terça-feira, 6 de março de 2018

Conteúdo e forma: a importância da estética e uma breve análise da música “Prelúdio”, de Raul Seixas


Introdução

Muitas vezes, as pessoas gostam de um poema, de uma música, de um quadro, de uma imagem etc., mas não sabem o porquê. Às vezes, nem compreendem completamente as mensagens passadas por uma obra, mas algo as atrai e as faz gostarem dela: é a forma como o objeto é mostrado, por trás da subjetividade. Antônio Candido diz que “A eficácia humana é função da eficácia estética” (CANDIDO, 1988, p. 182), isto é, o conteúdo da mensagem é reforçado através da maneira como é demonstrado.

Há diversas técnicas linguísticas, verbais, áudio e visuais utilizadas na arte, tanto para deixar o objeto mais belo, quanto para chamar a atenção de quem o observa. Por isso, é necessário mais atenção e aprofundamento ao contemplar qualquer arte, porque ela não é objetiva, pelo contrário, é subjetiva, sempre sugere diversas interpretações.

Neste texto, buscar-se-á apreender alguns sentidos na música “Prelúdio”, de Raul Seixas, além do explícito, conciliando, desta forma, código e mensagem.

Sobre o artista

Raul Seixas foi um dos maiores cantores e compositores brasileiros, um dos pioneiros do rock nacional, embora o misturasse com outros gêneros musicais, principalmente nordestinos. Tendo vivido na época da ditadura, sua obra possui diversas críticas ao regime daquele tempo, além de referências à literatura, à psicologia, à história e à filosofia, o que faz suas músicas serem complexas e ricas de interpretações.

Como se não bastasse a preocupação do artista com o conteúdo de suas canções, quase sempre com letras relevantes para a sociedade, também há uma valorização da estética, o que é muito importante para a propagação e para a compreensão da mensagem, como será visto mais à frente.


Antecedentes e contexto

Antes de tudo, é necessário explicitar que a letra de “Prelúdio”, que aqui foi separada em apenas quatro versos, é a tradução quase exata do final da música “Now or never”, de Yoko Ono, mulher de John Lennon, ídolo de Raul Seixas. A canção de Yoko foi lançada em 1972, como single homônimo, e depois como faixa do álbum Approximately Infinite Universe, de 1973. Já a música do brasileiro está presente no disco Gita, de 1974. Veja a semelhança:

Últimos dois versos de Now or never, de 1972

‘Cause dream you dream alone is only a dream,
But dream we dream together is reality.



Prelúdio, de 1974

Sonho que se sonha só
É só um sonho que se sonha só,
Mas sonho que se sonha junto
É realidade.



Há quem acuse Raul Seixas de plágio, e não é muito fácil defendê-lo, pois os versos se parecem muito (o que muda é que o trecho da música original possui os pronomes pessoais “You” e “We”, “Você/Tu” e “Nós”, respectivamente; enquanto a versão brasileira usa uma linguagem impessoal, com a partícula “se”). Além disso, todos sabem que Raul era um grande fã dos Beatles e do John Lennon, sua música foi lançada depois do single e álbum da Yoko, mas não há nenhuma referência ou créditos a ela.

De qualquer forma, as duas obras possuem muita força, por causa de seus contextos. Now or Never foi lançada na época da Guerra do Vietnã, enquanto Prelúdio foi apresentada durante a Ditatura Militar brasileira; ambos períodos conturbados, violentos e descontentes de seus povos e países; ambas serviram como protestos.

A era atual, conhecida como “modernidade líquida” ou “pós-modernismo”, que começou na segunda metade dos anos 50, é marcada pelo egoísmo. Jair Ferreira dos Santos, ainda nos anos 80, escreveu:

O individualismo exacerbado está conduzindo à desmobilização e à despolitização das sociedades avançadas. Saturada de informação e serviços, a massa começa a dar uma banana para as coisas públicas. Nascem aqui a famosa indiferença, o discutido desencanto das massas ante a sociedade tecnificada e informatizada. É a sua colorida apatia frente aos grandes problemas sociais e humanos. (SANTOS, 1988, p. 88)

Nesse contexto, a mensagem da música é simples: é preciso pensar no geral, a sociedade é coletiva, sozinho não se consegue nada, o individualismo é um problema, um verdadeiro povo possui objetivos em comum. Todavia, o presente texto também tem como meta apresentar uma interpretação sobre a estética da música de Raul Seixas, em razão de seus jogos sonoros.

Características do objeto

Nesta análise, a letra de “Prelúdio” será entendida como um poema, isto é, uma criação literária, “um discurso específico, em que a seleção e a combinação das palavras se fazem não apenas pela significação, mas também por outros critérios, um dos quais, o sonoro” (GOLDSTEIN, 2005, p. 05).

Segundo Décio Pignatari (2011), citando Ezra Pound, que foi um renomado crítico literário e poeta norte-americano, há três características fundamentais nos poemas: a fanopeia, a melopeia e a logopeia. O primeiro tipo de poema trabalha com imagens e metáforas; o segundo, com sons e música; e o terceiro, com ideias. Embora a obra de Raul Seixas seja uma metáfora, a melopeia, isto é, a sonoridade, é muito mais forte e importante.

A análise de qualquer texto deve partir do título, pois ele já sugere ao leitor alguma ideia do que será discutido, no caso, a música se chama “Prelúdio”, que significa “antecipação, anúncio, prólogo, etapa inicial de algo” etc. No ramo musical, é uma introdução para uma obra ou para um ato que virá em seguida.

Desta forma, se for levado em conta o álbum no qual “Prelúdio” está inserida, Gita, ela é uma entrada para “Loteria da Babilônia”, uma música com tantos significados e referências (Jorge Luís Borges, Alester Crowley, Hércules etc.), que seria preciso fazer outro texto sobre ela, mas que, em suma, fala sobre a suposta iluminação de alguém; se a canção for referente a si mesma, pode-se dizer que a primeira etapa, o prelúdio de qualquer mudança social, é o sonho coletivo. Dialeticamente, essa mensagem leva ao despertar.

Além disso, a “musicalidade (sugestão de música e ritmo) pode partir do título, algumas vezes” (GOLDSTEIN, 2005, p. 08). É o que ocorre com o nome da canção, “Prelúdio”, que já sugere uma preocupação com os sons.

A importância da estética

Um dos maiores problemas das pessoas, quando leem um poema ou uma letra de música, é se atentarem somente ao conteúdo do texto, ignorando a sua forma. Todavia, “quando elaboram uma estrutura, o poeta ou o narrador nos propõem um modelo de coerência, gerado pela força da palavra organizada” (CANDIDO, 1988, p. 177). Ou seja, tais vocábulos não são escolhidos à toa, eles possuem um motivo para estar onde estão e da forma como foram apresentados. Otto Maria Carpeaux é enfático e ácido ao dizer que:

Os homens não sabem ler. Aplicam a um poema o mesmo processo errado que aplicam a anúncios de jornal ou a notícias de propaganda política: contentam-se com o sentido superficial das palavras, sem explorar a intenção daquele que fala. Confundem duas coisas que estão juntas em cada palavra falada ou escrita: a expressão e a intenção. Consideram apenas o que o outro Ihes diz, sem considerar como o diz e porque o diz. (CARPEAUX, s/d, p. 26)

Mesmo que “Prelúdio” seja uma tradução, traduzir um poema ou qualquer texto literário é algo muito difícil, porque a obra não é apenas o conteúdo, mas a junção dele com a estética:

A mensagem é inseparável do código, mas o código é a condição que assegura o seu efeito. (...) Em palavras usuais: o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e sugere. O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. (CANDIDO, 1988, p. 178)

A música de Raul Seixas é cantada de forma lenta e vai subindo o tom conforme os versos se repetem, apenas com um piano/teclado ao fundo. Não à toa, pois o tema abordado é o sonho, que ocorre durante o sono, geralmente no silêncio. Não poderia ser uma canção agitada. Além disso, três dos versos são construídos sob três técnicas poéticas de efeito sonoro: aliteração, assonância e anáfora.

Aliteração “é a repetição da mesma consoante ao longo do poema” (GOLDSTEIN, 2005, p. 50), assonância “é o nome que se dá à repetição da mesma vogal no poema” (idem, ibidem, p. 51), e anáfora é a “repetição de palavras (...) na mesma posição” (idem, ibidem, p. 52). No caso, a consoante repetida é o “s”; a vogal, o “o”, e as palavras, “sonho que se sonha só”.

Ao reforçar a letra “s” (sonho, se, sonha, só, só, sonho, se, sonha, só, mas, sonho, se, sonha), o eu-lírico sugere o silêncio da situação de alguém dormindo, tal como quando se pede para alguém não fazer barulho. As sílabas, por sua vez, constituem uma espécie de embalo musical na leitura, ao se revezarem entre sílabas fortes e fracas:

SO – nho – QUE – se – SO – nha- SÓ
É – SÓ_um – SO – nho – QUE- se – SO- nha – SÓ
Mas – SO -nho – QUE – se – SO- nha – JUN- to
É re – A – li – DA- de.

(As maiúsculas seriam as sílabas fortes; as minúsculas, as fracas.)

Além disso, os três primeiros versos são quase compostos apenas por vogais e sílabas fechadas e nasais, exceto pela palavra “só”, que é aberta. Neste contexto, a vogal fechada ou nasal pode significar o escuro do local (lembre-se, o tema é o sono e o sonho). É como se falasse para alguém cochilando, dormindo na maior parte do tempo e acordando somente na última sílaba (“só”).

Isso se constata com o último verso, que só possui as palavras “É realidade”. A primeira é uma vogal aberta (É), a segunda tem como sílaba tônica “Da”, que também é aberta (dA). Essa última frase sugere claridade, diferente dos três primeiros versos. Porém, por ser o fim da música, seu significado é intensificado: a mensagem foi dada, esclarecida, é hora de acordar, levantar e agir.

Quanto à anáfora, a repetição das mesmas palavras, ela fixa e memoriza os versos, além disso, cria um ritmo que sugere uma continuidade de sons semelhantes, mas as novas palavras, no último verso, de sons diferentes, rompem a expectativa do leitor/ouvinte, o que o faz despertar, confirmando o sentido e a intenção do texto.

Considerações finais

Independentemente de Raul Seixas ter plagiado Yoko Ono ou não, é impossível negar as suas habilidades de interpretação e composição, seus conhecimentos históricos, sociológicos, filosóficos e literários, além da preocupação social que o artista sempre teve. Prelúdio até pode ser uma utopia por sugerir que todos sonhem com o mesmo objetivo, mas, de qualquer forma, as utopias são necessárias ao homem. Embora nunca se alcance a meta, dá-se passos para frente.

Também foi visto que da mesma maneira que a união entre as pessoas é necessária, ao se analisar qualquer obra de arte, é fundamental unir o conteúdo à estética, pois esta reforça a mensagem daquele, mesmo que “nas camadas do subconsciente e do inconsciente, incorporando-se em profundidade como enriquecimento difícil de avaliar.” (CANDIDO, 1988, p. 179).

Em suma, tentou-se mostrar alguns sentidos implícitos presentes na letra da música Prelúdio, através dos seus jogos sonoros, e a importância destes na construção do valor total da obra.

Raul Seixas, consciente de seu tempo e espaço, do egoísmo do homem pós-moderno, apontou uma saída, mas, infelizmente, muita gente ainda dorme sonhando com ilusões, sozinho. É por isso que a música continua atual.

NOTA: Há quem diga que até mesmo o trecho presente em Now or Never, da Yoko Ono, é uma paráfrase de um excerto do livro Dom Quixote, um clássico mundial da Literatura, de Miguel de Cervantes. Todavia, o autor desta análise possui e leu uma versão do livro Dom Quixote, traduzida por Ferreira Gullar, e em nenhum momento aparece algo similar ao referido. Ainda assim, o criador deste texto procurou essa frase em duas versões do livro de Cervantes, tanto na parte um quanto na parte dois, com mais de 600 páginas cada, mas nada foi encontrado. Se você é um dos que dizem que Yoko Ono e Raul Seixas copiaram o escritor espanhol, por favor, comente qual é a editora, a edição, o ano, a página e o tradutor do livro Dom Quixote que possui essa frase.

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é formado em Letras – Português, inglês e respectivas literaturas, pela Faculdade de Santo André, Santo André, São Paulo.

REFERÊNCIAS

APPROXIMATELY INFINITE Universe. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Approximately_Infinite_Universe>. Acesso em: 05 de mar. 2018.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, s/d. Disponível em: <https://culturaemarxismo.files.wordpress.com/2011/10/candido-antonio-o-direito-c3a0-literatura-in-vc3a1rios-escritos.pdf>. Acesso em: 05 de mar. 2018.

CARPEAUX, Otto Maria. Poesia e ideologia. In: Origens e fins. Disponível em: <http://www.portalconservador.com/livros/Otto-Maria-Carpeaux-Poesia-e-Ideologia.pdf>. Acesso em: 05 de mar. 2018.

GITA. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Gita_(%C3%A1lbum)>. Acesso em: 05 de mar. 2018.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. 13 ed. São Paulo: Ática, 2005.

ONO, Yoko. Now or never. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=3r5yWnY9VvU>. Acesso em: 05 de mar. 2018.

PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética.10 ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2011.

SANTOS, Jair Ferreira. O que é pós-moderno. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.

SEIXAS, Raul. Prelúdio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-2bxSDOarKM>. Acesso em: 05 de mar. 2018.