(Introdução
copiada de outra publicação que já fiz aqui)
De maneira (muito)
resumida: Shakespeare foi/é um dos maiores homens que o mundo já viu, nascido
possivelmente em 1564 e falecido em 1616, desenvolveu suas obras (poemas e
peças teatrais) no período do Classicismo.
O Classicismo encontra-se dentro de um período histórico chamado Renascimento, que foi uma época de grandes mudanças em todos os âmbitos (sociais, religiosos,
filosóficos, econômicos, políticos etc.): iniciam-se as grandes navegações,
começa-se a mudança de sistema (feudalismo para "capitalismo"), a
igreja católica perde seu poderio, muda-se a visão de teocentrismo para o
antropocentrismo e, principalmente, surge a Imprensa de Gutenberg.
Com a imprensa,
muitos livros são publicados; assim, as ideias e obras de filósofos passam a
ser conhecidas por muitos. Surge uma nova mentalidade, o homem considera-se
em um período iluminado e renascido. Cheio de descobertas, busca diferenciar-se
de outrora, agora buscando elementos da cultura grega e romana para adotar em
suas obras. Portanto, a arte será racional; valorizarão a ciência, o
engenho e os valores da Era Clássica. Que fique claro: de maneira (muito)
resumida.
Traduzido por Ivo
Barroso, este soneto faz parte de Os
Melhores Sonetos (2013) de William Shakespeare (Saraiva de Bolso). Como se
sabe, o soneto é composto por 4 estrofes, sendo 2 quartetos (estrofes com 4
versos) e 2 tercetos (estrofes com 3 versos), podendo ser decassílabo (versos
de 10 sílabas poéticas) ou alexandrino (versos de 12 sílabas poéticas).
Mas existe um "tipo" de soneto próprio de Shakespeare, também chamado
"soneto inglês".
Este modelo possui
a estrutura de 3 quartetos e 1 dístico (estrofe de 2 versos); diferente do
soneto italiano, o soneto inglês não é feito em estrofes separadas, mas todo
junto; apenas os dois últimos versos se diferenciam por estarem 2 espaços à
frente dos outros. Mantendo a fidelidade ao livro, eis o poema:
XCI
Uns se orgulham do berço, ou do talento;
Outros da força física, ou dos bens;
Alguns da feia moda do momento;
Outros dos cães de caça, ou palafréns.
Cada gosto um prazer traz na acolhida,
Uma alegria de virtudes plenas;
Tais minúcias não são minha medida.
Supero a todos com uma só apenas.
Mais do que o berço o teu amor me é caro,
Mais rico que a fortuna, e a moda em uso,
Mais me apraz que os corcéis, ou cães de
faro,
E tendo-te, do orgulho humano abuso.
O
infortúnio seria apenas este:
Tirar
de mim o bem que tu me deste.
(SHAKESPEARE, 2013, p. 89)
Comentário
Quanto à estrutura do poema, temos um soneto
decassílabo, isto é, todos os versos possuem dez sílabas poéticas. Como vimos
na descrição acima, o texto segue com três quartetos e um dístico; o esquema de
rima, por sua vez, é: ABAB – CDCD – EFEF – GG.
Como é costume dos sonetos, principalmente os
da época do Classicismo (ao qual Shakespeare fez parte) e do Barroco (que viria
depois), temos o uso da sintaxe invertida (frases inversas, não na ordem direta,
como estamos acostumados, principalmente na fala espontânea).
O uso de antíteses (ideias contrárias) nesse poema não ficou muito explícito por meio de palavras antônimas, exceto em “plenas” e “minúcias”, “alegria” e “infortúnio”, “tirar” e “deste”, mas através das ideias: o eu-lírico prefere
apenas uma coisa em detrimento de
todas as outras, além de comparar os quesitos de que alguns se orgulham.
Quanto ao conteúdo, até que é simples. Há um
eu-lírico que diz que muitos se orgulham da classe social a que pertencem; outros,
dos bens que possuem; outros, da fortuna; outros, dos cavalos treinados; outros, dos cães; outros,
da força física; outros, por acompanharem a moda (e aqui há o adjetivo “feia”,
crítica feita pelo dramaturgo às roupas na época) etc., mas que nada disso
alegra o eu-lírico. Este a tudo o que foi dito e comparado antes, bens ou
habilidades que todos se vangloriam, orgulha-se de ter o amor de alguém.
Com isso, também se pode pensar que ele dá
mais valor a algo imaterial, abstrato, do que às coisas terrenas e concretas. É
um traço de uma transcendência, algo além, como os classicistas enfocavam
(geralmente com substantivos iniciados com letras maiúsculas), por conta da
retomada do platonismo.
O que chama a atenção, no entanto, é o fato de
o eu-lírico se orgulhar do amor dado a ele por uma pessoa, não propriamente
pela pessoa que se dá a ele. Algo diferente do que se vê na maioria das
relações, onde um olha para o outro, mas nenhum olha para o objetivo (se há
algum) em comum e para aquilo que os une.
É claro que há indivíduos que lamentam pela
vida toda a perda de alguém, mas há aquelas que seguem em frente, relacionando-se com outros sujeitos. O que ninguém percebe e que o poeta mostra-nos
nesse poema, escrito há séculos atrás, é que, antes de tudo, somos apaixonados e
amamos o amor, não somente a pessoa. Não buscamos “alguém”, mas aquilo que ele(a)
pode trazer ou criar: os sentimentos, dentre eles, o amor.
Os pares vão se trocando, mas o que procuram ainda
é o mesmo: afetos. O eu-lírico sabe disso, por isso teme que lhe tirem o bem
causado por alguém, tirem-lhe o amor, tirem-lhe as lembranças, pois lhe tirando
essa subjetividade, esse valor transcendente, sobram apenas objetos terrenos e,
por isso, passageiros... Sobre as habilidades, idem.
E se o eu-lírico teme que essa substância possa
lhe ser tirada, é porque há essa possibilidade... Através de brigas, de discussões,
de falta de diálogo, de reciprocidade etc. Então, nem tudo o que é imaterial é
eternamente duradouro... Mas, por isso mesmo, é importante e deve ser valorizado.
Vale lembrar que em momento algum o eu-lírico
sofre, ele apenas reflete. Os poemas e as obras em geral, na época do
Classicismo, refletem a racionalidade, elemento herdado da Era Clássica. Quem
demonstrará muito mais do que a razão, mas os sentimentos, o sofrimento, uma
subjetividade maior, serão os românticos. Mas isso somente séculos depois.
Referências
SHAKESPEARE, William. Os melhores sonetos. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2013. (Saraiva de Bolso)