quinta-feira, 2 de abril de 2020

A sutileza da literatura japonesa em “Descabelados”, de Yosano Akiko


AKIKO, Yosano. Descabelados. Tradução, introdução e notas de Donatella Natili e Álvaro Faleiros. Brasília: Universidade de Brasília, 2007. (Coleção Poetas do Mundo)

A Poesia é uma arte muito sutil, mas quando se fala de literatura japonesa, vinda de uma sociedade tão distante e diferente da ocidental, essa sutileza ganha contornos ainda mais sublimes, como é o caso da obra de Yosano Akiko (1878 – 1942), escritora que, só pelo título de um livro, já se tornou, na época, contestadora social.

Mideragami, publicado originalmente em 1901, traduzido para o português como “Descabelados” (2007), é considerado, no Japão, um dos cem livros mais importantes do século XX, pela ousadia da autora, que usou um gênero textual tradicional, o tanka, com uma abordagem de conteúdo totalmente nova e considerada imoral para a época.

Para quem não sabe, o tanka é um poema que tem como estrutura cinco versos, possuindo, respectivamente, cinco, sete, cinco, sete e sete sílabas. Pode-se dizer que é um haicai acrescentado de dois versos de sete sílabas e, tal como o gênero citado, o tanka também aborda questões relacionadas à descrições da natureza. Portanto, vê-se que é um poema rígido, o qual Yosano Akiko utiliza de forma diferente da proposta.

A sublime distorção, contestação e inovação da poetisa já começam ao contrapor forma e conteúdo: se o tanka é um gênero tradicional, duro, ao usar a imagem de uma mulher descabelada, Akiko cria estranhamentos dentro e fora do texto: primeiro, porque o cabelo solto de uma mulher no Japão daquela época não era bem visto, pois subjetivamente indicava ou erotismo ou desordem; segundo, porque dentro da estrutura formal do poema está uma representação informal, descabelada (com toda sua carga subjetiva), contrastando a regra. Como diz Álvaro Faleiros, escritor das notas de Descabelados (2007): “O escândalo causado pelos textos de Akiko deveu-se ao fato de a poeta utilizar-se de uma forma clássica e introduzir uma temática inusitada, erótica e altamente subversiva para os padrões tanto estéticos como morais do Japão” (p. 44).

Quanto à estrutura dos poemas que serão mostrados, é necessário ressaltar que os tradutores optaram por seguir a própria técnica japonesa, isto é, diferente da contação de sílabas portuguesas, que só vai até a última tônica, traduziram os tankas de forma que cada verso tenha cinco ou sete sílabas até o fim, não importando onde se encontra a mais forte, seja a palavra oxítona, paroxítona ou proparoxítona. Ao serem transpostos para cá, essas questões serão melhor percebidas.

Além disso, esta edição da Universidade de Brasília traz, nas folhas esquerdas (e, melhor ainda, no canto direito da folha esquerda, que é a ordem da leitura japonesa), o texto original, em japonês, o que é muito útil para quem deseja estudar o idioma ou ter contato com a fonte primária. A seguir, alguns poemas e interpretações.

1.
cabelos negros
são mil longos cabelos
descabelados
mente   descabelada
descabelada   mente


Antes de começar a análise, é preciso deixar claro que o poema foi alinhado à direita para reproduzir a forma como foi escrito no livro e dar, mesmo que levemente, a impressão que se tem ao ler em japonês, que, diferentemente do modelo ocidental de leitura, lê-se da direita para a esquerda. Os espaços “exagerados” seguem a mesma linha e servem como lacunas e pausas subjetivas, tal como estão no texto original. Como se vê, o tanka tem cinco versos, possuindo, respectivamente, 5, 7, 5, 7 e 7 sílabas, não se contando apenas até a tônica, mas absolutamente todas. Os poemas não começam com letra maiúscula e nem possuem ponto final.

Já sobre o conteúdo, tem-se a descrição dos cabelos negros (cor predominante nos povos asiáticos), descabelados, o que pode representar tanto algo físico quanto um reflexo emocional do eu-lírico que, em seguida, descreve que a mente também está descabelada, ou seja, confusa. É importante perceber o movimento das palavras nos dois últimos versos, que sugerem o próprio balanço do cabelo e a instabilidade psicológica: mente   descabelada / descabelada   mente. Como já foi mencionado antes, a desordem do cabelo, no Japão, é símbolo de erotismo.

3.
ouça o poema
como negar o carmim
da flor do campo?
delícias   a   menina
pecar    na primavera

Este poema pode parecer simples, mas possui suas sutilezas. Em primeiro lugar, o imperativo “ouça”, que ordena que se dê atenção ao texto; em seguida, uma pergunta retórica sobre a cor da flor (sinônimo de beleza) do campo, “carmim”, isto é, vermelho, que, por sua vez, pode significar a cor do amor. Como negar este sentimento? Como negar os sentidos? É preciso lembrar que no passado (e até em alguns casos no presente), não só no Japão, mas no mundo todo, os casamentos eram arranjados. A primavera, estação das flores, do encanto e da juventude, então, é o tempo bom (“delícias”) para se rebelar contra o que é imposto socialmente, para se fazer o que é considerado “pecado” — aliás, o uso esta palavra pode remeter a uma influência cristã na vida da poetisa.

4.
    mergulhada
no fundo da nascente
a flor       de lírio
corpo de vinte verões
vejo assim tão bonito

Aqui, pode parecer comum, um eu-lírico que se orgulha da sua própria beleza, com seus vinte anos de idade (“vinte verões”), comparando-se a uma flor de lírio, no entanto, como diz a tradutora desta edição, Donatella Natili: “Tradicionalmente, uma das maiores virtudes das mulheres japonesas era a modéstia” (p. 114). O que hoje é considerado normal, ter orgulho de si mesmo e descrever o próprio corpo feminino, na época era considerado uma afronta, além de ser um despertar para questões do ego, logo, de certa forma, um início de modernidade. Por essas e outras questões, Yosano Akiko é considerada uma pioneira do feminismo no Japão.

A tradução também merece ser elogiada, por produzir efeitos estético-sonoros que contribuem para a graça de ler o poema. Perceba a rima interna entre “flor” e “CORpo”, além da aliteração (repetição de letras) em /v/, com “VINte VErões” e “VEjo”.

8.
mamilos duros
revelam-se os mistérios
tão docemente
uma flor     desabrocha
vem tingida de carmim

Ousadia, inocência e beleza natural. Se até hoje é considerado tabu falar sobre sexo, imagine uma mulher, numa sociedade tradicional como a japonesa, em 1901, escrever sobre o tema. Os mamilos duros representam a excitação feminina, a flor pode ser metáfora para a vagina, tingida do supracitado carmim, vermelho, isto é, o sangue da primeira relação sexual de uma moça jovem a quem ainda os mistérios da sexualidade estão se revelando — para o seu prazer, “docemente”.

Último poema a ser comentado, pois o livro, embora bom, só traz 30 tankas:

20.
uma lágrima
eu assim      derramada
sem saber secar
nessa água      solitária
reluz      a lua cheia

Este texto é de uma tremenda imagem sensível e os tradutores conseguiram fazer um excelente trabalho aqui, que reforça a mensagem. Uma descrição do eu-lírico chorando sob a lua cheia que, por sua vez, é vista no reflexo das lágrimas de tristeza, visto os adjetivos usados, “derramada” e “solitária”. A angústia é tanta que não apenas a lágrima cai, mas o próprio eu-lírico se sente “derramado (a)” e não consegue (se) secar. Além disso, observe essa aliteração em /s/: SEM SAber SEcar / SOlitária, que sugere o soluço do choro. Ainda sobre a estética que reforça o conteúdo, perceba a assonância (repetição de vogais) da letra “a” presente em todos os versos, o que manifesta a claridade da lua nesta vogal aberta. Brilhante!

Como pode ser observado, Yosano Akiko foi uma poetisa sensível, contestadora e revolucionária em seu contexto, não apenas na sua obra, mas na vida como um todo (que está resumida no livro). Os seus textos têm estrutura rígida e sentimentos íntimos expostos, com toques de inocência e audácia ao mesmo tempo, o que torna a escritora dialética.

A antologia da editora UnB conta, ainda, com dezenas de páginas de estudo, tanto sobre a autora e a obra, quanto sobre o gênero tanka e modos de tradução, além dos poemas no idioma original, o que enriquece bastante a compreensão, interpretação e análise dos textos, e toda a bibliografia utilizada e recomendada para quem deseja se aprofundar nas pesquisas do ramo. Poderia contar com mais poemas da autora, pois foram apenas 30, mas já é um começo para conhecer e buscar aprender mais sobre a literatura japonesa.

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é graduado em Letras pela Faculdade de Santo André – Santo André – São Paulo.