Boku
Dake ga Inai Machi (“A cidade onde só eu não existo”) é um
mangá de Kei Sanbe, publicado de 2012 a 2016. Em 2016, a obra teve uma adaptação
para animê, de apenas 12 episódios, que também é conhecida como Erased. O estúdio responsável pela série
foi o A-1 Pictures, que já produziu animações famosas como Fairy Tail (2009) e Sword Art
Online (2012). A abertura ficou por conta da excelente banda Asian Kung-Fu
Generation, conhecida por ter suas músicas exibidas em Full Metal Alchemist (2003), Naruto
(2002) e Bleach (2004).
Erased
traz a história de Satoru Fujinuma, um rapaz de 29 anos, que sonha em ser
mangaká, porém, sempre tem os seus trabalhos recusados, por conta de ele não
conseguir se aprofundar na vida de seus personagens. Na verdade, isto é reflexo
da sua própria personalidade: afastado, sem amigos. São as primeiras palavras
de Satoru: “Estou com medo. Eu tenho medo de entrar no meu próprio coração”. Assim,
enquanto tenta se tornar mangaká, trabalha como entregador de pizza.
É interessante esta antítese, porque embora
as palavras do protagonista sejam profundas, os contratantes de novos
desenhistas o tratam como superficial. Duas possibilidades: ou ele é um
personagem complexo e contraditório, ou ele é falso. Depois, no decorrer da
série, vemo-lo ser tratado como a segunda hipótese.
Satoru Fujinuma possui um poder que ele chama
de “Revival” (renovação, renascimento, restauração, em português), que é o de,
repentinamente, voltar ao passado, cerca de 5 minutos, sempre que alguma
tragédia acontece. Enquanto ele não a evitar, a situação se repetirá. Isso o
transforma num herói anônimo.
É exatamente por este motivo que o personagem
se culpa pelas ações que ele não fez quando teve a chance, pois quando era
criança (antes de ter esse poder — que ele não controla), três de suas amigas
foram sequestradas, não se sabe exatamente por quem, embora tenham achado um
“culpado” pelos casos.
Um dia, de repente, quando Satoru está com a
sua mãe, ele tem um revival, mas quem
evita a tragédia é ela, a mãe. Seria um sequestro de uma menina. Porém, o sequestrador
percebe quem o avistou, segue-a e mata-a com facadas, pois ela sabia demais. Satoru
chega em casa e vê a mãe morta, no entanto, a polícia o acusa do feito, o que o
faz fugir do local e ter outro revival,
entretanto, agora ele volta 18 anos atrás, quando era criança, bem na época
onde suas três amigas sumiriam, em 1988. Assim, como um herói, Satoru tentará
evitar os sequestros, fazer amigos e mudar o seu futuro, para evitar todas essas mortes.
(Se
você só quer saber a sinopse, pare de ler aqui, pois, a partir de agora, alguns
momentos do animê serão citados e algumas comparações serão feitas.)
Comentários
Neste passado, temos a personagem Kayo
Hinazuki, uma menina triste e solitária. Ela seria a primeira sequestrada. Seu
afastamento e personalidade são justificados pelas agressões físicas de sua
mãe, que, por sua vez, é agredida pelo namorado. É interessante como é formada
essa cadeia de violência, de como um pouco de atenção e carinho dados às
pessoas podem mudá-las. Satoru, no passado, não era tão próximo à Kayo, mas
agora ele fez diferente, mudando a forma de ela ser também.
Sobre este assunto, é lindo quando o protagonista
dá a mão para a sua amiga, por estarem ambos sem luvas, no frio, na neve. E,
depois, quando um presenteia o outro com luvas, isto é, quando um proporciona
acolhimento, conforto e calor ao outro. Bonita metáfora (que será repetida).
Outra metáfora que aparece no mesmo episódio
é a aparição de uma borboleta. Ela surge em alguns episódios, tanto no
passado quanto no futuro, e pode indicar três situações: um ciclo (a borboleta
passa por várias transformações até chegar à sua forma final), assim como
algumas frases da Kayo que se repetem no futuro, mas ditas pela personagem Airi
Katagiri; a liberdade (por conta das asas), como os sentimentos de Satoru sendo
expressos, diferente de seu eu do futuro, que não conseguia expor o que queria;
e, por fim, o “efeito borboleta”, relacionado às pequenas mudanças que o
protagonista está causando no passado, mas que mudarão todo o futuro.
É importante ressaltar que o título
(traduzido), “A cidade onde só eu não existo”, é inicialmente feito por Kayo,
num texto. A criança isolada quer se isolar mais ainda, sua utopia é um local
onde só ela exista, para fazer o que quiser, para ser, enfim, livre; ao mesmo
tempo, o local de onde ela veio não a possuiria, obviamente. E, novamente: a
obra é um reflexo do seu autor (tal como o mangá superficial de Satoru), no
caso de Kayo, um pedido de socorro. O título, depois, se liga a outras ocasiões...
Um fato bem trabalhado e curioso é a mudança
de cenário entre o passado e o futuro. Enquanto no último há celulares, muitas
pessoas na rua e no metrô, em 1988, as conversas das crianças são sobre os clássicos
jogos de videogame Final Fantasy e Dragon Quest.
Outras referências que ocorrem ao longo do
animê são as citações de livros. Kenya Kobayashi é um dos melhores amigos de
Satoru, é o inteligente da turma, que está sempre lendo algo. Ele chega a citar
“O homem trocado”, de Edgar Allan Poe, mas depois confessa que o livro não
existe (já o autor, todos sabem, é um clássico da Literatura mundial). Porém,
este título faz alusão ao próprio Satoru, que, segundo Kenya, parecia ser outra
pessoa, um homem trocado. Claro, a mente do Satoru de 29 anos está agora na criança de 11. Durante
a série, Kobayashi ainda menciona Romeu e
Julieta, enquanto Aya Nakanishi, que
seria uma das vítimas do serial-killer,
aparece lendo Rei Lear, duas obras de
Shakespeare.
(É interessante pensar que no Rei Lear, o rei fica louco, assim como o
sequestrador e assassino de Erased.
Outra ligação é o fato de o rei ter três filhas, enquanto o sequestrador inicia
seus atos com três vítimas, além de ele ser considerado, pela profissão, um
segundo pai para as crianças...)
E a história caminha com Satoru e os amigos
tentando evitar os desaparecimentos das amigas, embora só o protagonista saiba
do que acontecerá. Ao mesmo tempo, o Satoru do futuro tenta evitar ser preso.
Nessas idas e vindas de consciência, causadas pelo revival, ele descobre que quem matou a sua mãe é o responsável
pelos crimes ocorridos no passado. É nisto que entra um problema do animê.
É que até o episódio 7, Satoru não controlava
o seu poder. O revival acontecia de
repente. Porém, quando ele descobriu, no futuro, quem matou a sua mãe,
lembrou-se de sua infância, aí soube o que precisaria fazer para evitar a morte
de sua amiga Kayo. Nisto, por desejar voltar ao passado, voltou. Simplesmente
assim.
Outro problema do animê é que esse poder não
é explicado, não se sabe como ele o ganhou, nem o porquê de só ele o ter. No
final, é dito que nunca mais o revival
aconteceu. É um aparecimento e desaparecimento repentino, diferente do que
acontece no animê Steins; Gate
(2010), onde causas e consequências são explicadas.
Pode-se citar o Steins; Gate por quatro motivos: em primeiro lugar, porque também é
um animê de viagem no tempo. Em segundo lugar, porque tanto nele quanto em Boku Dake ga Inai Machi há uma
personagem de aparência feminina, mas que, na verdade, é um homem. No caso do Steins; Gate, é o caso de Ruka Urushibara; no de Erased, é o de Hiromi
Sugita. E em terceiro lugar, ambas as obras possuem personagens que dizem que
por o futuro ser desconhecido, todos somos potências, que nada é impossível.
Aliás, a frase “Impossible is nothing”
está escrita num dos cenários de Boku
Dake ga Inai Machi. Em quarto lugar, a borboleta, já mencionada em Erased também aparece em Steins; Gate (somente na abertura), por
conta do efeito borboleta. As duas são azuis.
(Borboleta que aparece na abertura de Steins; Gate)
(Hiromi Sugita, de Erased)
(Ruka Urushibara, de Steins; Gate)
Outra semelhança possível (de longe, vagamente)
é a de Erased com Detective Conan (1996), pois, neste
último, também há um homem adulto que volta à sua forma criança, mas não por
causa de um conflito no tempo ou por algum poder, mas “graças” a uma droga que o
fizeram tomar, com o intuito de matá-lo, o que não acontece. Assim, Shinichi
Kudo (o personagem principal) segue a história tentando descobrir quem tentou
matá-lo. Em Erased também há esse
clima de investigação de crianças.
Um fato curioso da obra é a metalinguagem,
que ocorre por ter um personagem de animê envolvido na criação de um animê/mangá,
além de em uma das cenas haver um muro escrito “Re: Re”, que é o título da
música de abertura da animação.
("Impossible is nothing", ou "Nada é impossível", em tradução livre, frase escrita num muro de Erased)
("Re: Re", título da música de abertura do animê, criada pela banda Asian Kung-Fu Generation, escrito no mesmo muro de Erased)
Em suma, Boku
dake ga Inai Machi é um animê comum, com uma produção muito bem feita, uma
trama interessante (mas com alguns problemas e obviedades), uma excelente e cativante soundtrack,
temas que induzem à reflexão, como o abuso físico e mental de crianças, a
necessidade de dar atenção às pessoas ao nosso redor, a ligação entre o nosso
passado, presente e futuro, a dualidade (e perigos) de personalidades de
algumas pessoas próximas, além de o animê mostrar a vagarosidade de algumas
instituições — como o conselho tutelar — em tomarem uma ação quanto aos possíveis
problemas dos alunos, ou a falibilidade de outras corporações, como a polícia,
por exemplo.
A obra possui os seus deslizes, como os que já foram mencionados antes (outro deles é a forma da câmera mostrar o personagem que viria a ser o vilão, tornando-o óbvio; mais um deles é o grau dos diálogos, muito profundo e existencialista para crianças de 11 anos, o que os tornam inverossímeis), que diminuem o valor da animação; o final também não é dos melhores, mas vale a pena assistir ao animê como entretenimento.
A obra possui os seus deslizes, como os que já foram mencionados antes (outro deles é a forma da câmera mostrar o personagem que viria a ser o vilão, tornando-o óbvio; mais um deles é o grau dos diálogos, muito profundo e existencialista para crianças de 11 anos, o que os tornam inverossímeis), que diminuem o valor da animação; o final também não é dos melhores, mas vale a pena assistir ao animê como entretenimento.
Relato pessoal
Num dos episódios, o falso roubo, tramado
pela aluna rica da sala, para culpar a pessoa mais pobre, a Kayo, me lembrou
uma vivência que tive.
Quando estava no primeiro ano do ensino
médio, em 2009, uma vez, um colega pediu emprestado o celular de um amigo, que o
emprestou. Porém, sem cuidado, depois de um tempo, o colega o largou de canto,
em cima de uma mesa. Eu, ao ver o celular, devolvi ao dono.
Momentos depois, quando o colega percebeu que
não sabia mais onde estava o aparelho, foi perguntar ao dono se ele sabia onde
estava. Meu amigo negou, para fazer um medo e ver se o colega teria mais
responsabilidade numa próxima vez. No entanto, ao se desesperar, pensando que
havia perdido o celular, esse colega imaginou que alguém poderia ter roubado o
aparelho. Assim, sem nem perguntar se alguém havia visto o objeto, ele foi
diretamente à bolsa de um dos meninos mais pobres da sala, negro, acusando-o de
ter roubado o celular...
Há vários outros momentos que poderiam ser
comentados, principalmente sobre o final, mas seriam spoilers. Novamente, como na análise do Kino no Tabi, sinto-me como se não houvesse dito nada...