sábado, 30 de julho de 2016

Resenha do livro "Os Sertões", de Euclides da Cunha

Os Sertões é a obra-prima de Euclides da Cunha. Publicado em 1902, o livro narra a história da Guerra de Canudos, no nordeste brasileiro. Escrito no período do Pré-Modernismo, a forma de contar os fatos é direta/objetiva, porém, por influência do Parnasianismo, a linguagem utilizada é complexa (o que reflete o teor da história).

Antes de iniciar a análise, é preciso comentar que Euclides da Cunha não era um escritor literário, mas um jornalista e engenheiro. Trabalhando para o jornal O Estado de São Paulo, Euclides foi enviado à área de combate como correspondente, para acompanhar e descrever as ações do exército e dos “rebeldes”, os seguidores de Antônio Conselheiro.

Chegando lá, o jornalista não encontrou nada do que havia escrito em artigos anteriores (sertanejos revoltados contra a república, que queriam trazer de volta a monarquia), nem verdades sobre o que diziam sobre os nordestinos (povo fraco e não civilizado), muito pelo contrário. Esse foi o motivo da escrita do livro.

Logo de início, Euclides percebe que o que separa o nordeste de outras partes do Brasil, mais do que a distância, é “o tempo” (CUNHA, 2011, p. 16). Em termos de progresso (construções, indústrias, sociedade, ideias etc.), os sertões estavam atrasados, ignorados, esquecidos, seguindo modelos de vida arcaicos.

De certa forma, pode-se dizer que o nordeste era para as áreas mais desenvolvidas do Brasil como o próprio Brasil em comparação a outros países até hoje em dia. E mesmo atualmente, quem pode ajudar o país, de dentro dele mesmo, não o faz.

Assim, o jornalista utiliza-se de seus conhecimentos e métodos científicos para tentar entender e explicar o motivo de tais situações, não como os românticos e simbolistas, de forma subjetiva, mas como os realistas e os naturalistas, através de pesquisas e observações. Com isso, o escritor propôs-se a desvendar o que é, de fato, o brasileiro, que, até então, era desconhecido ou conhecido somente uma ou outra personalidade.

É importante ressaltar essa questão do reconhecimento, pois o Pré-Modernismo foi uma ruptura com o olhar que se tinha sobre o próprio Brasil, um “inconformismo cultural” (BOSI, 2013, p. 354). Porém, apenas a visão e a vontade de descobrir e de ampliar o que já se sabia sobre o país mudaram, pois a forma continuou a mesma utilizada até então, no caso, uma escrita realista, mas em outro tempo (o que a faz neorrealista). Quem, depois, mudaram tanto o conteúdo quanto à forma de escrever e descrever nosso território, seres e cultura, foram os modernistas.

O livro é dividido em três núcleos (sub-capítulos): A terra, O homem e A Luta. No primeiro, o autor investiga as características de cada região do Brasil, desde o sul e sudeste até o nordeste, descrevendo o sertão como uma terra ignota, isto é, desconhecida, a qual as estradas são abandonadas, “(...) onde avançavam os rudes sertanistas nas suas excursões para o interior (...). Não a alteraram nunca” (CUNHA, 2011, p. 27). Terra seca, dura, difícil de vencer e de ser vencida.

É um capítulo extremamente difícil de ser lido, por conta de seus termos científicos e rebuscados, mas é nisso que está a riqueza do livro, pela quantidade de descrições. Vejamos, por exemplo, esta passagem:

(...) Verdadeiros oásis, têm, contudo, não raro, um aspecto lúgubre: localizados em depressões, entre colinas nuas, evoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como espectros de árvores; ou num colo de chapada, recortando-se com destaque no chão poento e pardo, graças à placa verde-negra das algas unicelulares que as revestem. (idem, ibidem, p. 29)

Além disso, note a quantidade de aliterações em [p] e de utilizações de imagens, o que forma, assim, uma prosa poética.

É neste capítulo, também, que numa passagem o autor revela-se muito à frente de seu tempo, percebendo o problema das secas contínuas do sertão e dando uma possível solução ao sugerir que transportem as águas do rio São Francisco para as outras áreas, além de aconselhar que façam inúmeras barragens e muros. O livro foi publicado em 1902, mas essas ações (principalmente a transposição do rio) só começaram a ser feitas há poucos anos — e, ainda assim, devagar.

Como todo bom escritor, Euclides deixa aberturas para o leitor já desconfiar do que virá ao longo da obra, quando, por exemplo, diz que só de olhar para aquele deserto do sertão, vê-se um “mar extinto” (idem, ibidem, p. 33). É o que será exposto depois, com as ideias de Antônio Conselheiro. Assim ele descreve toda a área por onde passou, as cidades, povoados, tudo, até chegar ao próximo capítulo do livro.

No segundo núcleo é descrito o Homem de cada região (jagunço, vaqueiro, gaúcho etc.). Seguindo a linha do determinismo (pois é possível dizer que o Pré-Modernismo é uma continuação do Realismo e do Naturalismo [BOSI, 2013]), cada local determina como os seus habitantes serão, sendo assim, o ser humano é reflexo e fruto de seu meio. Ora, se o sertão é uma área difícil de viver, quem consegue tal feito só pode ser alguém forte — não no sentido de corpo, porque os sertanejos são descritos como magérrimos e quase desnutridos, mas numa concepção de resistência à oposição.

Porém, mais do que isso, o jornalista detalha cada característica dos povos, diferente do romântico, que entendia por brasileiro somente os índios e os europeus, descritos de forma idealizada.

O escritor não observou empiricamente somente aquele a quem foi ordenado observar, o sertanejo, mas a um leque de tipos de homens brasileiros, desde as feições, passando pela personalidade até a roupa. Interessantíssima é a comparação que ele faz e explica o porquê das roupas do gaúcho, quase como as de festas, em razão de sua riqueza natural do ambiente, em contrapartida às do nordestino, que mais parecem uma armadura, por conta do couro duro. É realmente a roupa de alguém que vai à luta, rígida como o próprio dono.

Em Os Sertões são observadas as várias miscigenações do povo brasileiro e os seus resultados — “(...) mulato, o mameluco ou o curiboca, e o cafuz (...)” (idem, ibidem, p. 77). Como é dito: “(...) o brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima afirmado, só pode surgir de um entrelaçamento consideravelmente complexo” (idem, ibidem, p. 77).

Como ele afirma, “(...) Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. (...) Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos. A afirmativa é segura” (idem, ibidem, p. 79). E é por esse mesmo motivo, por não sermos unos, que, além da diferença de características, temos divergências de ideias e de ações, que ocasionam os conflitos. Assim se dará o terceiro e mais importante capítulo: A luta.

Ainda sobre as características, é importante lembrar como são intrigantes a fé e a crença sertaneja, como foi pontuado pelo escritor, pois ao mesmo tempo em que é um povo cristão, crê, também, nas lendas e nos mitos, tanto africanos quanto indígenas. Para o Euclides, um povo mestiço só pode ter uma religião mestiça.

Até então, o autor havia descrito somente o meio e os agentes que, agora, batalhariam. É uma regra do texto jornalístico manter a impessoalidade — e é o que faz Euclides da Cunha na maior parte do tempo. Ele não torce pelos soldados do exército vencer, nem para os sertanejos saírem vitoriosos, apenas os descreve. E nessas descrições percebe-se como os soldados da república são despreparados e o quanto a imagem dos nordestinos, de gente fraca, não passa de estereótipo.

Isso não deixa de ser críticas do escritor contra àquilo que ele mesmo fazia parte, para quem ele trabalhava. Não é uma opinião, mas uma constatação de que o que o governo republicano estava fazendo era errado, barbárie e crime.

Por outro lado, Euclides utiliza-se de técnicas literárias para narrar a história da Guerra de Canudos, não somente a do narrador em terceira pessoa (pois isso já há no jornalismo) ou a crítica à sociedade de sua época, mas a forma de detalhar os espaços e o tempo, cheios de imagens, comparações e usos de reticências, para deixar aquela sensação de reflexão, de descontinuidade da ideia. E é com este tipo de linguagem que o autor escreve o último capítulo do livro.

Depois de derrotarem três expedições do exército republicano e darem muitas baixas à quarta campanha — próximo ao desfecho da batalha, os militares, “Ao fim de três horas de combate, tinham-se mobilizado dous mil homens sem efeito algum (...)” (idem, ibidem, p. 563) —, os nordestinos persistiam lutando.

É, sobretudo, neste momento, que os juízos preconceituosos e condenatórios da parte inicial de Os Sertões transformam-se em admiração e respeito pelos sertanejos.

É preciso ressaltar que algumas afirmativas que Euclides da Cunha faz no começo do livro, como chamar os nordestinos de “raça inferior”, deve-se ao determinismo racial, aos ensinamentos e às tradições da época, as quais ele e a maioria aceitaram sem contestar.

Porém, por considerá-los assim, inferiores, é que se percebe que os sertanejos não mereciam nem deveriam receber toda aquela artilharia, transformando não só a linguagem euclidiana em épica, mas o próprio livro. É uma tragédia.

Ora, se o gênero épico narra em versos os grandes feitos de uma nação, Euclides narra em prosa as batalhas de Canudos. Geralmente, a narrativa épica possui heróis ou personagens fantasiosos/lendários; em Os Sertões existe a figura de Antônio Conselheiro, líder da cidade baiana. Aliás, pela descrição feita, Conselheiro assemelhava-se muito a Jesus, personagem bíblico. Não só quanto à aparência, mas aos ensinamentos religiosos também.

Antônio Conselheiro morreu após ver as duas igrejas da cidade derrubadas e todos os santos destruídos pelos tiros de canhões. Foi após ver este quadro que resolveu entrar em jejum, porém, daí não tornou a lutar. Aliás, mesmo o texto sendo objetivo, essa passagem é muito simbólica, pois foi nesse momento em que os sertanejos começaram a fraquejar. Perderam o local da crença religiosa (igrejas), perderam o líder, perderam a fé na cidade.

No entanto, as igrejas são materiais, os corpos são materiais, a cidade é material, a fé não. Os moradores e lutadores de Canudos ainda criam que Antônio Conselheiro voltaria. Eles realmente acreditavam que “(...) o profeta volveria em breve, entre milhões de arcanjos descendo (...) numa revoada olímpica, caindo sobre os sitiantes, fulminando-os e começando o dia do Juízo...” (idem, ibidem, p. 524). Por esse motivo que continuaram a lutar até o fim.

É por isso que mesmo sendo um livro de teor jornalístico, o autor conseguiu mesclar com a Literatura, dando possibilidades a inúmeras interpretações e estudos de diversas áreas (pois além dessas duas esferas, na obra há muita informação histórica, sociológica, filosófica, científica etc.).

Os capítulos são todos curtos, do tamanho de crônicas (que são textos ao mesmo tempo jornalísticos e literários), a maioria toma o formato de relato impessoal, tendo sempre ao final um resumo das baixas das batalhas. Há, também, outros capítulos que sempre fazem uma crítica pessoal às estratégias utilizadas pelos soldados (de certa forma, são textos de opinião/dissertativos).

Em suma, Os Sertões é um livro muito rico, um retrato direto do que foi a Guerra de Canudos, escrito de maneira muito rigorosa e científica, mas que, por conta das imagens, metáforas, antíteses nas descrições, figuras emblemáticas (como a de Antônio Conselheiro) e reviravoltas impensáveis e inesperadas, um leitor alheio à História do Brasil pode até pensar que é ficção, que é pura Literatura.

Como Euclides disse, na nota preliminar: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo” (idem, ibidem, p. 16). Um homem compromissado com a verdade de seu país. Reconheçamo-lo; conheçamo-nos.

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é graduado em Letras, pela Faculdade de Santo André (antigo IESA - Instituto de Ensino Superior “Santo André”), Santo André, SP.

Referências

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 49. ed. São Paulo: Cultrix, 2013.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011 (Saraiva de Bolso).

Análise da música "Somos quem podemos ser", da banda Engenheiros do Hawaii

“Somos quem podemos ser” é uma música da banda Engenheiros do Hawaii, lançada no álbum Ouça o que eu digo, não ouça ninguém, de 1988. A letra é muito interessante e bem trabalhada, tanto na forma quanto no conteúdo. Diferente de como a letra aparece em alguns sites, nesta análise, inseri alguns pontos e juntei alguns versos, para que ficassem mais corridos (o que não alterou o sentido da música). Vejamos.

Somos quem podemos ser

Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão;
Um dia me disseram que os ventos às vezes erram a direção
E tudo ficou tão claro, um intervalo na escuridão,
Uma estrela de brilho raro, um disparo para um coração.

A vida imita o vídeo, garotos inventam um novo inglês,
Vivendo num país sedento, um momento de embriaguez,
Somos quem podemos ser; sonhos que podemos ter.

Um dia me disseram quem eram os donos da situação,
Sem querer, eles me deram as chaves que abrem essa prisão;
E tudo ficou tão claro, o que era raro ficou comum,
Como um dia depois do outro, como um dia, um dia comum.

A vida imita o vídeo, garotos inventam um novo inglês,
Vivendo num país sedento, um momento de embriaguez,
Somos quem podemos ser; sonhos que podemos ter.

Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão,
Sem querer, eles me deram as chaves que abrem essa prisão.

Quem ocupa o trono tem culpa;
Quem oculta o crime, também;
Quem duvida da vida tem culpa;
Quem evita a dúvida também tem.

Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter...


//

O próprio título da canção já desconstrói uma ideia muito popular entre as pessoas idealistas, que é a de que somos quem queremos ser. Segundo este eu-lírico, as coisas não são bem assim (essa é a mensagem central), pois querer não é poder.

A música inicia, então, com um eu-lírico confessando que um dia disseram-no que as nuvens não eram de algodão, isto é, tudo, as coisas, a vida, etc. não são tão “bonitinhas” como pensamos e idealizamos. Ficamos sabendo, neste primeiro verso, que o eu-lírico passou de um não-saber para um saber, ou, de um saber-parcial para um saber-integral/mais amplo. (Se estivéssemos analisando a música linguisticamente, sob o percurso gerativo de sentido, este seria o Nível Fundamental — mas deixemos essa ideia para outro dia).

Em seguida, diz que às vezes os ventos erram a direção, indicando que nem sempre as coisas seguem o seu fluxo ou seriam (e serão) como deveriam ser. Este verso, da forma como está sendo analisado, criará uma contradição com outra ideia da letra, mas o álbum todo trabalha com contradições. O próprio título do cd já diz: Ouça o que eu digo, não ouça ninguém.

Percebamos, também, a anáfora (uso das mesmas palavras ou frases) em “Um dia me disseram que” utilizada nos dois primeiros versos, para que o trecho fique na mente, além dessa pequena aliteração (repetição de letra) em /v/: nuVENS, VENtos, VEzes. Continuemos.

É interessante como, ao mesmo tempo, a banda brinca com ideias e imagens (fanopeia) ao dizer que “tudo ficou tão claro, como um intervalo na escuridão”, pois sabemos que a claridade/iluminação é uma metáfora para o conhecimento e saber, mas como o eu-lírico já estava falando sobre nuvens, fica, também, a imagem de nuvens se dissipando, terminando a escuridão. O próximo verso confirma a metáfora: “uma estrela de brilho raro, um disparo para um coração”.

Ao saber que as nuvens não eram de algodão, que as coisas não são como imaginamos ser, o eu-lírico foi iluminado pela luz de trás das nuvens; foi como um disparo em seu coração, que o fez despertar. Interessante a ordem dessas duas palavras: disPARO/ PARA. É como se fosse um eco do próprio disparo, que, aliás, ouvimos ao fundo.

Em seguida, no refrão, o eu-lírico deixa de falar sobre o passado e lança afirmações sobre o presente: “A vida imita o vídeo, garotos inventam um novo inglês/ Vivendo num país sedento, um momento de embriaguez,/ Somos quem podemos ser; sonhos que podemos ter”.

Após saber que as coisas nem sempre são como aparentam, ele percebe os problemas da sociedade, que vive o “parecer”. Ao invés da T.V, novela, filme, enfim, vídeo, retratarem e imitarem a vida, a vida e o povo são quem imitam o vídeo e a mídia. É uma inversão de valores (a mesma que faz com que os oprimidos queiram ser como os opressores — como diria Paulo Freire —, ao negarem sua cultura e realidade, que não são mostradas nos vídeos, na TV, para seguirem a única que é mostrada e valorizada). Aliás, por falar nisso, é assim que eles negam sua própria língua para criarem um “novo inglês”.

O eu-lírico percebe que vivemos “num país sedento, um momento de embriaguez”. Gostamos da ilusão, pois não queremos viver (ou não conseguimos perceber) a realidade. É impossível não se lembrar da frase do filósofo Nietzsche após conhecê-la:

Os povos só são tão enganados porque procuram sempre um enganador, isto é, um vinho excitante para seus sentidos. Contanto que possam obter esse vinho, contentam-se com o pão de má qualidade. A embriaguez lhes interessa mais que a alimentação — esta é a isca com que sempre se deixam pescar! (...) (NIETZSCHE, 2013, p. 221).

A canção é de 1988, mas até hoje as pessoas estão embriagadas, até hoje imitam o vídeo (que as embriagam mais ainda); até hoje, por beberem demais, não percebem que seus semelhantes e vizinhos — e até eles próprios — sentem fome. Até hoje pensam que as nuvens são de algodão. O pão e o circo continuam a funcionar, mas sob outras formas.

Por fim, termina-se a estrofe com o eu-lírico dizendo que “Somos quem podemos ser; sonhos que podemos ter”, quebrando a ilusão de que somos o que queremos ser. Somos limitados pelo nosso meio, querer não é poder, como mente a mídia, com sua falsa meritocracia, ou os livros de autoajuda, com suas lições sobre empenho e fé. Não é porque queremos que as nuvens sejam de algodão que elas serão; não é querendo ser rico que se torna rico.

Como os Engenheiros disseram numa música do mesmo álbum, intitulada A verdade a ver navios: “É muito engraçado que todos tenham os mesmos sonhos e que o sonho nunca vire realidade”. Que o diga a maioria os meninos que desejam ser jogadores de futebol, para imitarem o que assistem na T.V/vídeo. Que o digam todos os cidadãos que querem apenas viver bem e dignamente, mas que não podem. Até os nossos sonhos são condicionados (pelo o que podemos ver).

Não podemos nos esquecer de prestar atenção na linguagem utilizada, pois é proposital e bem trabalhada, faz parte da riqueza da música. Temos, novamente, uma aliteração em /v/ : VIda/ VÍdeo, inVENtam, noVO, VIVENdo. E, também, uma paronomásia (palavras parecidas): Somos, sonhos.

Depois, volta-se à ideia do início da letra: o eu-lírico que não sabia (muito) sobre a vida, passa a saber. Assim como não sabia que as nuvens não eram de algodão, não sabia quem eram os donos da situação, mas depois que alguém disse/mostrou, passou a saber.

Novamente, a metáfora da libertação pelo conhecimento: ao dizerem quem é que manda na situação (que também manda nos vídeos, que, por sua vez, deixam o povo sedento e embriagado), sem querer o libertaram. Depois do ocorrido, tornou-se fácil (porque antes era “raro”) perceber as coisas ao seu redor, pois tudo ficou claro. Além disso, percebamos a ordem em que aparecem as sutis palavras, formando um jogo interno de vocábulos: “comum, Como um, como um, comum”. Repete-se o refrão e mais duas frases já proferidas.

Por fim, a última estrofe (e a mais rica, tratando-se de técnicas). No início, o eu-lírico falava sobre o passado, no qual passou de um não-saber para um saber. Depois começou a falar sobre o presente, o qual com a sua nova visão de mundo constatou algumas atitudes sociais. Agora, com todo o seu conhecimento, criou sua própria opinião e julgamento, que é a última estrofe.

“Quem ocupa o trono tem culpa / Quem oculta o crime, também; / Quem duvida da vida tem culpa; / Quem evita a dúvida também tem”. Culpa pelo o quê? Pela situação. A culpa não pode ser das vítimas, que somos nós, mas dos “donos da situação”, que estão no trono. No caso de um governo, a culpa é de todos os políticos; no caso da exploração dos pobres, quando não lhes pagam o que devem/deveriam, (quase) como escravidão, é dos donos/capitalistas das empresas.

Porém, tem culpa “quem oculta o crime também”. Aqui somos todos nós os responsáveis. Todos aqueles que veem o crime acontecer, as coisas erradas, os problemas, mas não falam e não fazem nada, também são culpados pela situação.

Quem duvida da vida, isto é, acha que as coisas não podem mudar, também são culpados. Este verso, junto do que diz que “os ventos às vezes erram a direção“, criam a contradição que foi citada no início do texto, pois aqui o eu-lírico diz, implicitamente, que as coisas podem mudar, criando conflito com o título da música e verso: “Somos quem podemos ser”, que demonstra o determinismo (seja lá qual for).

Entretanto, sempre há exceções.  Era para o eu-lírico ainda acreditar que as nuvens eram de algodão, era para ainda não saber quem eram os donos da situação, mas graças a alguém que o ensinou, houve a quebra do paradigma. Agora é ele quem está ensinando o que sabe.

E, por fim, o último verso: “Quem evita a dúvida também tem”. Estes que evitam as dúvidas são semelhantes aos que ocultam os crimes, pois sabem de algo, mas preferem mentir e omitir. Ocultar crimes é crime também. Ao final, mostra-se que a situação, boa ou ruim, é criada por todos nós, não somente por um ou outro.

Esta última estrofe é uma demonstração de como se cria um jogo de palavras com tanta aliteração e paronomásias: oCUPA, CULPA, oCULTA, duVIDA, da VIDA, DÚvida, eVITA. Há, também, anáforas, usadas no início dos quatro versos, com a palavra “Quem”; no segundo e quarto verso, com “também”; e no final do primeiro e terceiro, com a palavra “culpa”.

Se quiséssemos falar mais, poderíamos dizer que, no primeiro e segundo verso da última estrofe há encontros consonantais, com as palavras “trono” e “crime”, exatamente no mesmo local: (n)a quarta palavra. E que é interessante terem usado as palavras “duvida” e “dúvida”, pois uma é verbo e a outra é substantivo. Coincidência, não tem nada a ver com o sentido da estrofe, mas VITA (que lemos em “evita”) é “vida” (palavra que foi usada no verso anterior) em latim.

No último verso repete-se a frase “Somos quem podemos ser; sonhos que podemos ter.”, que já foi discutida acima.

Em suma, é isto. Espero que assim como o eu-lírico aprendeu coisas novas sobre a vida, quem veio ler este texto tenha aprendido um pouco (tanto sobre o conteúdo, quanto sobre a forma e técnicas) também; que algumas passagens tenham se tornadas mais claras e que a partir daqui surjam mais dúvidas e buscas. As nuvens não são de algodão e o trabalho nas e das letras não pode passar em vão.

Referências

NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Editora Escala, 2013.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Resenha do livro "O triste fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto

BARRETO, Lima. O triste fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011 (Saraiva de Bolso).

O triste fim de Policarpo Quaresma é um romance pré-modernista, de Lima Barreto, publicado em 1911. O livro narra a história de Policarpo Quaresma, um homem ingênuo, idealista e fanático nacionalista, que não só acredita no Brasil como o melhor país, como tenta fazer dele um lugar melhor. Porém, ideal e real não significam a mesma coisa.

Esta versão conta com 240 páginas, que se dividem entre três partes. A primeira é uma apresentação do contexto e de quem é o major Quaresma; a segunda trás o afastamento de Policarpo para o campo, tentando ajudar e conhecer o país através da agricultura; e o último capítulo mostra a tentativa do personagem principal melhorar o país por meio da política.

Pode-se dizer que o major Policarpo Quaresma é uma caricatura do que seria o romântico, tão idealizador que não percebe sua situação de diferente de toda a sociedade. Policarpo é um homem extremamente moralista, tradicionalista e estudioso, mas somente dos autores e de tudo o que vem a ser brasileiro.

Logo de início, todos estranharam que um homem tão respeitável queria aprender a tocar violão, que na época era considerado “malandragem”. Porém, se o major quis aprender, era porque ele acreditava que “A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa (...)” (p. 17).

O narrador, ao descrever os livros na estante do personagem principal, denota todo o espírito nacionalista de Policarpo. Alguns dos autores: Bento Teixeira (poeta barroco), Gregório de Matos (idem), José de Alencar (escritor romântico) e Gonçalves Dias (poeta romântico indianista e nacionalista). Dos dois últimos escritores está toda a obra. Dentre os estrangeiros, está Darwin, que, como se sabe, visitou e relatou sobre o Brasil.

Na verdade, “major” é apelido, porque “Logo aos 18 anos quis fazer-se militar; mas a junta de saúde julgou-o incapaz. (...) Impossibilitado de evoluir-se sob os dourados do exército, procurou a administração e dos seus ramos escolheu o militar” (p. 19). Sabia tudo sobre as terras, os rios, os climas etc. Todos os dias, contava aos amigos alguma informação nova que descobrira, embora alguns não quisessem saber (e ele não percebia).

Uma característica da escrita de Lima Barreto é a maneira simples de escrever — que o fez ser muito criticado na época —, e sempre que pode, ela vem acompanhada de um sarcasmo. Leiamos esta descrição, por exemplo:

(...) Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da alta sociedade suburbana. É uma alta sociedade muito especial e que só é alta nos subúrbios (...) o orgulho da aristocracia suburbana está em ter todo dia jantar e almoço, muito feijão, muita carne-seca, muito ensopado — aí, julga ela, é que está a pedra de toque da nobreza, da alta linha, da distinção (p. 23)

O livro faz muitas críticas às ações do Brasil e às políticas do governo de Floriano Peixoto, militar e ditador brasileiro, durante a Primeira República. Não só a ele, mas também aos “tipos” de militares (que sempre existiram). É o caso do general Albernaz
(...) que nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de artilheiro. Fora sempre ajudante de ordens, assistente, encarregado disso ou daquilo, escriturário, almoxarife, e era secretário do Conselho Supremo Militar, quando se reformou em general. Os seus hábitos eram de um bom chefe de seção e a sua inteligência não era muito diferente dos seus hábitos. Nada entendia de guerras, de estratégia, de tática ou de história militar; a sua sabedoria a tal respeito estava reduzida às batalhas do Paraguai, para ele a maior e a mais extraordinária guerra de todos os tempos. (p. 31).

Não é uma crítica somente ao personagem, mas a todos aqueles que, como sabemos, fazem carreiras dentro do exército, sem fazerem nem saberem nada (há vários deles no romance). Como quem estava no governo era um militar, a crítica estende-se e aplica-se aos políticos também. Até hoje ela é válida, posto os “exemplos” de representantes que “temos”.

Lima Barreto foca muito no quanto as pessoas valorizam as aparências, ora na profissão, ora em casa. Este general, por exemplo, valoriza a sua posição, o falso moralismo, e quer casar a filha, para se livrar dela, mesmo não gostando de seu genro, por causa de sua profissão (dentista); todavia, na rua, finge que não está gostando de ter de casá-la e separar-se dela. Enquanto isso, outras moças desejam se casar sem nem saberem o motivo, somente porque manda a tradição, somente por hábito.

Assim é feita a crítica ao casamento e ao Romantismo (como se não bastasse a sátira no personagem Policarpo) também. As mulheres casam-se pela moralidade; os homens, para conseguir bens. Com isso, não só o casamento, mas a família também é colocada em dúvida.

As instituições privadas não passam batidas pelo olhar agudo do escritor. Num diálogo entre um personagem e o dentista, eis que este profere a seguinte frase: “— Atualmente, não vale nada, meu caro senhor (...) Com essas academias livres... (...) Um curso difícil e caro, que exige cadáveres, aparelhos, bons professores, como é que particulares poderão mantê-lo? Se o governo mantém mal...” (p. 49).

O livro ironiza o pensamento das pessoas sobre ler e escrever, como já é característica dos contos do autor. Quando Policarpo Quaresma fez um requerimento ao ministro, foi chamado de louco e que o motivo da loucura era a leitura. Ora

(...) — Pra que ele lia tanto? (...) — Telha de menos (...) — Ele não era formado, para que meter-se em livros? — É verdade (...) — Isso de livros é bom para os sábios, para os doutores (...) — Devia até ser proibido (...) a quem não possuísse um título ‘acadêmico’ ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças (...) (p. 57)

São pensamentos dos personagens (da elite da época, dos militares) que continuam em nossa sociedade brasileira, que até hoje não lê nem quatro livros por ano; que acredita que ler e escrever é só para as elites. Além disso, percebamos que o autor escreveu “Pra” num dos diálogos, mostrando que nem os ditos cultos usam a norma privilegiada/padrão da língua em todos os momentos. Lima Barreto foi um dos primeiros a inserir características de várias camadas e classes do Brasil na Literatura (esta é uma das marcas dos pré-modernistas, investigar quem realmente é o brasileiro).

Numa das descrições que o narrador faz de Policarpo Quaresma, é dito que ele passou a maior parte de sua vida dentro dos livros e de seu sonho, “Desinteressado de dinheiro, de glória e posição (...)” (p. 61). Uma espécie rara de homem, que quando o encontramos, temos mais esperança. Isso acontece porque o Romantismo não é somente uma escola artística, mas uma forma e ideal de vida que sobrevive até hoje. É como a Luísa, do Primo Basílio, de Eça de Queirós, que mesmo estando errada, causa dó em muitos leitores, que se identificam com ela, por serem românticos também.

É muito interessante a forma como Lima Barreto satiriza, de forma sutil, tudo e todos, mostrando que os jornalistas não são honestos ao roubarem num jogo de cartas (quem dirá em suas matérias?); ou os oficiais do governo, que possuem fama de sábios por terem tirado boas notas na faculdade (e o pior é que essa valorização da nota ao invés do conhecimento permanece até hoje, entre nossos alunos) e ficarem em silêncio na maior parte do tempo — isso até lembra uma crônica chamada Jargão, do Luís Fernando Veríssimo —, mas confundem tupi com grego, por conta dos “yy”. Enfim, tudo gira em torno da aparência.

Escrito numa época pós-escravagista, o livro traz muitos momentos que denotam o preconceito e a insatisfação (tanto dos ex-escravos, quanto dos ex-donos) da época. O amigo de Policarpo, Ricardo Coração dos Outros, por exemplo, cria uma rixa com outro tocador de violão, por dois motivos: o primeiro, pelo o homem ser negro, pois isso “desvalorizaria” o instrumento; e o segundo, porque esse homem dizia que as músicas tinham que seguir regras, criar uma mensagem, não serem puro sentimento. É uma ironia o nome do personagem possuir “Coração dos Outros”, quando ele pensa somente em si mesmo.

Termina-se o primeiro capítulo com o major Quaresma sendo afastado de seu posto e de seus amigos, num manicômio, por ser considerado louco ao sugerir um requerimento na lei para que falássemos o tupi, que é a nossa verdadeira língua (percebamos como chega a ser cômico o nível do patriotismo).

Depois que ele sai de lá, não volta para a cidade, pois decide mudar de vida: agora quer viver no campo, ajudar o Brasil através da agricultura. Sua irmã, como sempre, o acompanhou, até mesmo na roça. “(...) Decerto, ela o estimava, mas não o compreendia. (...) Por que não seguira ele o caminho dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira! (...)” (p. 97). A maior parte das mulheres no livro age assim, sem vontade, apenas por hábito e aparência.

Muitas pessoas tentam convencer o major a voltar para a cidade, que viver na e da roça não dá mais lucro, que as terras já estão cansadas, mas ele insiste que as melhores terras e climas estão no Brasil, basta trabalhar. Além disso, outros personagens, por serem ruins, pensam que o major foi para a área rural para fazer fama e candidatar-se depois. É interessante que até hoje o Brasil sobrevive, em grande parte, da agricultura (e muitos agricultores estão na política).

Há vários momentos naturalistas no livro, como as descrições das pessoas, que são comparadas a animais, ou as dualidades entre os locais de ricos e pobres, com enfoque nos dos pobres, pois estes são desconhecidos da burguesia (que não conhece o Brasil).

Numa das visitas da sobrinha de Quaresma, durante o caminho da cidade à roça, eis o que ela constata, através do narrador:

O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ela tinha dos roceiros ideia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, por que as casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquele sapê sinistro e aquele “sopapo” que deixava ver a trama de varas, como o esqueleto de um doente. Por que, ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas? E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um carneiro. Por quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador. Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. Não podia ser preguiça ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o homem tem sempre energia para trabalhar. As populações mais acusadas de preguiça trabalham relativamente. Na África, na Índia, na Cochinchina, em toda parte, os casais, as famílias, as tribos, plantam um pouco, algumas coisas para eles. Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles párias, maltrapilhos, mal-alojados, talvez com fome, sorumbáticos!... (p. 128).

Esta moça é uma das melhores personagens, questionadora, inquieta, diferente de todas as outras mulheres do romance. Após fazer esse questionamento, ela lamenta ser mulher, pois se fosse homem, poderia viajar mais e estudar os motivos e as soluções para tais situações. Não deixa de ser uma crítica, também, ao patriarcado da sociedade.

Interessantíssimo é um diálogo que ocorre entre ela e um ex-escravo, trabalhador da roça de Policarpo. Quando questionado sobre o motivo de não plantar para si mesmo, ele diz que uma coisa é pensar, outra é fazer. Não dá para esperar pelos alimentos crescerem. “(...) — Terra não é nossa... E ‘frumiga’?... Nós não ‘tem’ ferramenta... isso é bom para italiano ou ‘alamão’, que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...” (p. 129). Além do conteúdo, percebamos como o pobre realmente entra na história, com suas características linguísticas.

Ainda há quem precise ler estas palavras ou estudar História para saber que meritocracia é uma farsa, que os negros sempre foram postos de lado, postos à margem (por isso são chamados “marginais”, não com essa outra conotação que a palavra adquiriu com o tempo) de nossa sociedade; que os brancos europeus, imigrantes, tiveram privilégios em nossas terras e que isso virou herança. Além disso, critica-se também o capitalismo, no qual a burguesia detém os meios de produção, fazendo com que o pobre sempre tenha que trabalhar para o rico. Enquanto um dá uma miséria, a qual chama “salário”, o outro dá a vida, o tempo e a força.

Depois de muita dificuldade com os aparelhos científicos para usar na terra (ora, sendo Quaresma um idealista romântico, é claro que ele não se daria bem com a Ciência), prejuízos com as vendas, trabalho com as formigas e ver que o governo ditador estava recrutando gente, o major decide voltar para a cidade. Faria bem ao país através da política, mesmo que ditatorial (a qual ele chama de “forte”).

O terceiro capítulo é mais forte do livro, o qual a menor crítica feita ao governo era motivo para mandar prender e matar. A violência justificava tudo. Sobre Floriano Peixoto (o ditador militar),
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se. Levada a coisa ao grande o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte (...) (p. 170).

Quaresma, assim como a maioria dos homens da época, não percebia isso como um mal, pois estavam “encantados” pela força e pelas palavras do ditador. Assim que pôde, levou um manuscrito seu para Peixoto. Esse texto trazia ideias para revolucionar o Brasil, porém, não teve a atenção desejada. Ainda assim, conseguiu o posto de um verdadeiro major.

Chega a ser engraçado a forma de Quaresma liderar os soldados na hora do combate, na hora da prática, ao procurar teorias nos livros para ter mais eficiência. Além disso, havia muita bondade com os soldados de nível mais baixo.

Depois de alguns meses de revolta do povo contra o governo, tudo se tornou monótono. A sociedade toda se sentia mal, o próprio major se sentia triste por ter seu manuscrito não levado a sério, por ser chamado de visionário ao pedir reforma agrária para o ditador, pedir que desse emprego para todos, para que, assim, o país pudesse ser melhorado.

Depois de uma triste carta enviada à irmã, na qual ele conta suas vivências na guerra, suas tristezas e memórias, a contradição de termos tecnologia avançada, mas mentes e homens retrógrados, o personagem principal vai se tornando, aos poucos, niilista, percebendo qual era a verdadeira situação do país, que tudo o que ele pensava era sonho e fantasia; que a crise financeira, antes de tudo, é ética, moral, intelectual, política, tudo. Até hoje não a superamos.

Policarpo Quaresma é preso até a morte, num triste fim, como já apontava, desde o início, o título da obra. Tido como traidor, um homem que sempre quis o melhor para o seu país. No fundo, ele percebe que todo seu empenho e lutas não valeram nada; que os livros mentiam; que as terras, os climas e a hospitalidade do Brasil não passam de aparência.

Fica-nos a mensagem do quanto o patriotismo e o idealismo podem fazer mal à sociedade, embora pareçam bons. Os líderes ruins não são criados do nada, mas são sustentados pelo próprio povo que vê neles ídolos e heróis.

O triste fim de Policarpo Quaresma é um excelente livro, que nos mostra muitas facetas do brasileiro e do próprio ser humano, além de ser um resgate à história de nosso próprio país, apontando problemas tanto quanto possíveis soluções. Afinal, até hoje não tivemos reforma agrária, até hoje temos ultranacionalistas ignorantes que saem às ruas sem nem saberem o que estão fazendo.

Escrito de forma simples e corrida, Lima Barreto nos ajuda a conhecer a nós mesmos. É recomendável a todos aqueles que gostam de Literatura brasileira e realista (pois pode-se dizer que, de certa forma, o Pré-Modernismo foi uma continuação do Realismo e do Naturalismo).

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é graduado em Letras, pela Faculdade de Santo André, Santo André, SP.

O Power Metal, a música, a realidade e o futuro. Coincidências?

Todo artista está além da maioria de sua época, sempre percebendo características, normalidades, anormalidades e problemas de sua sociedade. Embora não se possa dizer que eles sempre nos trazem soluções, pode-se dizer que eles são como antenas de um povo, apontando sempre para as consequências e futuras necessidades, sejam locais ou universais; sejam conscientes ou não.

Se fôssemos filosofar (embasadamente em Schopenhauer), diríamos que é porque o artista se torna uno ao mundo, ele representa as coisas como elas são, como uma vontade de representação, mas não discutiremos o tema. Sabemos que isso ocorre independentemente do tipo de artista, mas aqui trataremos somente do músico, mais precisamente, do Heavy/Rock. Não será um texto longo, somente serão apontadas algumas pequenas e poucas coincidências.

Assim como é interessante o fato de pessoas, de diferentes lugares e épocas, terem feito músicas semelhantes, ou na letra ou no ritmo e melodia, sem que tenham se conhecido e ouvido umas às outras, também é curioso que indivíduos de uma mesma época, mas de lugares diferentes, tenham feito — na verdade, criado — uma sonoridade nova e relativamente parecida. Seria, talvez, uma intuição dos gênios?

Ao longo da história do Heavy/Rock vimos aparecer, em alguns períodos, vários tipos de bandas e gêneros: Hard Rock, Progressive, Punk, Heavy Metal e seus subgêneros etc. O que mais conheço, embora conheça pouco, é o Power Metal. É sobre ele que falarei.

Sabemos quais são as maiores características do Power: vocais limpos, agudos e em notas longas, guitarras rápidas, baixo rápido, bateria em bumbo duplo, solos em guitarras duplas, teclados, violinos, corais de vozes, letras positivas e fantasiosas, geralmente sobre lendas ou ficções medievais (até mesmo aristocráticas). Enfim, quase uma volta ao passado (por acaso o presente não possuía mais tal magia e encantamento? Um descontentamento com o real e presente?), uma utopia.

A questão do instrumental vem da vontade de pegar o que já estava sendo feito há um bom tempo por bandas como Deep Purple (por causa do guitarrista Ritchie Blackmore e do tecladista Jon Lorde), Rainbow (além do Blackmore, por causa do Dio e suas letras), Judas Priest (por conta do vocalista Rob Halford), Iron Maiden (não tanto pela técnica, mas velocidade do Steve Harris; e, também, pela potência vocal do Bruce Dickinson) e outras antes de 85, e levar além. Mas e a temática?

Dizemos que, no rock, o primeiro a iniciar esse tema foi o grande Ronnie James Dio, ainda no Rainbow; depois, no Black Sabbath e, por fim, em sua carreira solo. OK, Dio foi o primeiro num tempo em que ninguém fazia isso, mas, depois, no final dos anos 80 até a metade dos anos 2000, surgiram inúmeras bandas de Power Metal que, incansavelmente, trabalharam este tema. Não é uma mera questão de cópia e reprodução, mas sim, de identificação.

Dentre as primeiras bandas que iniciaram o que chamaríamos/chamamos de Power Metal estão o Helloween, da Alemanha; o Stratovarius, da Finlândia; e o Viper, do Brasil (há outras e de outros países, mas o texto será curto). Três bandas de e em locais diferentes que tiveram ideias parecidas quase ao mesmo tempo: metade dos anos 80, ainda período de guerra fria. Isto é, num momento de tensão, algumas bandas começaram a apontar não para a realidade, mas para a fantasia.

Na Literatura, principalmente no período do Romantismo e do Simbolismo, momentos de descrença, os poetas e escritores começaram a escrever sobre ideais, lugares exóticos, heróis (precisamente no Romantismo), liberdade, enfim, sobre fugas do real. O mesmo aconteceu neste período do Heavy/Rock, no Power Metal, mas enquanto aqueles, nos respectivos períodos, foram para o lado “negativo”, estes foram para o lado “positivo”.

Enquanto este gênero buscava fugir dessa atmosfera pesada, através de letras positivas e irreais, ao mesmo tempo, um outro movimento trazia à tona a realidade e o pessimismo — e até niilismo — do ser humano, vestindo uma roupagem do Hard Rock dos anos 70, mas mais “sujo” e carregado: o grunge.

No entanto, parece que o que mais prosperou foi o Power, não só na duração, que foi forte até a metade dos anos 2000, como também sobre o que ele buscava: a fantasia. Aquilo que o Power pregava veio de uma forma diferente e atingiu a quase todos a partir dos anos 90, e continua atingindo cada vez mais. A fantasia e a fuga do real vieram em forma de Internet. Não é real nem irreal, mas os dois de forma virtual e digital.

Pois bem, para onde as antenas dos artistas do Heavy Metal Melódico (para usar um “sinônimo”) apontaram, de certa forma, chegamos. Conforme a internet ficava mais popular, mais bandas desse gênero apareceram e se consolidaram. Como havia dito, não é somente moda e reprodução, é identificação. O artista observa, pressente e faz; o público se identifica, porque é realmente o que eles precisavam — ao menos naquele momento.

Quando a vontade não é mais aquela, quando o novo já é comum, perde a graça e some. Por isso, as bandas que vão na moda não duram: saturam. Hoje, quase todos possuem acesso à internet, ao mundo virtual, que é a fuga do real; hoje, quase ninguém mais monta uma banda de Power Metal que cante sobre fantasia e tudo o que virou clichê. Ainda há as bandas de Folk e outros gêneros, mas são outros conceitos e outros porquês. As próprias bandas clássicas e essenciais mudaram sua forma de tocar e compor, porque o mundo também mudou.

Fico pensando, agora, quais são e serão as bandas e artistas que estão, com suas antenas, apontando para o futuro? Serão mais necessidades ou consequências? Fico com receio se, a partir de agora, mais bandas vierem com a mesma ideia dos últimos álbuns do Megadeth e Dream Theater: a distopia. Coincidência, pois é o oposto da utopia (que em algum momento foi criada).

Uma pequena reflexão #6: Ausência, presença, consciência e sofrimento.

Meu pai e irmã viajaram recentemente, mesmo sabendo que, possivelmente, fariam muita falta, não tanto para mim e para a minha mãe, que compreendemos os motivos, mas para o Rambinho, o cachorro.

A ideia que ficou enquanto não saíam é a de que ele sofreria com a ausência, pois os dois eram os mais próximos dele. Então, no dia da partida, pediram para eu ir caminhar com Binho (este é um de seus apelidos, assim como o “Zinho” — há vários outros, todos no diminutivo), para que não fossem vistos indo embora. Fomos. Cada um para um lado diferente.

Hoje, passado alguns dias, percebo que não houve tanta falta assim. O apego que havia para com eles passou para mim. Levamos (eu e ele) a nossa mãe até o ponto de ônibus todos os dias e foi aqui que notei algo interessante.

Assim que vejo o ônibus chegar, já me despeço e continuo o passeio com o Zinho. Logo no primeiro dia que levamos a mãe para o ponto, quando o ônibus passou por nós, Rambinho olhou para trás, para onde estávamos, para o ponto. Não somente uma vez, mas até terminarmos aquela rua. Era como se dissesse: “Onde está a mamãe? Ela estava com a gente até agora”.

Impossível ficar sem lembrar das pessoas que perderam alguém, parentes, amigos ou conhecidos, em questão de segundos ou minutos, seja porque morreram em acidentes ou porque sumiram.

Os animais, em geral, sofrem sem saber o motivo (o que para alguns filósofos é o pior tipo de sofrimento), por falta de consciência, mas o ser humano sofre mais, por conta de ser o único animal metafísico. Somos metafísicos por causa de nossa mente e de nossa linguagem, que permitem que pensemos e falemos sobre o passado, presente e futuro (mesmo ele não existindo).

Não só isso, os animais, se sentem culpa de algo, é por terem-no feito. Nós, não. Sentimos culpa por ter agido e por não ter agido; sentimos medo por algo que não aconteceu (ainda) e acreditamos no que não existe (toda fé e esperança só os são por não serem certeza — positiva ou negativa — ainda; toda fé/esperança é uma negação da mais possível realidade). Quantas vezes perdemos tempo lembrando e sofrendo por algo que não foi dito, tocado ou ouvido? 

Em alguns momentos também somos como os animais: sofremos sem saber o motivo. É a ausência da percepção da realidade; é a carência de consciência; é a alienação; é a falta de informação e de ferramentas para aprender a se perceber e ver o que nos cerca.

Termino a reflexão revelando que, assim como o Binho ficou olhando para o ponto de ônibus onde estava a mamãe, no dia em que meu pai e minha irmã saíram, quem ficou olhando para trás, até desaparecerem de vista, mesmo tendo consciência do que estava acontecendo e do que acontecerá (sua volta, em breve), fui eu.