Monteiro
Lobato foi um renomado escritor brasileiro, inovador na forma de tratar
alguns assuntos, crítico de tabus e problemas da sociedade da época, prosador racionalista
e progressista, que olhava para diferentes regiões nacionais e temas sociais, porém,
em razão do caráter moralista e didático de suas obras, não pôde ser
considerado completamente “modernista” (e nem ele queria sê-lo), apenas “pré-modernista”.
Ora,
o Pré-Modernismo é caracterizado por questionar-se mais profundamente sobre o
que é, de fato, o brasileiro. Lima Barreto e Euclides da Cunha, por exemplo,
mostraram aspectos e tipos de pessoas que os leitores não conheciam, como os negros ou os pobres nordestinos, ou
conheciam de forma deturpada (como os sertanejos e os índios idealizados de
José de Alencar). Porém, esses escritores também não podem ser considerados
“modernistas”, faltava algo a eles: romper com a forma tradicional da escrita
realista, ação que só a geração posterior fez.
Como
é característica de Monteiro Lobato, suas histórias possuem personagens
cômicos, até mesmo ridículos, como acontece no conto Cabelos compridos. A narrativa traz a história de Das Dores, uma
mulher que “É feia, desengonçada, é inelegante, é magérrima, não tem seios, nem
cadeiras, nem nenhuma rotundidade posterior; é pobre de bens e de espírito”,
mas é uma pessoa “boazinha”. A única coisa que a personagem tem mais do que as
outras é “cabelo”. O narrador chega até a citar uma frase de Schopenhauer: “Cabelos
compridos, ideias curtas”. Essa citação, argumento de autoridade, em tom de piada, demonstra a
racionalidade e o humor de Monteiro Lobato, mas que também são características do
pré-modernismo.
Além disso, a personagem, Das Dores (e este nome já
é significativo), é pobre, uma das classes investigadas
pelos pré-modernistas, e representa grande parte da população brasileira, que “só
faz tudo que outras fazem e por que as outras o fazem”. É o retrato do povo
simples, inculto, que não reflete
sobre os próprios atos e, por isso, apenas repete as ações, que se tornam
costumes e tradições (muitas, ruins).
É nisto que se concentra o enredo do conto: a
protagonista, um dia, vai à missa, e o cônego, dentre tantas coisas que diz e que
não são entendidas pelo público — o que já é uma crítica à forma de tratamento e
ao discurso (que, por muito tempo,
aliás, era feito em latim!) dos padres —, fala que deve-se refletir sobre cada
palavra das orações cotidianas, pois se não o fizesse, seriam palavras em vão. Das
Dores, a partir daí, fica pensativa.
Abismada, a protagonista foi
falar sobre o assunto com uma tia, que “mastigou em ‘pois é’ que dava toda
razão ao padre”. Trecho significativo do conto, porque indica duas ocasiões: a
primeira, que Das Dores realmente estava refletindo sobre as palavras do
cônego; a segunda, que sua tia não estava dando devida atenção às palavras da
sobrinha e muito menos às do padre. Situação dialética.
Característica da maioria dos
contos, o tempo segue cronologicamente, portanto, chega a noite, hora de a
personagem rezar, coisa que sempre fez, mas agora ela refletiria sobre cada
palavra. O espaço, fechado, o que dá mais tensão, é o quarto, somado à noite que,
como se sabe, é um momento onde aguçam-se as subjetividades, o que acaba
causando conflitos em Das Dores, porque ao pensar numa palavra, associa-a a
pessoas, a lugares etc., não conseguindo terminar a oração e concluindo, equivocadamente,
justamente por sua ignorância, que o cônego é quem está errado. É o fim do
drama do personagem, como pede o gênero conto, sempre ao final.
A narrativa enquadra-se no Pré-modernismo
por trazer essa personagem, mulher, feia, desengonçada, pobre, inculta, em
suma, marginalizada, para a discussão, para a literatura, pois, antes, pessoas
assim eram ignoradas pelo mundo das letras, como se não existissem; além,
também, do estilo do conto não romper nenhuma convenção formal.
Monteiro Lobato, satírico e,
ao mesmo tempo, com vontade de melhorar progressivamente o país, apontou para
essas existências e para outros problemas pragmáticos. O cônego que fala somente
para si, já que muita gente não o entendia, com aquela retórica toda, é outro obstáculo:
o da comunicação e acessibilidade à linguagem. A tia de Das Dores, Vicência, “velha
sabidíssima em mezinhas e teologias”, pode representar conhecedores de religiosidades
não-cristãs, que não eram nem mencionados por muitos.
Enfim, o conto é curioso e
chega a ser engraçado, em razão das descrições feitas pelo narrador, mas funciona
e passa sua mensagem principal, mesmo que ao avesso: é por levar as palavras ao
pé da letra, por sua ingenuidade e sua ignorância, que Das Dores não compreende o padre e pensa que ele pode estar
errado: “pela primeira vez na vida duvidou”. Ao mesmo tempo, a história
demonstra a dificuldade de parte da população, simples e pobre, para com a linguagem.
REFERÊNCIAS
LOBATO, Monteiro. Cabelos compridos. Disponível em: <https://tessellatedhearts.wordpress.com/2012/02/20/cabelos-compridos-monteiro-lobato/>. Acesso em: 14 set. 2018
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