO, 2004, p. 33). Não é à toa que ele atrasou com o leiteiro: é apenas uma reprodução de suas ações em outro espaço.

Depois de muito tempo esperando o diretor chegar, para lhe pedir o dinheiro emprestado (e o próprio empréstimo já pressupõe um tempo futuro), apenas passou-se meia hora...

É importante atentarmo-nos que, até na imaginação do personagem, sua mente altera o espaço (não somente o tempo) através de uma projeção (caso sinta-se bem, o cenário é belo):
Quando, depois de “pagar” o leiteiro no portão, ao pé da “escadinha”, “entra” de novo em casa, as janelas estão cheias de luz, a toalha enxovalhada da mesa resplandece, o café com leite tem um cheiro doméstico, que lhe lembra a sua infância... (idem, ibidem, p. 36)

Temos outro exemplo, que é quando o anti-herói olha novamente para o relógio e ele lhe parece “uma cara redonda e impassível...” (idem, ibidem, p. 37), como se o relógio estivesse cobrando e lembrando-o de que lhe restam poucas horas.

Acelerando um pouco a narrativa (pois este será um texto breve), Naziazeno se encontra com Alcides, um amigo, afim de que este lhe empreste o dinheiro — que no momento lhe é negado. Porém é importante notar que quando Alcides é olhado pelo protagonista, ele lhe parece diferente, o que não é verdade, diferente está Naziazeno e o seu olhar (lição que nos é ensinada desde Heráclito de Éfeso). É o tempo psicológico que traz essa subjetividade.

Ao voltar para o seu serviço (porque Naziazeno transita pelas ruas da cidade), para ver se o diretor já chegou e para pedir o dinheiro emprestado, é feita a primeira referência aos ratos: “Naziazeno ‘vê-se’ no meio da sala, atônito, sozinho, olhando pra os lados, pra todos aqueles fugitivos, que se esgueiram, que se somem com pés de ratos...” (idem, ibidem, p. 47).

Irônica passagem essa, pois quem está sozinho, com medo, se esgueirando pelos restaurantes, cafés e ruas da cidade, sentindo-se cercado, é o próprio anti-herói. Ele é como os ratos, a cidade é como uma gaiola, não aberta, mas que o prende. Como se não bastasse essas descrições do narrador, para compará-lo implicitamente aos animais que levam o nome do romance, o personagem começa a ter lembranças de quando bebia leite, quando era criança. Ironia. Ainda são onze e trinta da manhã.

Chegada essa hora, o diretor nega o empréstimo. “Treme o ar, toda a rua treme com o calor, tremem as casas, como um pedaço de paisagem submarina, ondulando através da água movediça” (idem, ibidem, p. 55). Depois do “não”, o espaço é modificado pelo medo do protagonista.

A partir daí, tudo piora para o anti-herói, tudo fica mais difícil. O sol fica mais quente, a rua fica mais larga, ele sente-se fraco. É por isso que, quando ele vai cobrar o dinheiro de um devedor do Alcides, é enganado facilmente.

Ainda são treze horas e Naziazeno não tem o que respirar, está sem comer, está sem dinheiro, sem amigos, se sente sozinho em meio ao mundo: “A cidade não tem árvores. A rua é um bloco inteiriço de granito escaldante” (idem, ibidem, p. 66).

É importante notarmos as “dicas” que o narrador deixa do que acontecerá. Depois de enganado, nosso personagem principal percebe que caiu “num jogo” (idem, ibidem, p. 70) do devedor do Alcides, o Andrade. Pois bem, é num jogo que Naziazeno tentará ganhar o dinheiro!

Interessante a metáfora utilizada: um anti-herói azarado joga na roleta, que gira, assim como o ponteiro do relógio, assim como o seu tempo, assim como a sua vida. E ele ganha, mas assim como a roleta gira, a Fortuna (deusa romana do Acaso/Destino) também, e ele perde em seguida. É triste ver que um homem pobre, dentro de uma cidade inteira, dependa da sorte para conseguir algo (talvez, uma crítica à meritocracia).

Outra metáfora usada em seguida é a sua passagem pela rua Sete, na qual ele sente um calor imenso e passa mal novamente. Logo na rua Sete, número que possui como significado o ciclo. Observemos este outro caso da descrição do espaço: “Um caminhão cinzento passa por ele com uma certa velocidade. É o das ‘obras’. Vem do serviço. Traz um longo cano, fino, de encanamento, que sacode com a  marcha e cuja ponta fica vibrando como a açoiteira duma chibata” (idem, ibidem, p. 81).

O caminhão é cinza, como a cidade, cor nem fraca nem forte, assim como a vida de Naziazeno e dos outros personagens. O movimento do cano, comparado a uma chibata, pode ser comparado à tortura que o protagonista está passando. Novamente, o espaço está ligado ao que o personagem está sentindo.

Entardece, as casas e os comércios começam a fechar, o problema de Naziazeno agrava-se, ele não tinha contado com isso: o seu tempo é diferente do tempo da cidade, ele tem vinte e quatro horas, mas a cidade funciona por menos tempo. Mais uma comparação (metáfora) é feita pelo personagem principal: o sol, descendo o horizonte, é como uma moeda, representando o dinheiro, que ele necessita, indo embora. As casas fechadas são apenas reflexos das pessoas para com os seus problemas.

Naziazeno se encontra novamente com Alcides, são dezoito e vinte, o segundo paga um café para o primeiro, que pede leite, leite que lhe faz mal: a bebida não lhe faz bem, assim como a bebida para o filho está lhe causando toda essa tortura.

O protagonista, junto de Alcides, se encontra com Mondina e, finalmente, com o Duque (personagem que estava sendo procurado desde o início do romance, pois este sempre dá um jeito de conseguir dinheiro). Depois de irem a vários lugares, conseguem empenhar o anel de Alcides, que lhe “deu” o dinheiro. Aqui há outra metáfora (em forma de antítese): o anel, um círculo que aperta o dedo, desapertou a situação de Naziazeno. O ciclo de busca acabou. Nisso já se passou das vinte e uma horas.

Embora se tenha mostrado o fim do problema, não foi mostrado exatamente como o problema foi resolvido. Técnicas e características dos romances modernos. Após o anti-herói chegar em casa, com o dinheiro (e com queijo — derivado do leite — para a mulher), depois de comer e deitar-se, é que se explica como ele conseguiu tal feito, isto é, o tempo cronológico é ignorado, volta-se no tempo (psicológico).

Como se não bastasse, os últimos capítulos são de paranoia de Naziazeno, deitado na cama, refletindo sobre o seu dia, tentando dormir. Apenas “tentando”, porque não consegue, pois começa a ouvir ruídos e sons de tudo ao redor. Pensando que já amanhecerá, na verdade se passaram apenas alguns instantes. Em suas palavras: “Uma hora!... Já lhe parece um século aquela noite e é apenas uma hora!... Precisa dormir, precisa descansar. Tem de aproveitar esse resto de noite. É estranho: um cansaço tão grande, e não consegue conciliar o sono...” (MACHADO, 2004, p. 163).

Não é à toa que todo esse sofrimento se passa dentro de um quarto, espaço fechado, para aumentar a tensão do personagem e a nossa catarse. Por fim, Naziazeno delira, imaginando que ratos roem toda a sua cozinha, inclusive o dinheiro.

Massaud Moisés (2001) diz que

É voz corrente entre os críticos que um romance, para ser bom, deve satisfazer a três requisitos fundamentais: 1) um enredo suficientemente rico, forte e convincente para manter no leitor a mesma pergunta aflita: “e agora? Que vai acontecer? E depois?”; 2) personagens verossímeis à imagem e semelhança dos seres humanos, “gente” como nós (...) 3) reconstituição da natureza ou do espaço onde a história transcorre. (...) (p. 181-182).

Considerando essa citação do Massaud Moisés, Dyonelio Machado conseguiu fazer um excelente romance, pois satisfaz aos três requisitos, cativando-nos do início ao fim. Naziazeno é a representação do trabalhador oprimido e alienado, sua vida depende de terceiros e da sorte. A cidade é um espaço fechado, que aprisiona ao invés de libertar. A própria separação de breves capítulos já demonstra a fragmentação do homem. A falta de dinheiro torna o homem quase um animal, desesperado pela sobrevivência.

Escrito numa linguagem simples e acessível, Os ratos (2004) é um livro riquíssimo, principalmente para quem estuda a mentalidade do ser humano. Repleto de metáforas e críticas, o autor entretém, ensina e provoca. Para quem se interessa por Literatura Brasileira, é leitura indispensável.

Dyonelio Machado nasceu em 1895 e morreu em 1985. Formado em medicina, especializou-se em psiquiatria. Escreveu romances e contos, além de ter sido jornalista e deputado.

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é aluno do curso de Letras, na Faculdade de Santo André, SP.


REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 49. ed. São Paulo: Cultrix, 2013.

MACHADO, Dyonelio. Os ratos. São Paulo: Planeta, 2004.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.