Em 2015, a banda Stratovarius lançou seu novo
álbum, Eternal. A música que o abre é a “My Eternal Dream”, que também recebeu
um videoclipe muito bem trabalhado; para alguns, o melhor videoclipe da
carreira.
Com este texto, não pretendo esvaziar as imagens do
videoclipe e de toda a música e letra, mas procurar conciliar os sentidos entre
elas. Primeiramente, vamos à tradução:
Meu sonho eterno
Ainda me lembro de quando eu era uma criança
Tão curioso, aventureiro e selvagem
Olhava para o mundo com os olhos abertos!
Eu não sabia diferenciar as verdades das mentiras.
Ensinaram-me como viver, como comportar-me
Me disseram como andar, como falar, como conhecer meu
lugar
Todos aqueles anos eu procurei o meu caminho
O mundo era meu palco...
Então eu transformarei cada sonho
Em realidade.
E através das trevas, eles serão
A luz a guiar-me!
Estou por conta própria, andando sozinho por esta estrada
Continuarei, serei forte, tudo o que eu preciso é do meu
sonho eterno.
Agora eu posso ver tudo tão claro
Não há limites nem fronteiras
Eu não mudaria a estrada em que estou
Meus sonhos viverão muito após eu partir!
Aprendi que eu tenho que fazer o que for preciso
Eu cometo erros, eu devo cair para levantar-me novamente!
Quebrar as regras, todas as correntes que me seguram
Eu posso me afundar, mas não irei me afogar!
Então eu transformarei cada sonho
Em realidade.
E através das trevas, eles serão
A luz a guiar-me!
Mostrarei que não posso ser domado/domesticado
Quando eu me for, lembrem do meu nome!
Vou gentilmente à noite...
Estou por conta própria, andando sozinho por esta estrada
Continuarei, serei forte, tudo o que eu preciso é do meu
sonho eterno.
Transformar cada sonho
Em realidade
E através das trevas eles serão
A luz a guiar-me.
Mostrarei que não posso ser domado/domesticado
Quando eu me for, lembrem do meu nome
E não desistirei da luta
Vou gentilmente à noite
Estou por conta própria, andando sozinho por esta estrada...
Continuarei, serei forte sozinho...
Tudo o que eu preciso é do meu sonho eterno!
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A letra é bem direta, sem muita subjetividade, por isso
mesmo, os comentários feitos aqui serão mais voltados ao videoclipe. Como se
vê, a música é uma “confissão” de um eu-lírico, na qual ele conta sobre seu
passado, presente e o que pretende para o futuro. Sobre o clipe, ele está repleto
de antíteses, que serão comentadas conforme forem surgindo.
O vídeo começa com uma sombra vindo em um reflexo num
pedaço de vidro, o que já mostra que a música será ou terá uma projeção (um
desejo) de alguém, que não sabemos ainda quem, por isso mesmo, a sombra.
O clipe inteiro é em preto e branco, exceto quando
aparece a banda tocando. Isso se explica com o primeiro verso: “Ainda me lembro
de quando eu era uma criança”, ou seja, o eu-lírico está falando sobre seu
passado, logo, essa parte do vídeo possui somente duas cores; já a banda, por estar
fora deste tempo, aparece em coloração normal.
É preciso diferenciar a banda, que é a autora, do
eu-lírico. O eu-lírico é aquele que sente, que conta, que narra; a banda é
quem o criou — “criou”, pois não é uma representação dos
membros. Por exemplo, não é porque alguém criou uma história em que o
personagem principal é triste, que o autor é ou está necessariamente triste. Às
vezes acontece, realmente, de ser uma projeção, mas é raro e não é digno de
muita atenção, pois o que importa é a obra, não o que o autor está(va)
sentindo ou querendo dizer, mas, sim, o que foi ou o que está sendo dito.
Pois bem, sabendo que estamos no passado do eu-lírico,
vê-se uma criança em um local vazio e destruído, o que pode significar não
somente o lugar, mas o interior dela. É uma antítese de imagens: uma criança,
que é um ser social e em construção, em um local solitário e em decomposição.
Quanto à sonoridade, a música é bem rápida, típica do
gênero que a banda faz parte, o Power Metal. É uma tradição neste estilo iniciar
os álbuns com uma música agitada, assim como terminar o álbum com uma balada (o
que não é o caso de Eternal).
Percebemos que a criança não aparenta estar feliz nem que
anda livremente, mas escondendo-se. Não sabemos, mas aparência dela é de alguém
do Oriente Médio e o local apresentado é parecido com o de guerra. Como o
cenário já dava indícios, surge um velho ferido/doente e a criança o ajuda. Só
então, a banda começa a cantar.
Notemos o tanto de antíteses que já surgiu em menos de um
minuto: o clipe em preto e branco; um ser social em um lugar antissocial; e o
encontro da criança, alguém cheio de vida, com um velho, alguém que lhe resta
pouca.
Como havia sido dito, é mostrada a infância do eu-lírico;
diz-se que quando criança era
aventureiro, selvagem —“era”, hoje em dia ou tempos depois, pode ser que não mais — e que
olhava o mundo com os olhos abertos (característica da curiosidade) e que não
sabia diferenciar o certo do errado (verdades das mentiras).
Este trecho é muito interessante, porque aparece uma
criança menor do que a primeira, brincando com soldadinhos de brinquedo,
enquanto passa imagens de soldados de guerra. Ou seja, a criança achava que
brincadeira e realidade eram a mesma coisa, por ser ainda pura (característica da
criança — pelo menos da criança idealizada). Pode-se pensar também que ela
acreditava no que diziam (ou no que ela imaginava), em ideologias, que todo
soldado é bondoso e justo, e isso faz com que ela deseje ser como eles. Principalmente
por viver em um local de guerras, onde se precisa ser forte. Depois retornarei
a comentar sobre isso.
Em seguida, o eu-lírico diz que o ensinaram como agir,
como se comportar, andar, falar e se reconhecer, que por anos ele procurou qual
era o seu caminho e que o mundo era o
seu palco. Mais do que ensinamentos, são as ordens, a “domesticação” do ser.
Quantas vezes gostaríamos de fazer algo, mas nos foi ensinado que aquilo é
errado ou de que não deve ser feito? O mundo era o palco (notemos o “era”
novamente), pois, sendo palco, tudo o que ele fazia era cumprindo o seu papel, era
o que tinha sido programado/ordenado para ele fazer, era fingimento, atuação, mas agora ou
depois de certo tempo, começou a agir como queria.
Essa visão é vista na letra, mas no clipe o que é visto
são boas ações das crianças. Se elas ajudam quem precisa, é porque alguém as
ensinou. É o oposto do que se pensa quando não assistimos o videoclipe. Vê-se
que o vídeo não fala somente de uma pessoa, mas de uma família que se forma:
duas crianças, o velho e um soldado. Como havia sido dito, o cenário é de
guerra, além dos soldados que já foram mostrados, a criança menor corre por
entre os campos (enquanto a o eu-lírico diz que por anos correu procurando pelo
próprio caminho), enquanto bombas explodem ao seu redor, até que ela chega em
um local seguro, que é onde a outra criança, esta maior e mais velha, está.
Tudo isso é mostrado no início do refrão: “Então eu
transformarei cada sonho/ Em realidade./ E através das trevas, eles serão/ A
luz a guiar-me!/ Estou por conta própria, andando sozinho por esta estrada/ Continuarei,
serei forte, tudo o que eu preciso é do meu sonho eterno”. Vemos que a criança
mais velha acolhe a mais nova, assim como acolheu o velhinho, mas é
interessante perceber que, antes disso, o menino maior, antes de ver o mais
novo, já estava com uma faca na mão, todavia a guarda quando percebe ser alguém
inocente. Por vivermos sob situações ruins, perdemos a inocência conforme a
experiência, e tornamo-nos “desconfiados”, às vezes, até mesmo pessimistas.
Sobre a letra, agora não se fala mais do passado, mas
sobre o futuro. Diz-se que transformará os sonhos em realidade que, por sua vez, é ruim, pois a chama de “trevas”, enquanto os sonhos serão a luz (outra
antítese: trevas-luz). Antes, o eu-lírico havia dito que o mundo era o palco
(local de performances), mas agora diz que está agindo sozinho por conta
própria, ou seja, livrou-se daquele roteiro que havia sido preparado para ele. Termina-se
o refrão com a imagem da criança mais nova sendo alimentada pela mais velha.
Após esta cena, a criança mais velha encontra-se com um
soldado ferido (o mesmo do início), enquanto é cantado
que agora o eu-lírico percebe tudo claramente, que não existe limite nem
fronteiras; assim, a criança ajuda-o também. É interessante essa parte, pois mostra
a besteira que é as pessoas lutarem entre si, cada uma defendendo um pedaço de
terra porque alguém mandou e elas acreditaram, como se realmente existissem
donos. As fronteiras são linhas imaginárias. Não há necessidade de ódio por
quem está do outro lado, por quem defende, embasada e culturalmente, outras
ideias. Pelo o quê e por que lutamos?
São questionamentos e respostas que não pertencem somente ao eu-lírico, mas a todos. Esse ideal de questionar, de ser livre, de ser quem quiser ser, não é um sonho somente dele, por isso mesmo é dito em seguida que os sonhos viverão além. Morremos, mas alguns ideais, não.
Enquanto canta-se dizendo que o eu-lírico aprendeu que
tinha que fazer o que fosse necessário pelo que deseja, é mostrada a criança
mais velha fazendo o possível para manter vivo aquele soldado ferido. É uma
estrofe de consciência e de antíteses, pois para fazer o que desejamos e
usufruirmos da nossa liberdade, é preciso quebrar regras e livrar-se de tudo o
que nos prende, tal como foi descrito. Interessante é que quando é falado “(...) Eu
posso me afundar, mas não irei me afogar”, a criança dá um pouco de água para o
soldado que está deitado, e ele quase cospe; é visto o sofrimento dele para não
morrer, quase como um afogamento.
Retorna novamente o refrão de esperança, mas acrescentado
de alguns versos. O eu-lírico diz que não pode ser domesticado/domado, em
contraste ao início da música: “(...) Ensinaram-me como viver,
como comportar-me / Me disseram como andar, como falar, como conhecer meu lugar”,
que assim como o sonho que ficará para os próximos, o seu nome também, isto é, como lembrança do idealizador.
No videoclipe, surge uma moça que aparenta ser uma freira,
que mostra conhecer o menino mais novo, trazendo comida e bebida para os
refugiados (além da criança mais nova, há o soldado e o velho). Neste momento
do vídeo, a criança, diante do soldado deitado, segura uma faca, enquanto o
soldado a tira das mãos e lhe dá um lápis.
Lembremo-nos de
que essa mesma criança já brincava com os soldadinhos de brinquedo e que havia
sido comentado que isso poderia aparentar o desejo dela de seguir aquele
caminho, o da violência, o da guerra, e aqui o verdadeiro soldado mostra-lhe um
lápis, significando que a guerra não é o melhor caminho, que a luta não é só
feita entre armas, mas entre ideias e palavras; que crianças deveriam estudar,
ao invés de (pensar em) lutar; que a educação pode mudar a situação. É um rompimento com o paradigma, com o
determinismo local. E então se dá início ao solo.
Enquanto acontece o solo da banda, a mulher tira e põe
novamente o véu na cabeça, significando a mudança de estado/andamento dos
acontecimentos, assim, a criança, que pensava nos soldados e na faca, começa a
desenhar um pássaro na parede. Após o desenho estar feito, a moça chega ao lado
e segura um raminho na frente do bico da ave desenhada, juntando, assim,
metaforicamente, desejo/sonho e realidade.
Quando o teclado da música para e deixa somente o som da
guitarra, muda-se totalmente o sentido do clipe; o que estava sendo visto como
uma “melhora”, de repente, piora. O ferimento do soldado agrava-se novamente e ele acaba
morrendo. Em um momento de tristeza, ainda surge um inimigo procurando por
alguém. Interessante é que a aparência deste outro soldado é diferente; a roupa
não é do exército, é um terno, e a aparência do rosto lembra os europeus. Pode
ser visto como uma crítica consciente da banda de que os opressores nem sempre
são os que aparentam ser (há quem acredite que somente os países do Oriente
Médio é que são os errados nas guerras; europeus e americanos são sempre os “bons
moços”).
No entanto, ele não acha ninguém. Retorna o refrão. É
preciso ressaltar que quando se diz “Vou gentilmente à noite”, pode-se pensar no “fim”, pois quanto mais lutamos por algo, mais avançamos ao fim da
vida. No entanto, irmos sabendo disso e por vontade própria, não é problema,
por isso o “gentilmente”. Ruim é quando vamos sem querer e sem saber...
Os quatro personagens do clipe caminham, mas o velhinho
possui dificuldades em continuar e senta-se. Nisto, o menino mais novo corre e
entra num cômodo destruído (como todo o resto do cenário), e traz um pássaro
nas mãos. Com isso, o velhinho levanta-se e todos se reúnem ao redor do menino
e da ave.
Lembremos que o menino havia desenhado na parede um
passarinho e agora ele encontra-o. O pássaro pode significar a liberdade e o
sonho, pois não é preso a nada, voa por onde quiser, assim como o eu-lírico da
letra deseja o tempo todo. O que antes era somente um desenho, após o último
soldado ir embora (e ele representando o perigo), agora está nas mãos de todos. É a concretização do sonho de liberdade. Todos ao redor de algo, todos ao
redor de um sonho. E para terminar, como já havia sido mostrado algumas vezes, a câmera mostra a banda com uma visão de
cima, assim como a visão dos pássaros.
O clipe é dramático, mas a letra é bem positiva.
Atualmente, ser otimista, defender ideias que defendam o outro ou um “futuro
melhor” é motivo para ironias e deboche (sabendo disso, que é um caminho difícil e para poucos,
o eu-lírico diz que continuará e será forte sozinho, pois para continuar é
preciso apenas de um sonho eterno), ou considera-se utopia, mas lembremos que
somente o sonho, o desejo, a meta, a utopia, é que nos faz seguir em frente. Antes
de fazermos o que existe, imaginamos algo que não existe.
PS: Por fim, gostaria de dizer que alguns até podem dizer que estou vendo sentidos e significados demais onde não há, mas creio ser melhor assistir a um videoclipe, achar sentidos além do explícito e conseguir explicá-los, do que assistir e não ver nada além do óbvio. Imaginação faz parte da arte, mas faz falta à maioria das pessoas (imaginação e arte).