O filme americano Valente (Brave, no
original), de 2012, da produtora Pixar,
traça uma interessante relação com a Literatura Infantil, tanto com a contemporânea quanto com a antiga, a tradicional, criando, assim,
um jogo de aproximações e afastamentos entre certos parâmetros. Para perceber
esses padrões, será usado o livro Literatura
Infantil: teoria, análise, didática (2000), da escritora Nelly Novaes
Coelho.
O filme conta a história de Merida, uma princesa
escocesa. A menina, segundo a tradição, deve se casar com algum príncipe dos
reinos vizinhos e aliados. No entanto, não é isso o que ela quer — até porque ainda
é uma criança... Na verdade, tudo o que a princesa gosta vai contra os
costumes e os ensinamentos de sua mãe (ensinamentos destinados para toda
mulher da época, principalmente às damas).
São estes fatores que ocasionam os conflitos entre a filha e a mãe, que podem
colocar todo o reino em desgraça.
A película já inicia com uma frase
emblemática:
Dizem que o nosso destino está ligado à nossa terra, que
ela é parte de nós, assim como nós somos dela. Outros dizem que o destino é
costurado como um tecido, onde a sina de um se interliga à de muitos outros. É
a única coisa que buscamos ou que lutamos para mudar. Alguns nunca encontram o
destino, mas outros são levados a ele. (ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda, 4”28’ –
5”05’)
Percebe-se, então, que há um determinismo no
filme, uma tradição a ser seguida ou a ser quebrada; um questionamento entre obedecer
ou questionar, que é um dos conflitos entre a Literatura Infantil tradicional e
a contemporânea.
Olhando para os personagens, nota-se que
Merida é muito parecida com o seu pai (um bravo guerreiro), tanto na aparência
quanto nos gostos, que ele a influencia desde criança, quando, por exemplo, lhe
deu um arco como presente de aniversário — algo inaceitável para a mãe, que diz
que damas não devem usar esse tipo de objeto. Ainda sobre o visual da
personagem, o cabelo da princesa é ruivo e encaracolado, que ela o usa de forma
solta.
É importante ressaltar essas características,
porque elas estão ligadas à personalidade da protagonista: solta, livre,
guerreira (como o pai). Diferente dela, sua mãe, Elinor, usa o cabelo preso,
porque é uma pessoa presa às regras e às tradições da época. Tanto o é, que, no
final, quando os conflitos são resolvidos, a mãe anda de cavalo junto da filha
(algo que a rainha considerava errado para uma dama) e usa o cabelo solto, o
que mostra que ela também se libertou.
(Uma
das cenas finais)
Como se vê, Elinor representa a ordem, a
obediência que deve haver e que sempre houve na tradicional “literatura para
crianças, o domínio quase absoluto da exemplaridade;
da rigidez de limites entre certo/errado, bom/mau; etc.” (COELHO, 2000, p. 20).
Por outro lado, como já havia sido afirmado, o filme rompe com alguns
paradigmas, criando algo inusitado. No caso, a mãe é quem manda na família, ao
invés do pai, do marido — que sempre foi o ente “responsável” para essa
situação (ao menos no contexto do filme). Ainda assim, a mulher continua a ser
idealizada em Valente. Segundo, Nelly
Novaes Coelho (2000):
(...) essa superioridade
do homem, patente no plano da vida prática, corresponde à idealização da mulher, no plano dos
valores ideais conforme se vê na literatura, num prolongamento evidente da
valorização da mulher, iniciada na Idade Média (...) Na literatura para
crianças, todas essas características aparecem de maneira evidente, quase
caricata, reforçando os limites entre o que é próprio da mulher e do homem. (p.
21)
No
filme, isso é reforçado com uma moral
dogmática e uma reverência pelo
passado, não somente pela rainha, mas pelos reis aliados também, que, na
“data certa”, levaram seus filhos como pretendentes para cumprirem o seu
destino e darem continuidade à família. Para “conquistarem” a moça, como os
antepassados sempre fizeram, todos competem em jogos. Não há sentimentos
envolvidos, apenas rituais.
Ainda sobre a reverência ao passado, é
interessante notar como a mãe conta uma história à filha, uma lenda que,
segundo ela, realmente aconteceu. Essa narrativa traz um rei que dividiu a sua
terra para seus quatro filhos, mas o mais velho era mais ganancioso e
desrespeitou o pai, tomando tudo para ele. Contudo, o reino se desfez em
ruínas, caos e guerras. São as “verdades” passadas de geração em geração. Mais
do que isso, a rainha utiliza de todo um jogo de persuasão sobre a menina, para
fazê-la aceitar a ordem “natural” dos fatos e culpá-la, implicitamente, se caso
acontecer algo ruim ao reino e à paz atual. Observe este diálogo:
Merida — É uma bela história!
Elinor — Não é só uma história, Merida. Lendas são
lições, elas carregam a verdade.
Merida — Ah, mãe!
Elinor — Eu aconselharia você a aceitar isso. (ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda, 13”38’ – 13”50’)
(Os quatro antigos príncipes irmãos: três
bons e um ruim, três sob a luz e um sob as sombras, os três de cabeça baixa, em
respeito ao pai, e um de rosto erguido, em sinal de orgulho. Outra
“coincidência” é que Merida é a mais velha dos quatro filhos do atual reino.)
Novamente, há outra contradição vinda da
própria mãe autoritária, que, na história, para fazer a filha se casar, contou a
lenda de um reino que se desfez porque um filho agiu sozinho ao invés de agir em
conjunto com os outros três irmãos. O espírito solidário é um conceito da Literatura
Infantil contemporânea, não da tradicional.
No plano visual, quando a rainha prepara a
filha para conhecer os pretendentes, a roupa que a princesa usa, tão apertada —
a ponto de ela quase não conseguir se mover e respirar —, reflete como ela se
sente interiormente. Além disso, diferentemente da mãe, a menina só fica com o
rosto e as mãos para fora. Irreconhecível (para a mãe: linda, perfeita), isto
é, sem identidade alguma.
No entanto, não há jeito, a menina não quer
se casar e humilha todos os
pretendentes no jogo que ela mesma propôs: arco e flecha.
(É interessante pensar que a flecha, quando
atirada, possui um destino certo, o que lembra a passagem narrada no início do
filme.)
Com isso, a princesa recebe uma bronca da
mãe, que diz que os meninos foram envergonhados (algo inaceitável na Literatura
infantil tradicional) e que ela é a rainha, que a filha deve ouvi-la:
Elinor — Agora foi demais, você passou dos limites,
mocinha!
Merida — Mas foi você que quis...
Elinor — Você os envergonhou! Você envergonhou a mim!
Merida — Eu obedeci às regras.
Elinor — Você não sabe o que fez!
(...)
Merida — Me escuta!
Elinor — Eu sou a rainha! Você ouve a mim!
Merida — Ah, isso é muito injusto!
Elinor — Como é?
Merida — Você não se importa comigo! Essa história de
casamento é o que você quer! Você já pensou em perguntar o que eu quero? Não!
Você sai por aí me dizendo o que fazer, o que não fazer, tentando me fazer ser
como você! Mas eu não vou ser como você!
Elinor — Ah, está agindo como uma criança...
Merida — E você é um... monstro! Isso é o que você é!
(ANDREWS, Mark;
CHAPMAN, Brenda, 27”03’ – 28”04’)
Dois elementos importantes neste trecho: como
a mãe utiliza não da sua posição familiar, como mãe, mas da sua posição social,
como rainha, para fazer a filha ficar quieta. E, segundo, o tratamento da
menina como um adulto em miniatura, conceito da Literatura Infantil tradicional.
Ao mesmo tempo, há o questionamento da autoridade por parte de Merida, o
“Repúdio ao autoritarismo. Consciência da
relatividade dos valores e ideais criados pelos homens (...)” (COELHO,
2000, p. 25), característica da Literatura Infantil contemporânea.
Após essa discussão, a princesa,
momentaneamente, numa ira súbita, rompe com sua mãe. Aqui, a linguagem
não-verbal também é importante, porque assim como a filha corta sua obediência à
rainha, também corta um tecido que representa a ligação da família. Não num
ponto qualquer, mas exatamente entre as duas:
Em seguida, a menina foge e se encontra com
uma bruxa na floresta. Não é a primeira vez que elementos mágicos aparecem no
filme, pois, no início, já havia aparecido luzes mágicas — que o pai não
acredita existirem, o que mostra que a praticidade (o rei era apenas um
guerreiro) faz perder certo encanto que há em alguns aspectos da vida.
Do contato com a bruxa, Merida consegue um
encanto que mudará a sua mãe, porém, o que ela não sabia, é que Elinor seria transformada num urso (assim como o antigo príncipe mal — aquele da lenda —
recorreu à bruxa para ter a força de dez homens, transformando-se num urso — o
mesmo urso que atacou a família de Merida, no início do filme). O interessante
é que no início da película, quando a princesa ainda é uma criança, vê-se a
rainha procurando-a, as duas brincando de esconde-esconde, e ao achar a filha,
a mãe, que estava dizendo “eu vou te pegar” (e não “eu vou te achar”), finge
que é um urso e que estava devorando a criança. É como se fosse o destino
transformando a brincadeira em realidade (tal como o fantástico tornou-se
real)...
Assim, Merida e a mãe têm pouco tempo para
desfazerem o feitiço (dois dias, exatamente). Nesse meio termo, Elinor aprende
que estava errada, que, às vezes, é preciso seguir os instintos (tal como um
animal...) ao invés de querer raciocinar tudo. Não é muito diferente do que Nelly
Novaes Coelho (2000) ensina sobre a intuição, elemento da Literatura Infantil
contemporânea: “A intuição, pondo em xeque a lógica convencional ou o senso
comum, abre campo para um novo conhecimento. Daí o atual renascimento da
fantasia, do imaginário, da magia, do ocultismo...” (p. 26).
É transformada em urso que a rainha perde
tais aspectos que ela possuía enquanto humana, como a etiqueta na hora de comer, por exemplo, ou a hora que,
simbolicamente, ela deixa a coroa esquecida sobre uma pedra e vai caçar (algo
que ela não permitia que a filha fizesse). É outro valor da nova literatura
infantil, a valorização do ser ao invés do ter.
Quanto à coerência do filme, não se pode
deixar passar batido o significado do “enigma” para desfazer o feitiço com o
ato antes praticado pela princesa, além da frase emblemática citada no início
do filme. As falas da bruxa para desfazer a transformação da mãe: “Sina alterada,
olhe sua alma. Remende a união por orgulho separado.” (ANDREWS, Mark; CHAPMAN,
Brenda, 49”54’ – 50”02’). A ordem é para costurar novamente a tapeçaria em que
a filha cortou, simbolicamente, a ligação entre ela e a mãe, no dia da grande
discussão. Agora, parte da frase do início do filme: “Outros dizem que o
destino é costurado como um tecido, onde a sina de um se interliga à de muitos
outros (...)” (ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda, 4”38’ – 4”47’). (Além disso, não
se pode esquecer que a tábua que mostrava os quatro filhos do antigo rei também
estava quebrada, separando o irmão ganancioso dos outros.)
Por fim, mas não antes de resolver o feitiço,
Merida ensina a todos os pais dos pretendentes que a questão não é sobre
disputa, mas sobre colaboração; que todos são e foram importantes para manter a
paz que há no reino até hoje, não há um único herói, mas todos o são. O passado
não deve ser idealizado e seguido, mas redescoberto, que a vida é uma mudança
contínua. E, principalmente, que cada um é responsável pelos seus atos, não
mera peça jogada pela mão do destino. A princesa é a representação das crenças
da nova Literatura-Infantil.
A
intertextualidade do filme com os contos de fada
Além de todos esses fatores que sempre
apareceram na Literatura Infantil tradicional e dos que aparecem na
contemporânea, há algumas intertextualidades do filme com os contos de fada e
com as histórias clássicas. Essa intertextualidade acontece, principalmente, no
nível das figuras: princesa, rei, rainha, enfim, pessoas aristocráticas;
obviamente, o contexto é o da Idade Média: castelo, reino etc.; os elementos
mágicos e simbólicos: bruxa (não tão má assim), luzes mágicas, feitiços,
vassoura mágica, corvo etc.; a bruxa faz bonecos de ursos de madeira, mas que,
quando se fala em “boneco de madeira”, é possível lembrar do personagem
Pinóquio; e embora a mãe, transformada em urso, e o antigo rei mal, também
transformado em urso, não falem e ajam como animais, ainda assim, é possível
lembrar das fábulas — e, junto dessas, das lições de moral que o filme transmite.
REFERÊNCIAS
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria,
análise, didática. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2000.
VALENTE.
Direção: ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda. E.U.A: Pixar Animation Studios, 2012. 93”37’.
Dizem que Merida é uma lenda do Reino Unido. Como conseguir a história original?
ResponderExcluirAdriane, eu nem sabia disso. Se realmente for verdade, deve haver referências por aí...
ExcluirObrigado por ler!
Adriane,de fato, é uma lenda das Altas Terras, estava procurando e acabei vindo para cá achando que haveria algo sobre ��
ExcluirMUITO BOM!
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