BARRETO, Lima. O
triste fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011
(Saraiva de Bolso).
O
triste fim de Policarpo Quaresma é um romance
pré-modernista, de Lima Barreto, publicado em 1911. O livro narra a história de
Policarpo Quaresma, um homem ingênuo, idealista e fanático nacionalista, que
não só acredita no Brasil como o melhor país, como tenta fazer dele um lugar
melhor. Porém, ideal e real não significam a mesma coisa.
Esta versão conta com 240 páginas, que se dividem entre
três partes. A primeira é uma apresentação do contexto e de quem é o major
Quaresma; a segunda trás o afastamento de Policarpo para o campo, tentando
ajudar e conhecer o país através da agricultura; e o último capítulo mostra a tentativa
do personagem principal melhorar o país por meio da política.
Pode-se dizer que o major Policarpo Quaresma é uma
caricatura do que seria o romântico, tão idealizador que não percebe sua
situação de diferente de toda a sociedade. Policarpo é um homem extremamente
moralista, tradicionalista e estudioso, mas somente dos autores e de tudo o que
vem a ser brasileiro.
Logo de início, todos estranharam que um homem tão
respeitável queria aprender a tocar violão, que na época era considerado
“malandragem”. Porém, se o major quis aprender, era porque ele acreditava que
“A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o
instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já
esteve em honra, em Lisboa (...)” (p. 17).
O narrador, ao descrever os livros na estante do
personagem principal, denota todo o espírito nacionalista de Policarpo. Alguns
dos autores: Bento Teixeira (poeta barroco), Gregório de Matos (idem), José de
Alencar (escritor romântico) e Gonçalves Dias (poeta romântico indianista e nacionalista).
Dos dois últimos escritores está toda a obra. Dentre os estrangeiros, está
Darwin, que, como se sabe, visitou e relatou sobre o Brasil.
Na verdade, “major” é apelido, porque “Logo aos 18 anos
quis fazer-se militar; mas a junta de saúde julgou-o incapaz. (...)
Impossibilitado de evoluir-se sob os dourados do exército, procurou a
administração e dos seus ramos escolheu o militar” (p. 19). Sabia tudo sobre as
terras, os rios, os climas etc. Todos os dias, contava aos amigos alguma informação
nova que descobrira, embora alguns não quisessem saber (e ele não percebia).
Uma característica da escrita de Lima Barreto é a maneira
simples de escrever — que o fez ser muito criticado na época —, e sempre que
pode, ela vem acompanhada de um sarcasmo. Leiamos esta descrição, por exemplo:
(...)
Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da alta sociedade suburbana.
É uma alta sociedade muito especial e que só é alta nos subúrbios (...) o
orgulho da aristocracia suburbana está em ter todo dia jantar e almoço, muito
feijão, muita carne-seca, muito ensopado — aí, julga ela, é que está a pedra de
toque da nobreza, da alta linha, da distinção (p. 23)
O livro faz muitas críticas às ações do Brasil e às políticas do governo de Floriano Peixoto, militar e ditador brasileiro, durante
a Primeira República. Não só a ele, mas também aos “tipos” de militares (que
sempre existiram). É o caso do general Albernaz
(...)
que nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse.
Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um
comando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de
artilheiro. Fora sempre ajudante de ordens, assistente, encarregado disso ou
daquilo, escriturário, almoxarife, e era secretário do Conselho Supremo
Militar, quando se reformou em general. Os seus hábitos eram de um bom chefe de
seção e a sua inteligência não era muito diferente dos seus hábitos. Nada
entendia de guerras, de estratégia, de tática ou de história militar; a sua
sabedoria a tal respeito estava reduzida às batalhas do Paraguai, para ele a
maior e a mais extraordinária guerra de todos os tempos. (p. 31).
Não é uma crítica somente ao personagem, mas a todos
aqueles que, como sabemos, fazem carreiras dentro do exército, sem fazerem nem
saberem nada (há vários deles no romance). Como quem estava no governo era um
militar, a crítica estende-se e aplica-se aos políticos também. Até hoje ela é
válida, posto os “exemplos” de representantes que “temos”.
Lima Barreto foca muito no quanto as pessoas valorizam as
aparências, ora na profissão, ora em casa. Este general, por exemplo, valoriza a sua posição, o falso moralismo, e quer casar a filha, para se livrar dela, mesmo não gostando de seu
genro, por causa de sua profissão (dentista); todavia, na rua, finge que não está gostando de ter de casá-la e separar-se dela. Enquanto
isso, outras moças desejam se casar sem nem saberem o motivo, somente porque
manda a tradição, somente por hábito.
Assim é feita a crítica ao casamento e ao Romantismo
(como se não bastasse a sátira no personagem Policarpo) também. As mulheres casam-se pela moralidade; os homens, para conseguir bens. Com isso, não só o
casamento, mas a família também é colocada em dúvida.
As instituições privadas não passam batidas pelo olhar agudo
do escritor. Num diálogo entre um personagem e o dentista, eis que este profere
a seguinte frase: “— Atualmente, não vale nada, meu caro senhor (...) Com essas
academias livres... (...) Um curso difícil e caro, que exige cadáveres,
aparelhos, bons professores, como é que particulares poderão mantê-lo? Se o
governo mantém mal...” (p. 49).
O livro ironiza o pensamento das pessoas sobre ler e
escrever, como já é característica dos contos do autor. Quando Policarpo
Quaresma fez um requerimento ao
ministro, foi chamado de louco e que o motivo da loucura era a leitura. Ora
(...)
— Pra que ele lia tanto? (...) — Telha de menos (...) — Ele não era formado,
para que meter-se em livros? — É verdade (...) — Isso de livros é bom para os
sábios, para os doutores (...) — Devia até ser proibido (...) a quem não
possuísse um título ‘acadêmico’ ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças
(...) (p. 57)
São pensamentos dos personagens (da elite da época, dos
militares) que continuam em nossa sociedade brasileira, que até hoje não lê nem
quatro livros por ano; que acredita que ler e escrever é só para as elites.
Além disso, percebamos que o autor escreveu “Pra” num dos diálogos, mostrando
que nem os ditos cultos usam a norma
privilegiada/padrão da língua em todos os momentos. Lima Barreto foi um dos
primeiros a inserir características de várias camadas e classes do Brasil na
Literatura (esta é uma das marcas dos pré-modernistas, investigar quem
realmente é o brasileiro).
Numa das descrições que o narrador faz de Policarpo
Quaresma, é dito que ele passou a maior parte de sua vida dentro dos livros e
de seu sonho, “Desinteressado de dinheiro, de glória e posição (...)” (p. 61).
Uma espécie rara de homem, que quando o encontramos, temos mais esperança. Isso
acontece porque o Romantismo não é somente uma escola artística, mas uma forma e
ideal de vida que sobrevive até hoje. É como a Luísa, do Primo Basílio, de Eça de Queirós, que mesmo estando errada, causa dó
em muitos leitores, que se identificam com ela, por serem românticos também.
É muito interessante a forma como Lima Barreto satiriza,
de forma sutil, tudo e todos, mostrando que os jornalistas não são honestos ao
roubarem num jogo de cartas (quem dirá em suas matérias?); ou os oficiais do
governo, que possuem fama de sábios por terem tirado boas notas na faculdade (e
o pior é que essa valorização da nota ao invés do conhecimento permanece até
hoje, entre nossos alunos) e ficarem em silêncio na maior parte do tempo — isso
até lembra uma crônica chamada Jargão,
do Luís Fernando Veríssimo —, mas confundem tupi com grego, por conta dos “yy”.
Enfim, tudo gira em torno da aparência.
Escrito numa época pós-escravagista, o livro traz muitos
momentos que denotam o preconceito e a insatisfação (tanto dos ex-escravos,
quanto dos ex-donos) da época. O amigo de Policarpo, Ricardo Coração dos
Outros, por exemplo, cria uma rixa com outro tocador de violão, por dois
motivos: o primeiro, pelo o homem ser negro, pois isso “desvalorizaria” o
instrumento; e o segundo, porque esse homem dizia que as músicas tinham que
seguir regras, criar uma mensagem, não serem puro sentimento. É uma ironia o nome
do personagem possuir “Coração dos Outros”, quando ele pensa somente em si
mesmo.
Termina-se o primeiro capítulo com o major Quaresma sendo
afastado de seu posto e de seus amigos, num manicômio, por ser considerado louco ao
sugerir um requerimento na lei para que falássemos o tupi, que é a nossa
verdadeira língua (percebamos como chega a ser cômico o nível do patriotismo).
Depois que ele sai de lá, não volta para a cidade, pois
decide mudar de vida: agora quer viver no campo, ajudar o Brasil através da agricultura.
Sua irmã, como sempre, o acompanhou, até mesmo na roça. “(...) Decerto, ela o
estimava, mas não o compreendia. (...) Por que não seguira ele o caminho dos
outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com
livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira! (...)” (p. 97). A maior
parte das mulheres no livro age assim, sem vontade, apenas por hábito e aparência.
Muitas pessoas tentam convencer o major a voltar para a
cidade, que viver na e da roça não dá mais lucro, que as terras já estão
cansadas, mas ele insiste que as melhores terras e climas estão no Brasil, basta
trabalhar. Além disso, outros personagens, por serem ruins, pensam que o major
foi para a área rural para fazer fama e candidatar-se depois. É interessante
que até hoje o Brasil sobrevive, em grande parte, da agricultura (e muitos agricultores
estão na política).
Há vários momentos naturalistas no livro, como as
descrições das pessoas, que são comparadas a animais, ou as dualidades entre os
locais de ricos e pobres, com enfoque nos dos pobres, pois estes são
desconhecidos da burguesia (que não conhece o Brasil).
Numa das visitas da sobrinha de Quaresma, durante o
caminho da cidade à roça, eis o que ela constata, através do narrador:
O
que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a
pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ela
tinha dos roceiros ideia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo
tanto barro, tanta água, por que as casas não eram de tijolos e não tinham
telhas? Era sempre aquele sapê sinistro e aquele “sopapo” que deixava ver a
trama de varas, como o esqueleto de um doente. Por que, ao redor dessas casas,
não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de
horas? E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um
carneiro. Por quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador.
Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser
o café e um milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra
indústria agrícola. Não podia ser preguiça ou indolência. Para o seu gasto,
para uso próprio, o homem tem sempre energia para trabalhar. As populações mais
acusadas de preguiça trabalham relativamente. Na África, na Índia, na
Cochinchina, em toda parte, os casais, as famílias, as tribos, plantam um
pouco, algumas coisas para eles. Seria a terra? Que seria? E todas essas
questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua
piedade e simpatia por aqueles párias, maltrapilhos, mal-alojados, talvez com
fome, sorumbáticos!... (p. 128).
Esta moça é uma das melhores personagens, questionadora,
inquieta, diferente de todas as outras mulheres do romance. Após fazer esse
questionamento, ela lamenta ser mulher, pois se fosse homem, poderia viajar
mais e estudar os motivos e as soluções para tais situações. Não deixa de ser uma
crítica, também, ao patriarcado da sociedade.
Interessantíssimo é um diálogo que ocorre entre ela e um
ex-escravo, trabalhador da roça de Policarpo. Quando questionado sobre o motivo
de não plantar para si mesmo, ele diz que uma coisa é pensar, outra é fazer.
Não dá para esperar pelos alimentos crescerem. “(...) — Terra não é nossa... E
‘frumiga’?... Nós não ‘tem’ ferramenta... isso é bom para italiano ou ‘alamão’,
que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...” (p. 129). Além do conteúdo,
percebamos como o pobre realmente entra na história, com suas características
linguísticas.
Ainda há quem precise ler estas palavras ou estudar
História para saber que meritocracia é uma farsa, que os negros sempre foram
postos de lado, postos à margem (por isso são chamados “marginais”, não com
essa outra conotação que a palavra adquiriu com o tempo) de nossa sociedade;
que os brancos europeus, imigrantes, tiveram privilégios em nossas terras e que
isso virou herança. Além disso, critica-se também o capitalismo, no qual a
burguesia detém os meios de produção, fazendo com que o pobre sempre tenha que
trabalhar para o rico. Enquanto um dá uma miséria, a qual chama “salário”, o
outro dá a vida, o tempo e a força.
Depois de muita
dificuldade com os aparelhos científicos para usar na terra (ora, sendo Quaresma
um idealista romântico, é claro que ele não se daria bem com a Ciência),
prejuízos com as vendas, trabalho com as formigas e ver que o governo ditador
estava recrutando gente, o major decide voltar para a cidade. Faria bem ao país
através da política, mesmo que ditatorial (a qual ele chama de “forte”).
O terceiro capítulo é mais forte do livro, o qual a menor
crítica feita ao governo era motivo para mandar prender e matar. A violência
justificava tudo. Sobre Floriano Peixoto (o ditador militar),
A sua
concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a
aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se.
Levada a coisa ao grande o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões
contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e
morte (...) (p. 170).
Quaresma, assim como a maioria dos homens da época, não
percebia isso como um mal, pois estavam “encantados” pela força e pelas palavras do
ditador. Assim que pôde, levou um manuscrito seu para Peixoto. Esse texto
trazia ideias para revolucionar o Brasil, porém, não teve a atenção desejada. Ainda
assim, conseguiu o posto de um verdadeiro major.
Chega a ser engraçado a forma de Quaresma liderar os
soldados na hora do combate, na hora da prática, ao procurar teorias nos livros
para ter mais eficiência. Além disso, havia muita bondade com os soldados de
nível mais baixo.
Depois de alguns meses de revolta do povo contra o governo, tudo
se tornou monótono. A sociedade toda se sentia mal, o próprio major se sentia
triste por ter seu manuscrito não levado a sério, por ser chamado de visionário
ao pedir reforma agrária para o ditador, pedir que desse emprego para todos,
para que, assim, o país pudesse ser melhorado.
Depois de uma triste carta enviada à irmã, na qual ele
conta suas vivências na guerra, suas tristezas e memórias, a
contradição de termos tecnologia avançada, mas mentes e homens retrógrados, o
personagem principal vai se tornando, aos poucos, niilista, percebendo qual era a verdadeira situação do país, que tudo
o que ele pensava era sonho e fantasia; que a crise financeira, antes de tudo,
é ética, moral, intelectual, política, tudo. Até hoje não a superamos.
Policarpo Quaresma é preso até a morte, num triste fim,
como já apontava, desde o início, o título da obra. Tido como traidor, um homem
que sempre quis o melhor para o seu país. No fundo, ele percebe que todo seu empenho
e lutas não valeram nada; que os livros mentiam; que as terras, os climas e a hospitalidade do Brasil não passam de aparência.
Fica-nos a mensagem do quanto o patriotismo e o idealismo
podem fazer mal à sociedade, embora pareçam bons. Os líderes ruins não são
criados do nada, mas são sustentados pelo próprio povo que vê neles ídolos e
heróis.
O
triste fim de Policarpo Quaresma é um excelente livro, que
nos mostra muitas facetas do brasileiro e do próprio ser humano, além de ser um
resgate à história de nosso próprio país, apontando problemas tanto quanto
possíveis soluções. Afinal, até hoje não tivemos reforma agrária, até hoje
temos ultranacionalistas ignorantes que saem às ruas sem nem saberem o que estão fazendo.
Escrito de forma simples e corrida, Lima Barreto nos ajuda a conhecer a nós mesmos. É recomendável a todos aqueles que gostam de
Literatura brasileira e realista (pois pode-se dizer que, de certa forma, o
Pré-Modernismo foi uma continuação do Realismo e do Naturalismo).
Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é graduado em Letras, pela Faculdade de Santo André, Santo André,
SP.
Fazer uma análise literária é enriquecedora quando se sabe extrair a essência da obra.Para fazer uma produção eficaz depende de muita leitura. Cada leitura é uma nova descoberta. É muito gratificante perceber que através das obras se pode perceber diversos tipos de acontecimentos sociais em diferentes épocas, além de outros aspectos, enfim, são possibilidades de discussões acerca de um determinado tema. Sua resenha está ótima, muito esclarecedora. Sou formada em letras/Literatura e sou apaixonada por tudo que envolve a Literatura.Um abraço
ResponderExcluirA Literatura faz parte de nós e ajuda-nos a crescer e ver melhor o mundo. Ainda estou me formando (e sempre o estarei). Obrigado, um abraço ^^
ExcluirÓtima análise, extremamente detalhada, diferente de muitas que vemos por aí ksksk.
ResponderExcluirS U B A R A S H I
Que bom que gostou! Obrigado pelo elogio! Quando puder ler o autor, leia-o.
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