Não sou especialista em animês, mas gostaria
de comentar sobre um que acabei de assistir.
Há cerca de dois anos, um amigo do Facebook relatou
ter assistido ao anime Now and then, here
and there e ter gostado muito. Anotei o nome para assisti-lo depois, mas
passou-se um ano e eu não o tinha assistido ainda. Prometi a mim mesmo que
depois que terminasse de ver o Yu-Gi-Oh,
vê-lo-ia.
Terminado de assistir aos 224 episódios das
aventuras e dos duelos de Yugi e seus amigos, fui direto ao anime recomendado. O nome
original da animação é Ima, Soko Ni Iru
Boku, que no Ocidente ficou conhecido como Now and then, here and there (Agora
e depois, aqui e lá).
A obra possui apenas treze episódios, que
foram dirigidos por Daichi Akitaro (famoso pelo Fruits Basket) e dirigido por Hideyuki Kurata. O anime foi
exibido entre outubro de 1999 e janeiro de 2000. Apesar de curto, não se
engane, os temas abordados e a forma como são discutidos são de uma
profundidade imensa, proporcionando reflexões por muito mais tempo do que a
duração de cada capítulo.
Primeiramente, falemos sobre a abertura, que chega a nos lembrar
algumas soundtracks do Hunter x Hunter (Yoshihiro Togashi) clássico — também exibido entre 1999 e 2001
—, mas não apresenta ação alguma, apenas as figuras e os nomes dos personagens.
(Opening de Now and then, here and there)
É preciso dizer, também, que antes de cada episódio, antes mesmo da
abertura, lemos a frase “Pois dez bilhões de anos é um tempo tão frágil, tão
efêmero... Que incita um carinho amargo, quase desolador...”. Uma reflexão
introdutória, tal como é feito em Berserk (Kentaro Miura), mas este
último foi exibido em 1997 e 1998.
Pois bem, assim começa Now and then, here and there, com o
personagem principal, Shu, um menino elétrico, ingênuo e bondoso, lutando e
perdendo num dojo. Em seguida, caminhando pela rua, ele avista alguém em cima
de uma chaminé de um local abandonado, observando o pôr-do-sol.
Depois de certa insistência, a menina misteriosa diz se chamar Lala Ru.
Neste momento, porém, surge uma luz, alguns soldados e uma mulher, que depois
descobrimos se chamar Abelia. Eles são membros do exército de Hellywood, um
país-navio de outro mundo (em outro tempo), governado pelo ditador Hamdo. Lala Ru
está sendo procurada há tempos, por conta de uma habilidade única que ela
possui (depois descobrimos ser o controle da água). Shu, ao perceber que a
menina lhe pede ajuda, tenta impedir (a qualquer custo) que ela seja pega, mas
ambos são levados à Hellywood.
Neste momento, penso ser um ponto negativo na obra, pois é inverossímil
com a realidade. Shu tinha acabado de descobrir o nome da menina, não sabia nem
de onde ela veio ou o motivo pelo qual estavam atrás dela. Embora ele tenha um
grande senso de justiça, não é sempre que se pula de uma chaminé para outra,
correndo risco de vida, lutando contra dois soldados montados em enormes máquinas-dragão,
tudo isso tendo como arma apenas um pedacinho de madeira a seu favor... Mesmo
depois, ao chegar num mundo desconhecido, o personagem principal nem se lembra
da própria família, apenas em salvar a menina recentemente conhecida...
A partir daqui haverá alguns spoilers. Se não quiser sabê-los, assista
ao anime e volte — se quiser — depois.
Chegando ao outro mundo (Hellywood), Shu e Lala Ru tentam fugir, mas
são perseguidos por vários soldados de Hellywood a mando do ditador Hamdo. Aqui
começa o peso da história: todos os soldados são apenas crianças... Crianças
que foram retiradas de outras vilas, mas que agora servem a um ditador que, sem
que eles soubessem, após tomá-los de suas famílias, destruiu as suas cidades. Então,
elas lutam a favor do ditador, que lhes prometeu que quando capturassem Lala
Ru, voltariam para suas famílias e vilas... Cegas, elas seguem um sonho; cegas,
elas seguem a ideologia (d)e um homem que as oprime...
Não se explica o que “é” o mundo de Hellywood, mas acredito ser algum
lugar da Terra no futuro, pois, lá, todo o cenário é devastado por causa das
guerras e pela falta d’água. Além disso, há relação dada pelo título do anime: Agora
e depois, aqui e lá, que pode demonstrar o presente de Shu e o futuro de
Lala Ru e dos outros, o “aqui” do Japão e o “lá” de Hellywood. Ou ainda, pode
significar uma reflexão sobre quem somos aqui e agora e o que seremos ou
podemos ser mais tarde; outra sugestão, talvez, seja o “aqui” = nós, e o “lá” =
o(s) outro(s).
Outro fator não explicado é quem é Lala Ru, de onde veio, porque ela existe,
de onde vem o seu poder etc. Só sabemos que ela é considerada uma lenda por alguns
povos, pois vive(u?) há milhares de anos; é cobiçada por Hamdo, para que com a
água (que o mundo todo quase não tem) ele possa dominar outros lugares e países.
Num dos episódios, Lala Ru diz que sempre que usa o seu poder, sente-se
fraca; odeia os seres humanos, porque se ela os ajuda, eles querem “ajuda”
(benefícios) sempre, e caso se recuse, passa a ser odiada e perseguida, nunca os
contentando completamente. Isso ocorreu e se repetiu durante gerações
(lembram-se da frase que inicia todos os episódios? “Pois dez bilhões de anos é
um tempo tão frágil, tão efêmero... Que incita um carinho amargo, quase
desolador...”). Enquanto isso, Shu tenta convencê-la do oposto, que ainda há
bondade no mundo e pessoas boas; ele é um exemplo, outras pessoas que eles
conhecem, também.
Voltando à história, Lala Ru é capturada, mas para a infelicidade do
ditador, ela está sem o objeto que contém retido todo um “oceano” de água doce.
Este fica com Shu, que o perde numa luta contra Nabuca, uma criança líder de
uma tropa de Hamdo.
Nabuca é um dos personagens que mais muda conforme a narrativa, pois, no
início, ele se mostra sempre eficiente a serviço de Hamdo, matando até amigos
(outras crianças) se for preciso, se for uma ordem de um superior; mas quanto
mais ele se relaciona e conversa com Shu, mais percebe que não só ele, mas
todos os outros estão vivendo uma loucura, algo desumano.
Um dos companheiros de Nabuca, sempre ao seu lado, é Boo. Uma criança
mais nova e negra. É preciso ressaltar essa característica, pois não é comum, nos animês, termos personagens negros. Boo é um dos primeiros a ser influenciado
por Shu, compreendendo a si mesmo, suas vontades e seus medos; deixando de fazer o
que não queria, mas que fazia porque foi imposto, lutando sem querer lutar. Além
disso, é interessante notar a leve semelhança entre o personagem de Now and
then, here and there com o Oob (o contrário de “Boo”, pois é a reencarnação
boa do vilão “Boo”) de Dragon Ball Z (Akira Toriyama). Coincidência (?),
ambos são negros.
Uma outra leve (leve, bem de longe!) semelhança entre personagens que
podemos perceber é entre Abelia, a fiel súdita do louco ditador Hamdo, que vive
entre seus surtos, ora sendo elogiada, ora sendo xingada e agredida
fisicamente, mas sempre submissa (como muitas mulheres ao redor do mundo...), e
a Faye Valentine, do anime Cowbow Bebop (Shinichiro
Watanabe
e Keiko Nobumoto), mas esta última
aparenta ser mais jovem e é mais cool,
(muito) mais sexy, e também possui uma personalidade muito diferente da súdita de Hamdo — claro, além de
obras e desenhistas diferentes, o contexto de Abelia é muito pior.
(Abelia e Faye. Detalhe: escolhi imagens em que as personagens podiam se parecer mais, porque, na verdade, Abelia é mais morena e "feia", enquanto Faye é mais bonita do que a imagem escolhida)
Aliás, os traços de todo o anime são mais
simples, sem muitos detalhes. As cores alternam entre o escuro e o claro, cores
frias e quentes (tal como as alternâncias do título do anime...). Precisamos
atentar-nos às feições dos personagens, porque nos diversos momentos de
silêncio, elas falam muito sobre o espírito, a vontade e o passado daquelas
pessoas...
Para não me prolongar demais, recomendo a
animação por conta de seus temas, que não são muito comuns entre nós,
ocidentais, em desenhos. Em Now and then, here and there discute-se
violência, ideologia, fascismo, guerras, determinismo, reprodução, vingança, tortura, medo, fome, falta d’água, estupro, aborto, perda de inocência etc., tudo mediado,
discutido, vivenciado por crianças. É isso que faz com que a obra seja pesada,
uma das mais fortes que já assisti. Se fossem adultos, não teria o mesmo impacto.
Por mais que seja ficção científica, é tudo muito real e próximo de nós.
Contudo, no final, por mais tristes acontecimentos que tenham
acontecido, ainda assim, resta uma mensagem de esperança. Ao lado de Kino No
Tabi (Keiichi Sigsawa),
considero-o o animê mais filosófico que já assisti.
P.S.: Há outros personagens e acontecimentos, além de fatores como trilha sonora, que devem ser refletidos, mas deixo-os para quem assistir. Para quem não viu ainda, esse texto é só
uma introdução; para quem já o assistiu, uma conversa.
Top man! Gostei bastante do texto, sintetiza bem o espírito do anime.
ResponderExcluirQue bom que gostou, amigo. Obrigado!
ExcluirParabéns pelo texto, terminei o anime agora pouco, a história de fato não se preocupa em explicar detalhadamente as questões daquele mundo, no entanto - para olhares atentos o conteúdo está lá mesmo que sutilmente. Um ponto que eu acho válido ressaltar é o arco da Sara, a personagem que de início confundida com Lalaru é mostrada como uma vítima das circunstâncias e depois surpreende com o melhor e mais triste desenvolvimento em toda serie. No fim é um anime interessante do tipo raro de se ver hoje em dia.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. É verdade, recentemente, li a análise de outra pessoa sobre o anime e percebi que preciso revê-lo, porque a profundidade é grande e há mais camadas para se observar. Realmente, raridade.
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