sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Resenha de "O homem duplicado", de José Saramago: a perda, a busca e a construção do eu


Muitos já escreveram sobre a possibilidade de haver pessoas iguais num mesmo tempo e lugar. Mark Twain, grande escritor norte-americano, criou uma excelente obra, conhecidíssima, chamada O príncipe e o mendigo (1882), na qual dois meninos iguais são criados em diferentes contextos e depois cada um vive a vida do outro. Um livro repleto de críticas e reflexões do autor sobre a sociedade de sua época.

Meio século depois, Aldous Huxley revolucionou a literatura com sua obra-prima, o Admirável mundo novo, de 1932. Nesta distopia não há apenas duas pessoas iguais, mas dezenas! Nas palavras do próprio livro:

Gêmeos idênticos — mas não em insignificantes grupos de dois ou três, como nos velhos tempos da reprodução vivípara, quando um ovo se dividia às vezes, acidentalmente, e sim em dúzias, em dezenas, de uma só vez.
(...) Homens e mulheres padronizados, em grupos uniformes. Todo o pessoal de uma pequena usina constituído pelos produtores de um único ovo bokanovskizado.
— Noventa e seis gêmeos idênticos fazendo funcionar noventa e seis máquinas idênticas! (...) Sabe-se seguramente para onde se vai. Pela primeira vez na história. (...) “Comunidade, identidade, estabilidade” (HUXLEY, 2014, p. 25 – 26)

Percebe-se o viés de ficção científica tomado e a crítica que Audous faz.

Mais moderno, José Saramago escreveu uma ficção sobre o mesmo tema, mas sob outros olhares e situações: O homem duplicado (2002). Nela, um homem normal, mas de nome único, Tertuliano Máximo Afonso, é um professor de História que, um dia, ao assistir a um filme, percebe que um dos atores secundários é igualzinho a ele. Depois do susto, o protagonista tenta descobrir quem é esse intérprete.

Como é característica do autor, “a ficção de José Saramago ergue-se sobre um tripé, composto pela História, os temas imprevistos, originais, e a ideologia” (MOISÉS, 2008, p. 527). Em O homem duplicado, o tempo histórico é o presente, o tema inusitado é a “clonagem” e a ideologia é perda da identidade do homem moderno num mundo globalizado. Outra marca do escritor é o tempo que, como sempre, é cronológico, nunca psicológico. (MOISÉS, 2008).

O romance já começa com o protagonista apresentando o seu cartão de identidade numa locadora, lugar onde ele adquirirá o filme no qual encontrará um homem igual a ele. Não é à toa que uma narrativa sobre identidade comece apresentando um objeto relacionado ao que será discutido, que um professor de História tenha um nome histórico (Tertuliano) e que seja idêntico a um ator secundário (não a um dos principais): alguém que quase ninguém dá atenção. E mais: um ator, isto é, um profissional que a cada filmagem interpreta outro papel, não tem uma constância, não tem uma identidade fixa.

Uma das diferenças entre as pessoas, além da aparência, é o nome (e, logo, os documentos), porém, o protagonista de O homem duplicado tem vergonha do seu diferencial, “Tertuliano Máximo Afonso”, como aponta o início da história, quando, ao fazer a sua assinatura, escreve apenas os dois últimos nomes, alegando ser mais rápido dessa forma.

Tertuliano é uma pessoa comum, um professor de História que a tudo se “cansa e aborrece, esta maldita rotina, esta repetição, este marcar passo” (SARAMAGO, 2016, p. 10), que se contenta “com o que vai passando na televisão” (idem, ibidem, p. 10). Por causa de sua profissão, tudo o que vê são documentários sobre diversas áreas da ciência, nunca algo relacionado à ficção. Talvez esse seja um dos motivos da sua depressão. Além disso, desta forma, cria-se a antítese para o que virá a seguir: encontrar alguém igual a si é tema para diversas obras de ficção.

É interessante pensar, também, que assim como a História se repete, os atos do professor de História também: ele lê sempre a mesma coisa, assiste aos mesmos gêneros de filme, come sempre a mesma comida (enlatada, pois só recebe o que lhe “dão”, nunca faz o que gostaria de comer), às vezes até fala em “destino”:

Tirou de um armário três latas de diferentes comidas, e como não soube por qual decidir-se, lançou mão, para tirar à sorte, de uma incompreensível cantilena de infância (...) Saiu guisado de carne, que não era o que mais lhe apetecia, mas achou que não devia contrariar o destino. (...) repetiu a cantilena com três migalhas de pão, a da esquerda, que era o livro, a do meio, que era os exercícios, a da direita, que era o filme. Ganhou Quem Porfia Mata Caça, está visto que o que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, nunca jogues as pêras com o destino, que ele come as maduras e dá-te as verdes. (idem, ibidem, p. 13 - 14)

É nesse primeiro filme, “Quem Porfia Mata a Caça”, que Tertuliano encontrará o seu sósia. “Porfiar” significa “lutar, competir, rivalizar, insistir”. Título bem escolhido pelo escritor, já que o protagonista competirá com o ator pela própria identidade. Na verdade (e triste), ambos disputarão pela aparência, já que as personalidades e as vidas já eram diferentes...

Essa descoberta de Tertuliano causou-lhe um enorme assombro, ao ponto de pensar se ele mesmo seria um erro da natureza. O personagem, que já era melancólico, passou a ter crises existenciais e interessantes diálogos consigo mesmo, com o que ele chama de “Senso comum”. Num deles, discutem sobre se encontrar ou não com o ator idêntico, ao que o Senso comum diz que não, que é melhor esquecer esse assunto antes que algo acabe mal, enquanto o professor, como sempre, diz que o que tiver de ser será. Mas, primeiro, é necessário saber o nome do indivíduo. Assim, Tertuliano aluga e compra vários filmes da mesma produtora, com o objetivo de ver em quais o tal ator aparece e verificar os nomes que estão nos créditos, descobrindo, desta maneira, como se chama o seu duplicado.

Os títulos dos filmes, não à toa, possuem uma relação com as situações vividas pelo protagonista. Alguns deles: Quem Porfia Mata Caça, que já foi mencionado; O Código Maldito (ora, Tertuliano está tentando descobrir qual é o nome do ator igual a ele, como se fosse um código); Passageiro Sem Bilhete (o bilhete é um objeto de identificação e de permissão para algo); Diz-me Quem És (nem precisa de explicação); Um Homem como Qualquer Outro (igualmente); O Paralelo do Terror (idem); A Deusa do Palco (palco é um local de atuação, um lugar de aparências). Há outros nomes que não convém relatar, para não revelar momentos emocionantes antes da leitura.

A crise do protagonista chega a tal ponto em que ele

foi buscar um marcador preto e agora, outra vez diante do espelho, desenha sobre a sua própria imagem, por cima do lábio superior e rente a ele, um bigode igualzinho ao do empregado da recepção, fino delgado, de galã. Neste momento, Tertuliano Máximo Afonso passou a ser aquele actor de quem ignoramos o nome e a vida, o professor de História do ensino secundário já não está aqui, esta casa não é a sua, tem definitivamente outro proprietário a cara do espelho. (idem, ibidem, p. 30)

O próprio narrador chama-o de “desnorteado homem” (idem, ibidem, p. 33), o professor sofre constantemente com leves perdas de memória, nada do que ele faz é com gosto, nada lhe é duradouro, sua vida é moldada pela indiferença com o mundo. Esse foi um dos motivos do seu divórcio com a primeira mulher e é uma das causas da dificuldade com o seu segundo relacionamento, agora com a Maria da Paz. Nas palavras de Tertuliano, numa conversa com um colega:

Eu sei, eu sei, (...) a culpa é só minha, deste marasmo, desta depressão que me põe os nervos fora do lugar, fico susceptível, desconfiado, a imaginar coisas (...) por exemplo, que não sou considerado como julgo merecedor, às vezes tenho até a impressão de não saber exatamente o que sou, sei quem sou, mas não o que sou, não sei se me faço explicar. (idem, ibidem, p. 58)

É muito interessante um diálogo que o professor de História tem com um amigo, professor de Matemática, no qual este diz que quando Tertuliano sair da depressão, as coisas mudarão de figura. Os diálogos entre esses dois professores são sempre muito reflexivos (e, pelo lado do professor de matemática, lógicos). Em primeiro lugar, o protagonista, até então, é um ser constante, previsível, mas conhece um cidadão que tem a aparência igual à sua, a partir daí, sim, o personagem passa a mudar; segundo, existe uma dialética: o homem é modificado pelo seu meio, mas o primeiro também transforma o segundo; e, terceiro, às vezes, as coisas se alteram somente na consciência do homem, porque o que mudou foi apenas o seu modo de olhar o mundo.

É necessário dizer que, embora o personagem principal tenha alugado todos os filmes da mesma produtora, para ver em quais o sósia apareceria, ele não os assistiu completamente, apenas viu até o ator aparecer e já pulou para os créditos, para anotar quais nomes se repetiam. Mais uma amostra da sua indiferença e de que não faz nada com gosto, nunca termina uma ação, faz somente o necessário, por isso seu conhecimento e sua personalidade é fragmentada.

Descoberto o nome do sósia, Daniel Santa Clara, o protagonista decide enviar uma carta para a produtora, pedindo uma foto do ator e o seu endereço, alegando fazer uma pesquisa sobre o papel dos atores secundários. Tudo invenção, tudo aparência. O que ele quer saber é o endereço para se encontrar com o seu duplicado.

Como se não bastasse esse fingimento, para não se expor, Tertuliano pede para que sua namorada permita que ele insira o endereço dela na carta, além da assinatura dela também — mas não lhe explica a situação. Novamente, o personagem principal não assume a sua identidade. Apenas um recado da amante: “Tem cuidado, vigia-te, quando uma pessoa começa a falsear nunca se sabe até onde chegará.” (idem, ibidem, p. 111), ou ainda, duas frases do Senso comum do protagonista: “Pelos vistos, para seres quem és, a única possibilidade que te resta é a de que pareças ser outro” (idem, ibidem, p. 139), “Quanto mais te disfarçares, mais te parecerás a ti próprio” (idem, ibidem, p. 139).

E é isso o que ocorre. Tertuliano, que, em seus atos, não é o mesmo do começo do romance, passa a se disfarçar para ir próximo à moradia de Daniel Santa Clara, que na verdade se chama António Claro, porque o primeiro nome é um pseudônimo. Ou seja, um homem disfarçado (Tertuliano), que não assume a identidade, persegue outro homem (António Claro) que não assume o próprio nome e que tem como profissão fingir ser outras pessoas.

O mais inusitado é mostrado depois: além das aparências iguais, os duplicados têm a mesma voz e nasceram no mesmo dia, mês e ano. O ator, ao saber da existência de alguém igual a ele, também entra numa crise de identidade. Pior ainda: esse fato traz problemas para sua mulher, que passa a tomar calmantes e outros remédios para esquecer esses acontecimentos. De certa forma, também é uma fuga da realidade, uma fuga de si...

Para não falar demais somente sobre o desenrolar da incrível trama, deve-se mencionar o trabalho com a metalinguagem que o autor quase sempre usa em seus livros, onde os narradores (sim, plural, porque várias vezes o narrador revela-se ser um personagem diferente) conversam com o leitor, ou comentam sobre trechos passados ou futuros da história, por exemplo: “AO CONTRÁRIO DA ERRÓNEA AFIRMAÇÃO deixada cinco linhas atrás, que contudo nos dispensaremos de corrigir in loco uma vez que este relato se situa pelo menos um grau acima do mero exercício escolar, o homem não havia mudado, o homem era o mesmo.” (idem, ibidem, p. 38), e: “podemos antecipá-lo, é que o professor Tertuliano Máximo Afonso não voltará a entrar numa sala de aula em toda a sua vida, seja na escola a que algumas vezes tivemos de acompanhá-lo, seja em qualquer outra. A seu tempo se saberá por quê” (idem, ibidem, p. 170).

Essa estratégia chama a atenção do leitor e o deixa ansioso, além disso, demonstra a consciência e o domínio do escritor, que sabe qual rumo a narrativa seguirá. Porém, é necessário ressaltar que há um ponto no livro no qual o autor aparentemente se viu sem saída para resolver um problema e utilizou um artifício um tanto forçado, uma espécie de deus ex machina.

O ator António Claro descobre que Tertuliano enviou uma carta à produtora de filmes, mas quando ele chega lá, a responsável avisa que é uma regra da empresa de que correspondências enviadas por fãs devem ser jogadas fora. Apenas escolhem uma foto do ator, imprimem uma cópia da assinatura do profissional e pronto, adeus à carta. Porém, coincidentemente, essa responsável resolveu “cometer uma pequena infracção aos regulamentos internos do pessoal” (idem, ibidem, p. 213) e guardou uma cópia da correspondência — ou, em suas palavras: “um duplicado” —, para seu uso. Qual uso? Não se sabe. O motivo de tal feito é apenas que ela achou interessante, nunca ouviu falar num estudo sobre os personagens secundários.

Depois disso, tal como os deuses das antigas peças gregas, que só apareciam para resolver um problema e saíam de cena, essa personagem desaparece. Só surgiu para tirar uma cópia da carta e entregá-la ao ator, que nunca teria acesso ao conteúdo da mensagem. Assim, ele conseguiu o endereço e o nome da namorada de Tertuliano (pois ela havia permitido que o namorado usasse os seus dados), e a história ganhou cerca de oitenta páginas a mais. Não é um defeito grave, pois a forma como António Claro trata a mulher responsável pelas correspondências revela parte da sua personalidade, que será exposta depois, mas foi um acontecimento quase (senão) inverossímil.

Após tal evento, a trama passa a ter várias reviravoltas, muitos momentos emocionantes, mais pessoas envolvidas e cada vez mais atuações dos personagens. Não eram mentiras as palavras de Shakespeare, na peça Como gostais (1599): “O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores. Eles saem de cena e entram em cena, e cada homem a seu tempo representa muitos papéis” (SHAKESPEARE, 2013, p. 62).

Em suma, uma pequena resenha de seis páginas é muito pouco para discutir, mesmo que minimamente, sobre todos os aspectos de O homem duplicado. O romance demonstra a perda e a busca do eu numa sociedade que preza pela aparência e pelo individualismo, já que quase todos são anônimos, principalmente nos centros urbanos.

Além disso, o livro traz diversos diálogos críticos, reflexivos, filosóficos e poéticos sobre temas como a História, a educação escolar, o senso comum e a indiferença nas relações humanas, junto de personagens bem elaborados (principalmente, como é costume do autor, as mulheres). Outra característica de Saramago, como aponta Massaud Moisés, é a “ideia de que é preciso transformar a realidade como se apresenta, ou mudar a compreensão que temos dela.” (2008, p. 528), e é exatamente o que acontece no fim do romance. Nada menos esperado de um bom professor de História... Em tempos líquidos, O homem duplicado é uma leitura recomendadíssima!

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é graduado em Letras, pela Faculdade de Santo André, Santo André, SP.

REFERÊNCIAS

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Tradução de Lino Vallandro e Vida Serrano. 22 ed. São Paulo: Globo, 2016.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 37 ed. São Paulo: Cultrix, 2008.

SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

SHAKESPEARE, William. Como gostais. In: Como gostais/Conto de inverno. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM,2013. (Coleção L&PM Pocket; v. 727)