Apresentações sobre a vida e importância das obras de
Shakespeare deveriam ser dispensadas, no entanto, há ainda quem o (e as) desconheça,
e, por isso, necessite de algumas palavras sobre este grande escritor e seu
importante trabalho.
William Shakespeare nasceu — possivelmente — em 1564, na
Inglaterra. Ator, escritor, poeta e dramaturgo, foi um dos maiores homens de
seu tempo e continua sendo até hoje.
Autor de clássicos universais como Romeu e Julieta, Hamlet, Otelo e Sonho de uma noite de verão, Shakespeare viveu e fez parte do
período artístico conhecido como “Classicismo”.
Com o início das grandes navegações, descobrimento de
novas culturas e formas de vida, criação da imprensa de Gutenberg, a igreja
católica perdeu grande parte de seu poder e deu-se início ao fim do período histórico
da Idade Média. É o início da Modernidade.
Com a Modernidade e durante o Classicismo, quase todos os valores são trocados.
Agora Deus não é mais o centro do mundo, mas sim o homem; usa-se mais a razão em
detrimento da emoção; não se evoca mais as figuras cristãs, mas as pagãs,
deuses e divindades da mitologia greco-romana. Busca-se o belo, a perfeição e o
culto à forma.
Tudo isso por influência dos pensamentos e obras dos
escritores e filósofos clássicos, gregos e romanos, que agora, com a imprensa,
passaram a ser (re)publicados e lidos novamente. Este novo culto à Era
Clássica chamou-se Classicismo, período que Shakespeare viveu e ajudou a
formar.
Sobre
a obra
Como
gostais é uma peça teatral de Shakespeare, uma comédia romântica
(final feliz), encenada pela primeira vez em 1599. Embora não seja tão famosa
como as outras obras já citadas do autor, Como
gostais não perde em nada para elas, desde a complexidade de situações,
personagens cativantes, momentos trágicos e cômicos, clichês e até uma frase
marcante.
A peça conta a história de Rosalinda, filha de um duque
que perdeu os domínios para o seu irmão, Frederico. Após seu pai ser exilado,
ela continua na corte, pois o seu tio, o usurpador, sabe que sua filha, Célia,
é muito amiga da prima, e sofreria caso ela saísse.
Dentro da corte há três irmãos, Jaques, Orlando e Oliver.
Os três são filhos de Rowland the boys, um “rival/adversário” de Frederico. No
entanto, Oliver serve a Frederico e, por inveja, humilha seu irmão mais novo,
Orlando.
Orlando é um homem cheio de virtudes, por mais que
tentem colocá-lo para baixo, ele supera a situação. Numa dessas situações é
quando ele conhece Rosalinda e apaixona-se à primeira vista (eis o clichê).
Mas é o tempo de quando ele é forçado a sair da corte por
seu irmão e Rosalinda é forçada a sair pelo seu tio invejoso. Célia decide ir
junto da prima e Rosalinda dá a ideia de as duas se disfarçarem: ela
(Rosalinda), de homem; e Célia, de camponesa, pois a vida na floresta é perigosa
para damas.
A partir daí todo o cenário é dentro da floresta — e
ninguém reclama dessa mudança, pois é mais confiável viver entre os animais e
perigos da natureza do que entre as brigas e intrigas da corte. O próprio Duque
Sênior diz: “(...) os velhos costumes não fazem esta vida mais agradável que
aquela de pompas artificiais? Não são estas matas mais livres do perigo que a
corte invejosa?” (Duque Sênior, ato II, cena I - p. 44). Shakespeare não temia
em criticar a elite de sua época e parte de seu público, além de, com este
trecho, já adiantar parte do mito do bom
selvagem, do filósofo Rousseau.
É preciso ressaltar que naquela época as mulheres não
podiam atuar, então, Célia, Rosalinda e outras personagens femininas eram
encenadas por homens vestidos de mulher. O drama e a complexidade aumentam
quando Rosalinda, que é um ator vestido de mulher, se finge de homem,
Ganimedes, e, para enganar Orlando, pede para que ele (Orlando) imagine que ele
(Ganimedes) é uma mulher, a própria Rosalinda. É uma quádrupla mudança de
gênero: um homem/ator vestido de mulher que se veste de homem que pede para ser
imaginado como mulher. Se hoje ainda há conservadores que não gostam nem
aceitam mudanças, imaginemos naquela época.
Nota-se, também, que Rosalinda sabe da sua posição de mulher, mas diferente do que é imposto, é ela quem
se impõe ao mundo, pensando racionalmente (característica do Classicismo) para
superar as adversidades. Porém, é somente quando ela se veste/disfarça de homem, que é tomada, de fato, a dianteira e todos passaram a obedecê-la. É a
constatação do patriarcado na sociedade.
Além do pensamento racional na obra, uma outra
característica do Classicismo são as figuras mitológicas. Durante a peça são
mencionados muito deuses nas expressões dos personagens, além do próprio deus
grego Himeneu, responsável pelos casamentos, que é invocado para casar os
vários personagens.
Outro fato interessante na obra é a quantidade de
versos/estrofes/cantos. Os versos variam desde redondilhas até versos
decassílabos e alexandrinos, mas há versos menores também — todos metrificados,
como manda a tradição clássica.
Quanto aos personagens, há muitos clichês: o bom moço
(Orlando), a boa moça (Rosalinda), a parente amiga (Célia), o irmão invejoso
(Oliver) e o vilão que se arrepende (Frederico). Mas há dois personagens
diferenciados e dignos de mais atenção, são eles: Touchstone e Jaques.
O primeiro é o bobo da corte e o segundo é um cavaleiro
dotado de sensibilidade e poeticidade. O bobo lembra muito a figura do louco, pois
é o único que diz a verdade sem se preocupar com as convenções sociais, mas por
ser louco, não é levado a sério pela sociedade e termina sendo excluído
(Foucault, 2014). É o mesmo caso do bobo Touchstone, que todos até dizem
que é inteligente, mas é um bobo, por isso deve ser desconsiderado, que é
um caso de azar o dele.
Touchstone é inteligente e sátiro, há um momento em que
Shakespeare se utiliza dele para criticar a nobreza, quando um nobre jura algo
por sua honra e o bobo diz que jurar por algo que não se tem é fácil, pois
mesmo que não cumpra com a palavra, pelo o que foi jurado, por não o ter, não
está quebrando a promessa. Ao ser repreendido, ele mesmo diz: “É uma pena,
então, que aos bobos não seja permitido falar de modo sábio aquilo que os
sábios fazem de modo bobo” (Touchstone, I, II – p. 30).
Já o cavaleiro Jaques é o dono da frase mais famosa da
obra: “O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores.
Eles saem de cena e entram em cena, e cada homem a seu tempo representa muitos
papéis (...)” (Jaques, II, VII – p. 62). Frase que faz alusão à vida dos atores
e aos seres humanos em geral, no teatro que é a vida. Este trecho, se completo,
por si só já vale um texto.
Este cavaleiro é moldado ao estilo poeta, contemplador
da vida e da natureza, da alegria e da tristeza. Aliás, percebem-se em algumas
passagens, frases que lembram poemas de outros poetas que vieram muito tempo depois.
No caso, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade são alguns deles.
Quando Sílvio diz que gosta de Febe; Febe, de Ganimedes
(que é a Rosalinda disfarçada); Orlando, de Rosalinda; e Rosalinda disfarçada
de Ganimedes diz não gostar de ninguém, é impossível não nos lembrar do poema Quadrilha, de Carlos Drummond de
Andrade.
E quando o bobo diz que “(...) a verdadeira poeticidade é
a mais fingida (...)” (Touchstone, III, III – p. 83), Shakespeare antecede parte
do poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa.
Por Shakespeare ser poeta, além dos cantos, algumas falas
são compostas por jogos de palavras. Por exemplo: “(...) aí temos a Fortuna
sendo muito dura com a Natureza quando a Fortuna faz o que é natural na
Natureza dar cabo de uma conversa naturalmente inteligente” (Rosalinda, I, II –
p. 28) — percebamos, também, o uso de divindades mitológicas e das letras maiúsculas
usadas, característica do Classicismo para designar a representação perfeita e
absoluta do que está sendo mostrado.
Ou ainda: “(...) Ou com uma espada vil e violenta leve a
vida (...)” (Orlando, II, III – p. 48) — vejamos a aliteração em [V] — e na
mesma página: “(...) estive a serviço do senhor seu pai (...)” (Adam, II, III –
p. 48), utilizando-se de uma aliteração em [S]. Até o bobo Touchstone usa uma
linguagem bonita e poética: “(...) Na verdade, eu queria muito que os deuses
tivessem te criado criatura criativa, com poeticidade” (Touchstone, III, III –
p. 83).
Como sabemos, nenhum período desaparece por completo;
então, mesmo no Classicismo, ainda há elementos medievais. Em Como gostais, ao mesmo tempo em que há
menções aos deuses mitológicos, há expressões e referências a Deus — e aos
ensinamentos cristãos também, como por exemplo, quando Rosalinda diz que o
mundo possui somente 6000 anos.
Em suma, se o mundo atual sempre traz elementos das
épocas passadas, um dos motivos é por conta de obras semelhantes a Como gostais, que até hoje continua atual. Até hoje há brigas pelo
poder; até hoje é necessário relacionar-se com o outro; até hoje reina o
patriarcado na sociedade; até hoje (hoje mais do que nunca) precisamos da
poesia; e até hoje somos atores e atrizes presos ao nosso papel, que não sabemos
quem criou nem quando terminará, e, assim,
atuando, não sabemos nem quem somos.
Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é estudante do
curso de Letras, em IESA, Santo André – SP.
Referências
FOUCAULT, Michel. A
ordem do discurso. São Paulo: Ed. Loyola, 2014.
SHAKESPEARE, William. Como
gostais. São Paulo: L&PM POCKET, 2013.
Excelente análise Carlos,
ResponderExcluirNão li nada ainda de Shakespeare, mas por alto eu sei que ele é um excelente escritor, assim como você fez bem colocar uma breve descrição do mesmo no início. E, pude perceber pela sua análise a complexidade do autor.
Naqueles tempos a atuação feminina, não só no teatro, era muito limitada. Este ponto foi muito bem destacado, e inclusive a crítica que Shakespeare fez para isto, conforme bem elucidado em sua resenha.
Muito obrigado por partilhar conosco este importante conhecimento.
Muito obrigado, Douglas.
ExcluirQuando puder ler Shakespeare, leia. Estou aprendendo ainda sobre ele, de peças, só li essa e A Tempestade, de resto só conheço alguns poemas.
Naqueles tempos a vida era mais complicada para a mulher, mas ainda hoje é, por isso acredito que todas deveriam se interessar pelo Feminismo. (A dialética inicia-se aqui: eu, homem, achando o que as mulheres deveriam fazer...)
Eu que agradeço pela atenção e paciência! Obrigado!
Sim, verdade.
ExcluirEstamos caminhando para a igualdade e a quebra de preconceitos, há muito mais para ser quebrado. Porém, quando indica-se para as mulheres serem feministas, elas (e machistas também) devem ter cuidado para não confundir feminismo com femismo, que são duas coisas completamente diferentes por definição.
Abraços.
As pessoas deveriam se interessar mais por teorias e estudos, porque não são sobre e para os outros, são sobre e para elas e nós mesmos.
ExcluirUm abraço!
Ótima resenha! Parabéns! 👏 👏 👏
ResponderExcluirMuito obrigado, professora!
ExcluirLi e reli Shakespeare, e, para mim, continua sempre novo...
ResponderExcluir