BANDEIRA,
Pedro. Ameaça de 7 cabeças. 8 ed. São
Paulo: Moderna, 1985. Coleção Veredas.
Ameaça de 7 cabeças (1985) é um livro do renomado
escritor Pedro Bandeira, autor de clássicas obras da literatura infantil e infanto-juvenil
nacional. Escrito em 1985, último ano da ditadura militar brasileira, a obra é
uma sátira desse período negro e conturbado do país.
A história acontece numa cidade chamada Findomundo, um
local pacífico, onde as pessoas escolhiam quem exercia muitas funções de sua sociedade,
aparentemente, satiricamente, aristocrática: “o povo votava para rei, para
príncipe, para princesa, para rainha, para ministro, para deputado, para
marquês e até para técnico da seleção findomundense de futebol” (BANDEIRA,
1985, p. 5). Claramente, o oposto do que acontecia de fato no Brasil, na época;
ao mesmo tempo, uma vontade do que deveria acontecer, uma espécie de democracia
— que no livro é absurdamente exagerada, para efeito cômico.
O nome do rei eleito era Kakéticus I, um ex-sapateiro
caquético (talvez para ironizar que o sistema vigente, tanto na obra quanto no
Brasil, já estava ultrapassado, desgastado). O rei era uma pessoa justa, só
reinava “respeitando as leis que os deputados aprovavam. Os deputados também
eram eleitos pelo povo, e ninguém se queixava das leis, porque elas eram do
jeitinho que todo mundo queria” (idem, ibidem, p. 6). O trecho nem precisa de
explicação.
Todavia, é preciso ressaltar que não se podia votar
para todas as funções e empregos do Findomundo, apenas
(...) para cargos que não exigiam especialização, como rei,
primeiro-ministro e porteiro de teatro. Os trabalhos importantes, como de
sapateiro, bailarina, professor e palhaço, eram feitos por quem tinha jeito
para a coisa. Todo mundo sabe que qualquer palhaço pode ser ministro da
Fazenda, mas não é qualquer ministro que consegue ser um bom palhaço. (idem,
ibidem, p. 6).
Trecho bem atual, pois até hoje a política brasileira
recebe palhaços, ex-jogadores de futebol e outras pessoas que não entendem muito de política, mas que foram
escolhidos pelo povo para representá-lo.
Quem narra a história é um cidadão comum, um vendedor
de bolhas de sabão, parceiro de um poeta, Simão, que também tenta comercializar
os seus textos. Ambos não vendem nada. É interessante esta observação do
narrador: “Todos gostavam de ouvir Simão declamar seus versos, mas ninguém
comprava nenhum” (idem, ibidem, p. 8). O trecho demonstra a desvalorização pelos
artistas, pela arte, logo, pela própria cultura. Uma realidade existente até
hoje.
Tudo ia bem, até que, um dia, de repente, ouviu-se um
estrondo enorme, seguido por um fogaréu no alto do Corcovado. Embora quase todos
tenham entrado em pânico, há quem os ignorou e pensou em lucrar com a situação:
“— Que bacana! Um vulcão no Findomundo! Isso pode ser bom para o turismo!”
(idem, ibidem, p. 12). Não deixa de ser uma amostra de que o capitalismo se
aproveita de qualquer circunstância para obter ganhos, mesmo que isso represente
o perigo de algumas pessoas e do seu próprio ambiente.
Estavam discutindo o ocorrido, quando chegou um
cavaleiro autoritário, xingando todos os presentes, inclusive o rei, alegando
que ele, o cavaleiro, foi quem defendeu a cidade da ameaça no Corcovado, um
dragão de sete cabeças (que ninguém viu). É interessante notar a descrição desse
personagem, porque ele lembra um pouco a figura de Dom Quixote de la Mancha, e
também tem um nome chamativo, Don Pendragon de Cantalupo: “Estava meio
estropiado, com a cara suja, o nariz arranhado, lança partida, espada gotejando
sangue e quebrada a pluma que lhe pendia do elmo” (idem, ibidem, p. 13).
Deve-se perceber, também, que o cavaleiro, além de
agressivo e autoritário, utiliza-se de uma linguagem rebuscada, para enganar os
pacíficos cidadãos de Findomundo, tal como alguns políticos fazem até hoje, quando
usam mesóclises, por exemplo. Veja a primeira fala do personagem: “— Idiotas!
(...) Pascácios! Nem merecíeis que eu tivesse arriscado a vida para salvar
vossa cidade miserável!” (idem, ibidem, p. 13).
Dessa forma, Don Pendragon simplesmente toma o poder
da cidade, alegando que tem direito por ser o único que enfrenta o dragão quase
imortal, pois nasce uma nova cabeça sempre que uma das sete é cortada. Assim, o
cavaleiro ganha o respeito e a admiração do povo alienado e medroso, que tem medo
de subir ao Corcovado, ao mesmo tempo em que a nação vive sob a ameaça de uma
possível invasão do dragão, notícia espalhada por Pendragon.
O fato pode ser relacionado à ditadura militar que se
instaurou no Brasil, quando os militares tomaram o poder, justificando que
estavam a defender o país de uma invasão ou ditadura “comunista”. Ao final,
anos depois, viu-se que não havia ameaça nenhuma, mas, pelo contrário, havia
acordos e objetivos entre as elites de alguns países da América.
O povo de Findomundo começou a viver em desespero,
enquanto o cavaleiro, que inventava as histórias sobre o monstro, dormia
tranquilo, na mordomia do reino. De vez em quando, Pendragon pegava o seu
cavalo e subia ao Corcovado, voltava sempre sujo e arranhado, dizendo que venceu
mais uma batalha contra o monstro, que infelizmente não morreu. Ainda assim,
havia quem quisesse lucrar com a situação de “guerra”. Eram os sensacionalistas
e capitalistas daquele mundo:
Daria gosto ver um espetáculo como aquele. Foi até pensando nisso que o
Ministro do Turismo tentou vender ingressos, com direito a transporte até o
Corcovado, para a tremenda luta entre o dragão e o bravo Don Pendragon de
Cantalupo. Como a coragem dos possíveis espectadores fosse menor que sua
curiosidade, o Ministro tentou vender ingressos para quem não quisesse assistir à grande luta. (idem, ibidem, p. 27)
Quando o cavaleiro soube que aquele local possuía um
rei e que este era eleito pelo povo, caiu na gargalhada:
— Ah, isso sim que é uma cidade boa para ser destruída pelo dragão.
Cretinos! Então não sabeis que o povo existe para obedecer e que somente alguns
nascem para comandar?
(...) Uma ameaça muito maior que a vossa ignorância está às vossas
portas, e só eu posso enfrentá-la. Precisamos organizar a defesa. Quem é o
vosso Ministro da Guerra?
(...) Não tendes Ministro da Guerra? Não é possível!
(...) Serei eu vosso Ministro da Guerra!
(...) O quê?! (...) Quem sois vós, perituros camponeses, para opinar se
Don Pendragon de Cantalupo deve ou não assumir o papel que o dedo do destino
lhe apontou? Então pensais que o nobre sangue que me insufla as veias precisa
da vossa aprovação para qualquer coisa? (idem, ibidem, p. 29-30).
A partir desse momento, a pequena cidade de Findomundo
começou a viver uma ditadura, sob ameaças, censuras e prisões. Os ladrões, que
antes eram escolhidos a dedo, sob votações do povo, presos de mentirinha (o que alude às falsas
investigações e aos falsos julgamentos reais), só para haver emprego para
delegados, juízes, policiais etc. — de
certa forma, uma “indústria do crime” —, agora seriam presos de verdade. E para
construir os presídios/calabouços, deve-se “(...) aumentar os impostos! —
berrou o herói. — O povo precisa pagar, para sentir o quanto custa enfrentar o
inimigo!” (idem, ibidem, p. 33).
Todavia, mesmo com um exército e desfiles diários das
tropas, cada dia mais, as pessoas estavam com medo. Agora, nem coragem para
levantarem a cabeça e olharem para o Corcovado tinham. Nada mais real, pois as
ditaduras só sobrevivem através do medo.
Por causa da censura, obviamente, a arte seria
barrada. Foi o caso de Simão, o poeta, amigo do narrador, que foi preso,
simplesmente por fazer versos sobre o tal monstro do Corcovado e rimou
“cavaleiro” com “embusteiro”. Em sua defesa, disse: “Meu poema só ajudou a
lutar contra o dragão. Pois a arte, quando é livre, desmascara a desgraça,
fortalece o ameaçado a enfrentar a ameaça. Ela afasta o medo cego, dá a força e
a consciência, abre os olhos à verdade e convoca à resistência!” (idem, ibidem,
p. 39). Note que, embora escrito em prosa, as falas do personagem sempre rimam.
Mas não adianta nada dialogar com o ditador, que não
aceita as suas desculpas, o que rende um bom diálogo:
(...) Poeta, de agora em diante, trarás para mim todos os versos que
compuseres. Em três cópias, muito bem escritas. Só depois que eu me certificar
que neles não há nenhuma traição é que poderás declamá-los!
(...) — Ordenas o impossível, cavaleiro Pendragon. (...) Na poesia, a
liberdade é a razão de quase tudo. Se meu verso não for livre, será como ficar
mudo!
— Pois fica mudo, então! (...) O Findomundo pode muito bem passar sem
tua poesia. O que esta cidade precisa agora é de segurança contra o dragão. Não
de versos. Muito menos versos como os teus, que solapam o espírito do povo,
deixando-o à mercê da grande ameaça! (idem, ibidem, p. 40).
Após algumas discussões, acontecem alguns
desentendimentos e prisões de personagens importantes, o que ocasiona no inesperado
e diferente (por conta do narrador) desenlace da trama, que fica para quem ler a
história completa.
Em suma, Ameaça
de 7 cabeças é um excelente livro, que, ao mesmo tempo em que diverte,
critica problemas da sociedade da época, que infelizmente existem até hoje
(afinal, quando se corta uma cabeça, outra nasce...). Escrito numa forma
simples, dividido em pequenos capítulos, repleto de bons e inteligentes diálogos,
a obra pode ser lida rapidamente, numa única tarde. Embora faça parte da
Literatura Infantil/Infanto-Juvenil, a história pode ser apreciada por leitores
de qualquer idade. A propósito, quem vivenciou o período da ditadura militar brasileira,
que terminou no ano em que o livro foi escrito, pode fazer muito mais
analogias.
Pedro Bandeira é um renomado escritor brasileiro,
autor de clássicos como A Droga da
Obediência, A Droga do Amor, A Droga de Americana e O Fantástico Mistério de Feiurinha.
Carlos Siqueira é formado em Letras – Português,
Inglês e respectivas Literaturas, na Faculdade de Santo André, SP.