quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Consciência de dependência

Já é sabido que todos os dias alguém de casa caminha com “meu” cachorro, já é sabido que todos os dias ele “cobra” para que andemos com ele, e já é sabido que isso faz parte de um condicionamento. Esta é a parte triste.

Sempre que vejo esta cena repetir-se, lembro de um trecho de uma música da banda Engenheiros do Hawaii, que diz: “Somos quase livres, isto é pior do que a prisão”. Frase subjetiva, mas que sempre me faz lembrar dos animais de estimação, e quando os vejo, lembrar da canção.

O motivo é muito simples: o cachorro até diverte-se quando sai de casa, quando escapa da rotina, do ambiente de sempre, e ele tem consciência disso, pois o pede. É aqui que entra a parte triste: a consciência da possibilidade de sair, mas a dependência de outrem para conseguir.

É assim conosco também, temos nossa liberdade, no entanto, ela não é plena; dependemos do quanto de espaço os outros ou o mundo nos permite ter. Queremos fazer tais ações, mas as instituições, o sistema ou nós mesmos, impõe uma realidade. Os desejos são vontades que ainda não se concretizaram em ações — ou nunca se concretizaram.

No caso do cachorro, ele depende de alguém da família; em parte da vida, o funcionário depende do trabalho e do patrão, e o patrão depende do funcionário e do trabalho do funcionário, mas nenhum dos dois possui consciência de que um depende do outro, somente visões unilaterais: o patrão só vê a dependência do funcionário para com ele, e o funcionário só vê a sua dependência para com o trabalho. Ambos alienados e condicionados.

Voltando à relação com o animal, deve(ria) ser triste para ele saber que depende de alguém para que possa caminhar na rua, mas é mais triste ainda para quem caminha e possui a consciência da dependência dele, pois sabendo que a alegria dele e dos outros depende de nossas ações, e nossas ações são limitadas por inúmeros fatores, sofremos pela consciência dele e pela nossa.

É nisto que consiste a tristeza de saber da quase-liberdade, pois se temos consciência de que nada mais pode ser feito, aceitamos; mas se sabemos que há algo além que poderia ser alcançado, que chegamos perto e não atingimos, sofremos.

Pode-se pensar que “a ignorância é uma bênção” e que não saber o que acontece conosco ou ao nosso redor é melhor do que saber e não poder fazer nada. Todavia, é somente através da consciência que se pode pensar em/e superar o problema. Sabemos da alienação dos outros, eles não podem fazer nada, mas poderiam fazer caso soubessem, e nós podemos fazer por eles. Pior do que sofrer, é sofrer sem saber o motivo.

PS: Não há enredo nestes textos. O "banal" serve de motivo para as reflexões.

4 comentários:

  1. Uma perfeita análise, aos bons leitores... vão subjetivar seu texto e como você mesmo apontou, hão de colocar-se no local do cachorro livre mas não tão livre. Dependendo de sua liberdade condicionada.

    A relação entre patrão e trabalhador parece muito mais válida para o lado do trabalhador que não vê a dependência que o patrão, isso se considerarmos o capitalista tem dele como funcionário.

    No momento em que fala que voltou a falar do animal, que ele depende de alguém para andar na rua, é como se não voltasse a falar dele, porque afinal, nós dependemos do sistema capitalista e do trabalho para poder andar na rua, sair... pois para onde quer que vamos há valor monetário estabelecido e precisamos deste para poder utilizar-se do mesmo.

    Talvez seja por isso que muitos consideram a depressão como a doença do século, a consciência que nós temos da quase-liberdade e busquemos a solução em outras coisas, muitos na religião por exemplo. Isso é observado nos discursos dos pastores rumo ao sucesso... etc...

    E entramos num ponto crítico é melhor a ignorância então? Mas, e nós, somos de fato emancipados? ou somos permitidos a pensar até dado ponto? (aí entra uma questão filosófica mais profunda). Mesmo nós que sabemos não torna-se difícil conseguir a liberdade de fato?

    excelente reflexão a sua Carlos e excelente o paralelo que fez com a condição humana.

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  2. Muito obrigado, Douglas. Sim, na maior parte dos casos, é o trabalhador que não percebe que o patrão depende dele, mas o patrão também não percebe isso, e acha que somente o trabalhador precisa de alguém, no caso, ele e o emprego.

    Isso mesmo. Quando o assunto volta a falar do cachorro, é como se não fosse ele, mas nós, porque a metáfora já foi feita e percebida (houve consciência).

    É dito mesmo que a depressão é a doença do século; buscamos soluções para fugirmos do dia-a-dia, mas não percebemos que essas soluções são ilusões (como você citou o capitalismo, é ele mesmo quem cria essas ilusões. Pagamos por elas também).

    É interessante você citar a religião, pois muitos veem ela como libertação, no entanto, ela prende-nos mais ainda. São mais regras a seguir e menos liberdade do ser. Isso fisicamente — não confundamos religiosidade com religião.

    Sobre seu último parágrafo, é complicado mesmo. Eu lembro do filme Matrix: somos presos, é melhor saber que somos presos ou viver enganados a vida toda, achando que somos livres? (É a Caverna de Platão). Mesmo que pensantes, somos limitados pelo o que nos é possível (não por Deus ou Destino, mas pelo mundo criado ao nosso redor). Marx pontua que somos limitados pelo nosso meio, mas com as ferramentas que temos, podemos mudá-lo. Creio que a ignorância não é o melhor remédio.

    Muito obrigado por comentar e enriquecer o texto. Pensemos.

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  3. Não me contive e vou complementar ainda mais, seguindo em ordem respectiva à seu comentário resposta.

    - De nada. Sim, o argumento capitalista usual é que quem a relação de dependência na óptica do patrão é sempre do trabalhador para com ele. "Sem mim o trabalhador não teria emprego", "ele depende de mim, capitalista"... etc... Porém, devemos compreender que pessoas que pensam assim estão cegadas pura e exclusivamente pelo capital. Já capitalistas espertos sabem da relação de dependência que eles tem para com os trabalhadores e formulam manobras para manter o status quo.

    - Neste caso, fica subjetivo à quem lê se quer voltar a ler como se fosse análise de um cachorro ou ler analogamente porém, colocando o ser humano em foco. Confere?

    - No ponto de que o capitalismo cria soluções ilusórias, podemos observar isso claramente com o fetiche da mercadoria que é inserido no contexto social por meio de coerção e alienação intelectual. Ex: Produto X vai lhe trazer felicidade etc.. marca y... e por aí vai... engana-se quem acha que o capitalismo é subliminar. Ele é impositivo, nas propagandas você vê claramente, um exemplo é o "Beba Coca-Cola, abra a felicidade".

    - A religião neste caso, serviria como um ponto de tentativa de fuga da realidade, uma fuga desesperada na qual você quer acreditar que a salvação virá dos céus porque perdeu totalmente a motivação de mudança num aspecto materialista existencialista. Perceba que os discursos das religiões hoje, muito observável nas protestantes é envolto do sucesso financeiro, status social, cura de relacionamentos que tornaram-se superficiais devido ao consumismo e foco no CAPITALismo.

    - O filme Matrix é muito bom para descrever que às vezes acreditamos que algo é real, porém estamos vivendo uma ilusão. Neste aspecto o estudo da subjetividade parece-me ser bastante válido. Um antissemita dificilmente tem consciência de que o é, para ele aquilo é natural. A subjetividade entraria no âmbito em que ele vê que ele é antissemita interioriza estes conceitos e faz um processo de autocrítica para corrigir-se.

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  4. É isso mesmo. Parte dos capitalistas tornaram-se alienados ao ponto de não perceberem-se na dialética da dependência. Até lembrei daquele outro texto meu, "Alienação" (http://palavrasaleatorias09.blogspot.com.br/2015/05/alienacao.html).

    Confere sim. Quando começamos a ler, achamos que falamos do animal, mas após ser feita a comparação, vemos que estamos na mesma posição. Aí o leitor já percebe que o texto é sobre nós também.

    Sobre a imposição do capitalismo, é assim mesmo. Com certeza é a fetichização da mercadoria e o afastamento da consciência crítica.

    O seu quarto parágrafo, quando você diz que as pessoas procuram uma fuga da realidade, uma salvação vinda dos céus, pois a motivação de mudança perdeu-se totalmente,é o niilismo passivo acontecendo (se tivéssemos uma consciência crítica, seria o niilismo ativo, a mudança de valores). Isso vendo por um lado nietzschiano.

    O filme Matrix é ótimo, é uma outra forma de mostrar a Caverna de Platão. Considerando seu comentário sobre o antisemita e voltando à religião, acabo por lembrar de um trecho do livro O mal-estar na civilização (Penguin & Companhia das Letras, 2011), do Freud. O trecho diz: (...) Devemos caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade. Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe." (p.26).

    É preciso que alguém com uma visão mais esclarecida, perceba e ajude-o a esclarecer-se, para que, talvez, caso consiga, ele possa mudar.

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