“(...) A literatura, e em especial a
infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em
transformação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo convívio
leitor/livro, seja no diálogo leitor/texto estimulado pela escola.” (COELHO,
2000, p.15).
É com esta citação que inicio esta pequena
defesa e justificativa da escrita e da leitura de textos e de livros infantis,
que são (os textos e livros infantis) uma forma (riquíssima) de demonstração,
compreensão e formação do mundo e do indivíduo ainda criança/adolescente.
Hoje, lê-se cada vez mais, por isso, deve
haver boas referências no campo da literatura, não apenas vindas de autores
clássicos e consagrados, mas de novos escritores também. Afinal, os tempos
mudaram, logo, alguns conceitos e valores idem. Assim, as temáticas, as figuras
e as abordagens sobre o mundo e a literatura infantil devem mudar. É isso o que
As primeiras palavras de uma criança (2017) tenta propor.
As
primeiras palavras de uma criança traz algumas memórias e
vontades de um menino chamado Magno Júnior. De certa forma, pode-se dizer que é
um texto metalinguístico, pois o narrador/personagem está escrevendo um livro —
inclusive, ele mesmo (o Magno) diz que fará as imagens, mas que, no caso,
quando lêssemos a história, elas já estariam feitas. A metalinguagem também
aparece quando, em algumas figuras, há trechos que já foram escritos nas
páginas anteriores (autorreferências).
Pois bem, o livro é construído sob a voz de
uma criança — o que já é importante — contadora de histórias, que possui a
liberdade de escrevê-las e o incentivo de seu pai à leitura desde cedo. Porém,
o incentivo é a favor da leitura de enciclopédias, algo que não faz (nem deve
fazer) parte da realidade de uma criança. Muitas vezes, a decepção com a
leitura de um texto inadequado à mentalidade da pessoa pode fazê-la se afastar
dos livros.
Foi o que quase houve com Magno Júnior, que
afirma que aquele conteúdo (conhecimentos sobre Hitler e sobre as proteínas)
não é/era importante, não devia ser iniciado em casa, durante essa idade, porém
mais tarde, na escola (que é o que acontece). Essa afirmação demonstra a quebra
da obediência absoluta, que é/era um dos valores tradicionais que “(...)
transformou a ‘autoridade’ em ‘autoritarismo’” (COELHO, 2000, p. 20), como se
houvesse alguém detentor do poder e do saber.
Pelo contrário, Magno Júnior traz algo da
Literatura Infantil mais atual, que é o questionamento da autoridade e a consciência
da relatividade dos valores e dos ideais (COELHO,
2000). Um dos momentos em que podemos notar tais conceitos é quando o personagem diz não
acreditar que alguém seja autodidata, pois quem escreve o livro, de certa
forma, está ensinando quem o lê. Embora boba,
é uma opinião e uma reflexão.
Além deste, há as questões feitas à
professora de Ciências e aos professores da catequese. Claro, o direcionamento
das indagações foi errado, pois ele pergunta sobre religião para a professora
de ciências e sobre ciência para os catequistas. Porém, esse ato demonstra a
inquietação e a ingenuidade do personagem (que não compreende a Física, muito
menos a Metafísica — afinal, ele só possui 11 anos).
Em outro trecho, Magno Júnior diz que acha
que os professores não sabem tanto das coisas e que seus pais estão errados
sobre os professores saberem sobre tudo. Percebamos esse “acha”, pois não é uma
certeza, mas uma dúvida do personagem, um questionamento sobre o seu próprio
pensamento.
É importante ressaltar a preocupação da
criança com as representações (figuras, desenhos) daquilo que estava sendo
dito. Ela mesma diz que fará as figuras depois, pois parece que assimilamos
melhor o conteúdo quando há imagens representando-o. Este pensamento é
exatamente — embora com outras palavras — o mesmo de Gregorin (2010): “O texto
não verbal (visual) se desenvolve com cenografias e figuras de modo a um compor
o outro, e os dois (visual e verbal) constroem um único texto, apropriado ao
fazer interpretativo do enunciatário (p. 16).
No curto livro, percebe-se, também, a
consciência de igualdade entre o gênero feminino e o masculino, “não mais
estigmatizados pelo o que é certo ou errado para o homem e para a mulher”
(COELHO, 2000, p. 25). Isso acontece quando Magno Júnior diz respeitar muito as
meninas, pois possui algumas amigas que são mais amigas do que os meninos. No
mesmo parágrafo, o personagem fala de rumores de que escrever é coisa de
menina, um preconceito antigo, mas que, segundo ele, estão errados e todos
deveriam escrever.
Aliás, levanto uma simples e rápida questão
aqui: Se ao longo do tempo poucas mulheres tiveram o privilégio da escrita,
sendo a maioria dos livros escritos por homens — até hoje! —, então, por que
existiu a imagem de que “escrever é coisa de mulher”? Atualmente ainda há
resquícios desse pensamento. Pensemos.
Além desses tópicos abordados, o livro
incentiva as crianças a lerem e a escreverem. Magno Júnior, por exemplo,
escreveu o texto por simples vontade. Outras crianças também podem fazê-lo,
basta incentivá-las. A escrita, segundo Nelly Novaes Coelho (2000), é um
“ato-fruto da leitura assimilada e/ou da criatividade estimulada pelos dados de
uma determinada cultura.” (p. 18).
Por fim, As
palavras de uma criança possui intertextualidades (em forma de citação) com
alguns desenhos japoneses, como os personagens Gohan, Griffith, Roy (Mustang) e
Hyoga, respectivamente dos animes Dragon
Ball Z, Berserk, Fullmetal Alchemist e Cavaleiros do Zodíaco, que fazem parte
da realidade e do gosto do personagem principal. Também há a menção dos
quadrinhos do Senninha, no início do
livro.
Em suma, baseado nestes poucos conceitos
adotados dos livros da Nelly Novaes Coelho e do José Nicolau Gregorin Filho, As palavras de uma criança foi escrito.
Penso que o livro serve não apenas para a função pedagógica, mas pelo prazer
estético também. Na verdade, primeiro escrevi o texto, depois notei os
conceitos. Aliás, foi um prazer tê-lo feito.
REFERÊNCIAS
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria,
análise, didática. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2000.
GREGORIN, José Nicolau Filho. Literatura infantil: múltiplas linguagens
na formação de leitores. São Paulo: Melhoramentos, 2010.
SIQUEIRA, Carlos. As primeiras palavras de uma criança. São Paulo: Novas Vozes, 2017.