Um dia desses, enquanto caminhava, pensei:
— Às vezes, muitas pessoas (e até nós mesmos)
passam(os) alguns meses, anos ou a vida inteira, gostando de alguém sem que aquela
pessoa desejada ou amada saiba. Será que, neste momento, alguém está gostando
de mim e eu não sei?
Todavia, esse pensamento até que é comum e
fútil, muita gente já o teve. Minha verdadeira dúvida e indignação vieram
depois, quando estendi a questão:
— Pior ainda: será que alguém me odeia e eu
não sei? Será que alguém chegou a me odiar e eu não fiquei sabendo até hoje? Nossa,
isso dá um poema!
Guardei a ideia para escrever depois, liguei
o computador e acessei alguns sites. Num deles, como faz parte da rotina, ouvi
os dois minutos de áudio do filósofo Cortella, numa rádio (é um programinha bem
curto). Pois bem, após ouvi-lo, perdi a vontade de escrever o poema.
O motivo é que esse programa quase sempre
traz uma frase de algum pensador (conhecido ou desconhecido), mas, bem nesse
dia, a citação proferida foi: “Uma das vantagens desse mundo é de se poder
odiar e ser odiado sem se conhecer.” Frase do escritor italiano Alessandro
Manzoni, escrita na obra Os Noivos.
Por isso não quis mais fazer o poema: um
escritor do século XIX já pensou e escreveu a minha ideia sobre ser odiado sem o saber. Melhor ainda: seu fragmento foi além do meu pensamento e de seu tempo.
Hoje, seria muito fácil alguém dizê-lo, por
conta das redes sociais, onde as pessoas se adicionam como “amigos” e se
excluem com um click, num instante. O
excluído ou bloqueado nem sabe da sua situação (ao menos no momento), enquanto
o outro, ao bloqueá-lo, faz textos carregados de ódio a seu “respeito”. Mas Manzoni
viveu no século XIX...
Além disso, a frase do escritor, dialeticamente, pode trazer
uma resposta e solução para o problema do ódio. Pode-se odiar e ser odiado sem
se conhecer, mas muitos o fazem justamente por não conhecerem o outro. Sem
conhecer as razões e boa parte da vida do próximo, pode-se obter uma interpretação
equivocada de tal pessoa e, assim, odiá-la. Às vezes, o ódio é evitado pelo
conhecimento, pois geralmente ele é fruto da ignorância.
Por outro lado, há quem conheça muito bem alguém e, por isso mesmo, odeia-o, assim como há pessoas que amam o outro até que possam conhecê-lo pessoalmente e profundamente, que é quando a idealização se quebra.
Eu poderia ficar com raiva (alguns, talvez,
até odiariam) do Alessandro Mazzoni (ou de seu texto), mas, não. Pelo contrário,
fico agradecido de ter conhecido um de seus pensamentos antes de escrever o
mesmo, antes de ser redundante. A saber, até me lembrei de um poema do meu
poeta preferido: Mario Quintana. Escreveu o mestre:
Três
poemas que me roubaram
Lá pelas tantas menos um quarto eu suspirei
num poema:
“Vontade de escrever “Sagesse” de Verlaine...”
Mas o que eu tenho vontade mesmo
É de haver escrito “A pedra no meio do
caminho”
a “Balada & canha”, a “Estrela da manhã”,
se
— ó Musa infiel,
não te houvessem possuído antes
Carlos, Augusto e Manuel!...
(QUINTANA, 2008, p. 182)
Na verdade, fico feliz de ter tido, sem
saber, a mesma ideia de alguém que eu não conheci. Como disse Schopenhauer (2016):
“(...) Com freqüência, escrevi frases que hesitei em apresentar ao público, em
função de seu caráter paradoxal, e depois as encontrei, para minha grata
surpresa, expressas literalmente nas obras antigas de grandes homens.” (p. 46).
Não veio o poema, mas veio este curto texto,
que foi além do que eu havia imaginado. Uma surpresa agradável.
Referências
CORTELLA, Mario Sergio. Uma das vantagens desse mundo é de se poder odiar e ser odiado sem se conhecer. Disponível em: <http://cbn.globoradio.globo.com/comentaristas/mario-sergio-cortella/2016/09/20/UMA-DAS-VANTAGENS-DESSE-MUNDO-E-DE-SE-PODER-ODIAR-E-SER-ODIADO-SEM-SE-CONHECER.htm>.
Acesso em: 13. Jan. 2017.
QUINTANA, Mario. Seleção e organização de
Tania Franco Carvalhal. Três poemas que
me roubaram. In: 80 anos de poesia.
São Paulo: Globo, 2008.
SCHOPENHAUER, Arthur. Organização e tradução
de Pedro Süssekind. A arte de escrever.
Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016.
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