domingo, 4 de outubro de 2015

Resenha do livro "Eles não usam black-tie", de Gianfrancesco Guarnieri

GUARNIERI, Gianfrancesco. Eles não usam black-tie. 24.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

Eles não usam black-tie é uma peça de teatro de Gianfrancesco Guarnieri, escrita em 1955, que narra a história de uma família e de alguns amigos (uma comunidade) de uma favela do Rio de Janeiro. A obra se concentra em dois acontecimentos: o casamento de Tião com Maria e a greve dos metalúrgicos que, dentre os líderes, está o pai de Tião, Otávio.

A obra inova e marca por vários motivos: diferente dos padrões teatrais da época, os personagens não são ricos ou nobres, mas pessoas pobres, negros, moradores do morro; não se trata de uma comédia (embora haja momentos cômicos), como a maioria das peças de hoje em dia, mas de reflexões, críticas sociais e políticas.

Dividida em três atos, Eles não usam Black-tie foca na relação do pai Otávio e seu filho, Tião. Este foi criado na cidade por seus padrinhos, mas depois de adulto voltou à favela e agora namora uma moça, Maria, que está grávida, embora ninguém saiba. Otávio é um homem um tanto “romântico”: idealista, sonhador, leitor de autores críticos, possui uma mente revolucionária, acredita na bondade do ser humano, de seus conterrâneos, e que para melhorar de vida, apenas lutando — uma visão totalmente contrária a de seu filho, que será abordada mais à frente.

O autor distribui muito bem as personalidades de seus personagens, além dos já descritos, há também Maria, namorada/noiva de Tião, uma moça alegre e que possui um sentimento muito forte de união para com o seu povo, sua comunidade, sua favela. Chiquinho é o irmão mais novo de Tião, brincalhão, embora honesto, é medroso e, por isso, omisso; namora a Teresinha, moça alegre, divertida e sonhadora. 

Mãe dos irmãos e mulher de Otávio, Romana é uma mulher de personalidade forte e uma visão realista da vida, uma verdadeira mãe, preocupada com todos de sua família, cumpre seus afazeres, reclamando ou não; aceita a vida como ela é, mas, infelizmente, não a aproveita. Há também os amigos da família que, exceto João (irmão de Maria) e Bráulio, embora todos dialoguem e sejam verdadeiros amigos, não recebem tanta atenção na obra.

É interessante notar a forma como Guarniere parte de uma visão romântica, com todos os personagens da favela sendo bons, honestos, trabalhadores, amigáveis, patriotas e solidários (características do Romantismo) e insere o determinismo (característica do Realismo e Naturalismo) — de forma romântica — na peça e cria, então, a crítica à sociedade e ao capitalismo. 

De todos os personagens, o único diferente, que pensa mais em si, que teme a vida, que teme o patrão, que teme perder o emprego, que teme a pobreza, é Tião: o único criado fora da favela, criado na cidade e, por isso mesmo, não gosta do morro, só está lá pela noiva, Maria. Enquanto isso, o pai, leitor, é um grande líder dos metalúrgicos, um dos “cabeças” da greve — greve esta que Tião é contra, pois, para ele, lutar não adianta nada, aumenta-se o salário (e pouco), mas em seguida aumenta-se o preço dos produtos, fazendo tudo continuar na mesma situação; sem contar que muitos recebem mais por fazer menos.

Neste ponto mostra-se muitas críticas e reflexões. Além do conflito pai-filho, temos também a divergência de opiniões: individualismo (Tião) x coletivo (Otávio). Da mesma forma, aponta-se o quanto a leitura move o ser. Na figura do pai leitor surge o líder revolucionário, que acaba influenciando seu outro filho, Chiquinho, que sempre viveu entre eles (novamente percebe-se o determinismo). 

Neste momento é possível perceber a voz do autor em Tião, desmistificando a ideia do aumento salarial, já que logo em seguida os preços sempre sobem, fazendo com que todo ano aconteçam mais greves e os trabalhadores nunca fiquem, de fato, beneficiados. Dá-se fim, também, à ideia de meritocracia, pois na maioria das vezes, quem luta mais é menos recompensado, e quem menos luta (e rouba os honestos) "sobe" na vida — injustamente, mas sobe

Não que seja propriamente um “defeito” da obra, mas se deve perceber a intenção do autor em colocar os moradores da cidade como falsos (os tios de Tião criaram-no apenas para se aproveitarem dele, fazendo-o cuidar da casa sem dar-lhe estudos) e Tião, por ter sido criado lá, torna-se falso também, preferindo agir pensando em si próprio, não acreditando nos amigos, não se percebendo como parte da favela, não acatando a greve que, se aceita, melhorará a vida de todos. A comunidade, logo após descobrir a traição de Tião, exclui-no e também deixa de o considerar como um deles. 

As mulheres são todas colocadas como pessoas boas e sinceras. Em um primeiro momento, são vistas como submissas (principalmente Teresinha), mas que aos poucos se mostram como personagens fortes e autônomas. Romana, além de cuidar da casa e dos membros da família, age além de seu círculo, ajudando as vizinhas ou o Otávio com suas confusões. 

É importante ressaltar a forma como as culturas são, ao longo do tempo, “invertidas”. Por exemplo, em certo momento da obra, Chiquinho conversa com Teresinha sobre religião; os dois foram criados na favela, mas Teresinha segue/acredita/gosta da igreja católica, por causa dos panos brancos, dos adornos dourados e das estátuas de Jesus; enquanto Chiquinho prefere o terreiro, por ter dança, fantasia, alegria e muitos santos. Percebe-se aqui a falta de religiosidade de Teresinha, que se interessa por questões materiais e estéticas, diferente de seu namorado, Chiquinho. Percebe-se, também, a visão de Gianfrancesco em considerar ambas as religiões como válidas desde que haja respeito e seus praticantes sintam-se bem.

Continuando no âmbito da cultura “invertida”, é triste a cena em que a música de um dos moradores da favela, Juvêncio, toca na rádio, mas com outra pessoa como autor. Juntando isso à discussão da religião, pontua-se como a cultura do pobre, do negro, é roubada ou marginalizada pela cidade e, então, inverte-se a cultura (como Paulo Freire alertou): o oprimido quer seguir a linha do opressor; ou ainda, o oprimido crê que as coisas não mudam, não adianta lutar, pois, ao final, "tudo sempre foi e será assim".

Em suma, Eles não usam black-tie é uma ótima peça, que aborda questões políticas, sociais e culturais. Com uma linguagem muito simples, escrita de uma maneira corrida, coloquial, cativa o leitor enquanto o faz refletir sobre a amizade, confiança, família e amor — além dos temas já citados. É recomendado para todos amantes da literatura, do teatro e para aqueles que se propõem a investigar a sociedade além das esferas já conhecidas, mas a área dos pobres, dos proletariados, dos que não usam ternos e gravatas: dos que não usam black-tie.

Gianfrancesco Guarnieri foi um importante dramaturgo, ator e diretor italiano, naturalizado brasileiro. Embora tenha escrito muitas peças, a que recebeu maior destaque (até por ter sido sua estreia) foi Eles não usam black-tie.

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior, graduado em Letras, na Faculdade de Santo André, Santo André – SP.

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