quarta-feira, 28 de junho de 2017

Análise comparativa entre o filme Valente (Brave, 2012) e a Literatura Infantil

O filme americano Valente (Brave, no original), de 2012, da produtora Pixar, traça uma interessante relação com a Literatura Infantil, tanto com a contemporânea quanto com a antiga, a tradicional, criando, assim, um jogo de aproximações e afastamentos entre certos parâmetros. Para perceber esses padrões, será usado o livro Literatura Infantil: teoria, análise, didática (2000), da escritora Nelly Novaes Coelho.

O filme conta a história de Merida, uma princesa escocesa. A menina, segundo a tradição, deve se casar com algum príncipe dos reinos vizinhos e aliados. No entanto, não é isso o que ela quer — até porque ainda é uma criança... Na verdade, tudo o que a princesa gosta vai contra os costumes e os ensinamentos de sua mãe (ensinamentos destinados para toda mulher da época, principalmente às damas). São estes fatores que ocasionam os conflitos entre a filha e a mãe, que podem colocar todo o reino em desgraça.

A película já inicia com uma frase emblemática:

Dizem que o nosso destino está ligado à nossa terra, que ela é parte de nós, assim como nós somos dela. Outros dizem que o destino é costurado como um tecido, onde a sina de um se interliga à de muitos outros. É a única coisa que buscamos ou que lutamos para mudar. Alguns nunca encontram o destino, mas outros são levados a ele. (ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda, 4”28’ – 5”05’)

Percebe-se, então, que há um determinismo no filme, uma tradição a ser seguida ou a ser quebrada; um questionamento entre obedecer ou questionar, que é um dos conflitos entre a Literatura Infantil tradicional e a contemporânea.

Olhando para os personagens, nota-se que Merida é muito parecida com o seu pai (um bravo guerreiro), tanto na aparência quanto nos gostos, que ele a influencia desde criança, quando, por exemplo, lhe deu um arco como presente de aniversário — algo inaceitável para a mãe, que diz que damas não devem usar esse tipo de objeto. Ainda sobre o visual da personagem, o cabelo da princesa é ruivo e encaracolado, que ela o usa de forma solta.



É importante ressaltar essas características, porque elas estão ligadas à personalidade da protagonista: solta, livre, guerreira (como o pai). Diferente dela, sua mãe, Elinor, usa o cabelo preso, porque é uma pessoa presa às regras e às tradições da época. Tanto o é, que, no final, quando os conflitos são resolvidos, a mãe anda de cavalo junto da filha (algo que a rainha considerava errado para uma dama) e usa o cabelo solto, o que mostra que ela também se libertou.



(Uma das cenas finais)

Como se vê, Elinor representa a ordem, a obediência que deve haver e que sempre houve na tradicional “literatura para crianças, o domínio quase absoluto da exemplaridade; da rigidez de limites entre certo/errado, bom/mau; etc.” (COELHO, 2000, p. 20). Por outro lado, como já havia sido afirmado, o filme rompe com alguns paradigmas, criando algo inusitado. No caso, a mãe é quem manda na família, ao invés do pai, do marido — que sempre foi o ente “responsável” para essa situação (ao menos no contexto do filme). Ainda assim, a mulher continua a ser idealizada em Valente. Segundo, Nelly Novaes Coelho (2000):

(...) essa superioridade do homem, patente no plano da vida prática, corresponde à idealização da mulher, no plano dos valores ideais conforme se vê na literatura, num prolongamento evidente da valorização da mulher, iniciada na Idade Média (...) Na literatura para crianças, todas essas características aparecem de maneira evidente, quase caricata, reforçando os limites entre o que é próprio da mulher e do homem. (p. 21)

 No filme, isso é reforçado com uma moral dogmática e uma reverência pelo passado, não somente pela rainha, mas pelos reis aliados também, que, na “data certa”, levaram seus filhos como pretendentes para cumprirem o seu destino e darem continuidade à família. Para “conquistarem” a moça, como os antepassados sempre fizeram, todos competem em jogos. Não há sentimentos envolvidos, apenas rituais.

Ainda sobre a reverência ao passado, é interessante notar como a mãe conta uma história à filha, uma lenda que, segundo ela, realmente aconteceu. Essa narrativa traz um rei que dividiu a sua terra para seus quatro filhos, mas o mais velho era mais ganancioso e desrespeitou o pai, tomando tudo para ele. Contudo, o reino se desfez em ruínas, caos e guerras. São as “verdades” passadas de geração em geração. Mais do que isso, a rainha utiliza de todo um jogo de persuasão sobre a menina, para fazê-la aceitar a ordem “natural” dos fatos e culpá-la, implicitamente, se caso acontecer algo ruim ao reino e à paz atual. Observe este diálogo:

Merida — É uma bela história!
Elinor — Não é só uma história, Merida. Lendas são lições, elas carregam a verdade.
Merida — Ah, mãe!
Elinor — Eu aconselharia você a aceitar isso. (ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda, 13”38’ – 13”50’)


(Os quatro antigos príncipes irmãos: três bons e um ruim, três sob a luz e um sob as sombras, os três de cabeça baixa, em respeito ao pai, e um de rosto erguido, em sinal de orgulho. Outra “coincidência” é que Merida é a mais velha dos quatro filhos do atual reino.)

Novamente, há outra contradição vinda da própria mãe autoritária, que, na história, para fazer a filha se casar, contou a lenda de um reino que se desfez porque um filho agiu sozinho ao invés de agir em conjunto com os outros três irmãos. O espírito solidário é um conceito da Literatura Infantil contemporânea, não da tradicional.

No plano visual, quando a rainha prepara a filha para conhecer os pretendentes, a roupa que a princesa usa, tão apertada — a ponto de ela quase não conseguir se mover e respirar —, reflete como ela se sente interiormente. Além disso, diferentemente da mãe, a menina só fica com o rosto e as mãos para fora. Irreconhecível (para a mãe: linda, perfeita), isto é, sem identidade alguma.
 



No entanto, não há jeito, a menina não quer se casar e humilha todos os pretendentes no jogo que ela mesma propôs: arco e flecha.

 (É interessante pensar que a flecha, quando atirada, possui um destino certo, o que lembra a passagem narrada no início do filme.)

Com isso, a princesa recebe uma bronca da mãe, que diz que os meninos foram envergonhados (algo inaceitável na Literatura infantil tradicional) e que ela é a rainha, que a filha deve ouvi-la:

Elinor — Agora foi demais, você passou dos limites, mocinha!
Merida — Mas foi você que quis...
Elinor — Você os envergonhou! Você envergonhou a mim!
Merida — Eu obedeci às regras.
Elinor — Você não sabe o que fez!
(...)
Merida — Me escuta!
Elinor — Eu sou a rainha! Você ouve a mim!
Merida — Ah, isso é muito injusto!
Elinor — Como é?
Merida — Você não se importa comigo! Essa história de casamento é o que você quer! Você já pensou em perguntar o que eu quero? Não! Você sai por aí me dizendo o que fazer, o que não fazer, tentando me fazer ser como você! Mas eu não vou ser como você!
Elinor — Ah, está agindo como uma criança...
Merida — E você é um... monstro! Isso é o que você é!
(ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda, 27”03’ – 28”04’)


Dois elementos importantes neste trecho: como a mãe utiliza não da sua posição familiar, como mãe, mas da sua posição social, como rainha, para fazer a filha ficar quieta. E, segundo, o tratamento da menina como um adulto em miniatura, conceito da Literatura Infantil tradicional. Ao mesmo tempo, há o questionamento da autoridade por parte de Merida, o “Repúdio ao autoritarismo. Consciência da relatividade dos valores e ideais criados pelos homens (...)” (COELHO, 2000, p. 25), característica da Literatura Infantil contemporânea.

Após essa discussão, a princesa, momentaneamente, numa ira súbita, rompe com sua mãe. Aqui, a linguagem não-verbal também é importante, porque assim como a filha corta sua obediência à rainha, também corta um tecido que representa a ligação da família. Não num ponto qualquer, mas exatamente entre as duas:
  


Em seguida, a menina foge e se encontra com uma bruxa na floresta. Não é a primeira vez que elementos mágicos aparecem no filme, pois, no início, já havia aparecido luzes mágicas — que o pai não acredita existirem, o que mostra que a praticidade (o rei era apenas um guerreiro) faz perder certo encanto que há em alguns aspectos da vida.

Do contato com a bruxa, Merida consegue um encanto que mudará a sua mãe, porém, o que ela não sabia, é que Elinor seria transformada num urso (assim como o antigo príncipe mal — aquele da lenda — recorreu à bruxa para ter a força de dez homens, transformando-se num urso — o mesmo urso que atacou a família de Merida, no início do filme). O interessante é que no início da película, quando a princesa ainda é uma criança, vê-se a rainha procurando-a, as duas brincando de esconde-esconde, e ao achar a filha, a mãe, que estava dizendo “eu vou te pegar” (e não “eu vou te achar”), finge que é um urso e que estava devorando a criança. É como se fosse o destino transformando a brincadeira em realidade (tal como o fantástico tornou-se real)...

Assim, Merida e a mãe têm pouco tempo para desfazerem o feitiço (dois dias, exatamente). Nesse meio termo, Elinor aprende que estava errada, que, às vezes, é preciso seguir os instintos (tal como um animal...) ao invés de querer raciocinar tudo. Não é muito diferente do que Nelly Novaes Coelho (2000) ensina sobre a intuição, elemento da Literatura Infantil contemporânea: “A intuição, pondo em xeque a lógica convencional ou o senso comum, abre campo para um novo conhecimento. Daí o atual renascimento da fantasia, do imaginário, da magia, do ocultismo...” (p. 26).

É transformada em urso que a rainha perde tais aspectos que ela possuía enquanto humana, como a etiqueta na hora de comer, por exemplo, ou a hora que, simbolicamente, ela deixa a coroa esquecida sobre uma pedra e vai caçar (algo que ela não permitia que a filha fizesse). É outro valor da nova literatura infantil, a valorização do ser ao invés do ter.

Quanto à coerência do filme, não se pode deixar passar batido o significado do “enigma” para desfazer o feitiço com o ato antes praticado pela princesa, além da frase emblemática citada no início do filme. As falas da bruxa para desfazer a transformação da mãe: “Sina alterada, olhe sua alma. Remende a união por orgulho separado.” (ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda, 49”54’ – 50”02’). A ordem é para costurar novamente a tapeçaria em que a filha cortou, simbolicamente, a ligação entre ela e a mãe, no dia da grande discussão. Agora, parte da frase do início do filme: “Outros dizem que o destino é costurado como um tecido, onde a sina de um se interliga à de muitos outros (...)” (ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda, 4”38’ – 4”47’). (Além disso, não se pode esquecer que a tábua que mostrava os quatro filhos do antigo rei também estava quebrada, separando o irmão ganancioso dos outros.)
  


Por fim, mas não antes de resolver o feitiço, Merida ensina a todos os pais dos pretendentes que a questão não é sobre disputa, mas sobre colaboração; que todos são e foram importantes para manter a paz que há no reino até hoje, não há um único herói, mas todos o são. O passado não deve ser idealizado e seguido, mas redescoberto, que a vida é uma mudança contínua. E, principalmente, que cada um é responsável pelos seus atos, não mera peça jogada pela mão do destino. A princesa é a representação das crenças da nova Literatura-Infantil.

A intertextualidade do filme com os contos de fada

Além de todos esses fatores que sempre apareceram na Literatura Infantil tradicional e dos que aparecem na contemporânea, há algumas intertextualidades do filme com os contos de fada e com as histórias clássicas. Essa intertextualidade acontece, principalmente, no nível das figuras: princesa, rei, rainha, enfim, pessoas aristocráticas; obviamente, o contexto é o da Idade Média: castelo, reino etc.; os elementos mágicos e simbólicos: bruxa (não tão má assim), luzes mágicas, feitiços, vassoura mágica, corvo etc.; a bruxa faz bonecos de ursos de madeira, mas que, quando se fala em “boneco de madeira”, é possível lembrar do personagem Pinóquio; e embora a mãe, transformada em urso, e o antigo rei mal, também transformado em urso, não falem e ajam como animais, ainda assim, é possível lembrar das fábulas — e, junto dessas, das lições de moral que o filme transmite.


REFERÊNCIAS

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2000.

VALENTE. Direção: ANDREWS, Mark; CHAPMAN, Brenda. E.U.A: Pixar Animation Studios, 2012. 93”37’. 

4 comentários:

  1. Dizem que Merida é uma lenda do Reino Unido. Como conseguir a história original?

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    1. Adriane, eu nem sabia disso. Se realmente for verdade, deve haver referências por aí...

      Obrigado por ler!

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    2. Adriane,de fato, é uma lenda das Altas Terras, estava procurando e acabei vindo para cá achando que haveria algo sobre ��

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