segunda-feira, 17 de abril de 2017

Cowboy Bebop , um universo rico em qualidade

Já faz mais de anos que ouvi falar no anime Cowboy Bebop. Li esse nome pela primeira vez numa revista, em 2005, na extinta Ultra Jovem. Nessa época, a qualidade da revista era bem menor, vinha uma página de imagem e apenas um parágrafo sobre a obra. Mesmo assim, o parágrafo sempre me interessou. Porém, só agora, em 2017, é que criei coragem para ver esse excelente animê. Não me arrependi. Quero dizer, se há arrependimento, foi de ter demorado tanto para vê-lo.

Escrito por Keiko Nobumoto (conhecida por ter escrito o excelente Wolf’s Rain) e dirigido por Shinichiro Watanabe (também famoso por ter dirigido o ótimo Samurai Champloo), Cowboy Bebop é um anime de ação, ficção científica, drama e aventura. Sim, tudo isso. O estúdio responsável pela produção é o Sunrise, um grande nome, que também produziu o aclamado InuYasha (Rumiko Takahashi) e alguns animês menores (em fama, não em qualidade).


Pois bem, a história se passa no ano de 2071, uma época onde a tecnologia avançou bastante e é possível viajarmos para outros planetas facilmente. A Terra está desolada, por causa de um acidente num portal entre o nosso planeta e a Lua. Mesmo assim, ainda há algumas pessoas que vivem aqui, entre os meteoros que caem diariamente. Com isso, há muitas colônias e enormes cidades nos astros vizinhos, para os quais migramos.

Contudo, por o espaço ser vasto, a libertinagem aumentou demasiadamente, fazendo os crimes também aumentarem e os policiais não darem conta dos criminosos. Assim, são pagos prêmios como recompensa para os caçadores que conseguirem prender tais infratores. Bem ao estilo faroeste. Os personagens principais de Cowboy Bebop são uma turma desses especialistas em prender bandidos.

Os protagonistas são cinco: Spike Spiegel, um jovem habilidoso com naves e armas, que possui um passado obscuro e ainda aberto para se resolver; Jet Black, um ex-policial, o segundo mais velho do grupo — também não há muitas informações sobre o seu passado; Faye Valentine, embora tenha a aparência de uma jovem linda, é a mais velha do grupo, pois perdeu a memória num acidente há 50 anos, mas o seu corpo foi congelado e anos depois, revivido; Ed, uma criança nerd, capaz de hackear quase todo sistema de computador; e, por fim, Ein, um cachorro muito inteligente. Todos são tripulantes da nave Bebop. Porém, não se conhecem logo no primeiro episódio (exceto Spike e Jet), somente aos poucos, com o desenrolar da trama.


Como deu para perceber, os nomes não são orientais, mas, sim, ocidentais. Não só isso, o visual dos personagens e dos cenários também é americanizado. O animê possui apenas 26 episódios e um filme (produzido pelo estúdio Bones e distribuído pela Sony), no entanto, o conteúdo e as referências utilizadas são enormes.

A primeira delas é o nome dos episódios, quase todos relacionados à música e a bandas. Na ordem: 1 – Asteroid Blues (Blues é um gênero musical), 2 – Stray Dog Strut (um trocadilho com o título da música Stray Cat Strut, da banda Stray Cats), 3 – Honky Tonk Woman (nome de uma música dos Rolling Stones), 6 – Sympathy for the devil (idem), 7 – Heavy Metal Queen (Heavy Metal é um gênero musical), 10 – Ganymede Elegy (Elegia é um gênero musical), 11 – Toys in the Attic (nome de um álbum e de uma música do Aerosmith), 12 e 13 – Jupiter Jazz (Jazz é um gênero musical), 14 - Bohemian Rhapsody (título de uma música do Queen), 16 - Black Dog Serenade (Black Dog é uma música do Led Zeppelin), 17 – Mushroom Samba (Samba é um gênero musical), 19 – Wilde Horses (nome de uma música dos Rolling Stones), 21 – Boogie Woogie Feng Shui (Boogie Woogie é um gênero musical), 22 – Cowboy Funk (Funk é um gênero musical — e não é o brasileiro, não, hein?!), 23 – Brain Scratch (talvez seja referência à música Brain Damage, do Pink Floyd), 24 - Hard Luck Woman (título de uma música do KISS) e 25 e 26 – The Real Folk Blues (Folk é um gênero musical e Blues também). Além disso, o nome do filme é Knockin’ on Heaven’s Door, que também é o nome da famosa música do Bob Dylan.

Os nomes dos outros episódios também devem fazer referências a outros gêneros, artistas e músicas que não conheço. Afinal, não sou especialista em análises e nem conhecedor de tudo o que é arte.

Obviamente, toda obra-prima liga entre si o conteúdo e a forma, por isso, não basta ter nomes de músicas relacionadas ao Rock, ao Blues e ao Jazz, mas é preciso conter esses elementos dentro da obra. É o que acontece com Cowboy Bebop, um anime com uma das melhores soundtracks que eu já assisti e ouvi. É claro que essa sonoridade é para nos remeter aos filmes de cowboys do velho oeste, embora o contexto da história se passe no futuro e no sistema solar (a forma é diferente, mas a ação é a mesma: perseguição de foras-da-lei).

O anime também faz referências — implícitas e explícitas — a alguns filmes antigos, a outras músicas (além daquelas que nomeiam os episódios), a livros, a contos e a escritores. Há um momento, por exemplo, em que todos os personagens comem cogumelos e têm alucinações. Spike sobe uma escada infinita quando, de repente, aparece um sapo que diz que aquilo é uma escada para o céu. “Escada para o céu” é “Stairway to heaven” em inglês, título de uma música do Led Zeppelin. Na mesma sessão (que é como os capítulos são chamados em Cowboy Bebop), há um muro escrito “Mobi Dik”, que faz referência ao livro Moby Dick, do escritor Herman Melville. Obviamente, aliado ao conteúdo do livro de Mellville, o cenário se passa num local onde há peixes (como podemos notar escrito no muro ao lado esquerdo e acima do “Mobi Dik”: Pescaderia).

("Pescaderia Mobi Dik")

Em outro episódio, Spike está lendo um livro chamado Walking on the moon (que também é uma música da banda The Police). Já em outra passagem, Jet Black cita o escritor alemão Goethe. E essas são apenas algumas das intertextualidades que notei. Com certeza, há muito mais.


Coincidência ou não, há um personagem no segundo episódio de Cowboy Bebop que nos lembra muito o Leorio, do animê Hunter X Hunter (de Yoshihiro Togashi), embora este último tenha sido exibido um ano mais tarde, em 1999. O que muda é que Leorio é um dos protagonistas de HxH, enquanto o personagem de Cowboy Bebop é apenas mais um. Porém, é interessante a semelhança entre ambos: os dois carregam maletas, usam óculos, são atrapalhados e aparecem pela primeira vez (no caso do personagem de Cowboy Bebop, pela única vez) em episódios que há animais.



(O de laranja é personagem de Cowboy Bebop, o de azul, o Leorio)


Também é curioso notarmos o uso de locais reais do nosso sistema solar, embora desconhecidos por muita gente. Ganímedes e Europa, por exemplo, que são realmente satélites naturais de Júpiter, no anime são cidades.

Deixando de lado essas influências, o que eu mais gostei na obra, além das batalhas, do visual e da comicidade, foi a coerência simbólica dentro dos próprios episódios. Na sessão 5, Ballad of fallen angels, temos um pouco da explicação do primeiro capítulo e da vida passada de Spike Spiegel. Conhecemos o seu antigo amigo (e agora inimigo) Vicious. Os próprios nomes são simbólicos. Vejamos.

Na primeira vez que Spike aparece, relembra momentos entre tiros e flores. As flores remetem-nos à morte. O que é que Spike sempre diz? Que já morreu uma vez. Ele sempre se lembra da sua amada Julia, que depois conhecemos e percebemos que ela mesma é comparada a uma flor, de tão linda e aparentemente delicada. Spike, como seu nome diz, é o cravo.

O passado e o presente de Julia, Spike e Vicious estão ligados. Vicious, como o próprio nome sugere, é o mal da história, o que se rebelou contra o próprio sistema (a que chamam de Sindicato) e traiu todas as pessoas próximas. De cabelo cinza (o que pode nos remeter à frieza de sua personalidade) e sempre acompanhado por corvos (que também podem significar a morte), Vicious utiliza-se de uma espada como arma. Diferente de Spike, que só usa armas de fogo.

É interessante notarmos que nesses episódios 5 e 6 há muitas cartas de Ás de Espada. Primeiramente, o jogo de cartas é considerado por muitos como um vício (assim, alia-se ao personagem Vicious). Em segundo lugar, diz-se que a carta possui muitos significados, que foram mudando ao longo do tempo, porém, ainda assim, o Ás de Espada está relacionado aos conflitos, à morte e às perdas. Então, lembremos: Spike já foi considerado morto, Vicious usa uma espada (e está sempre com um corvo por perto), um deseja matar o outro e a carta pode significar o corte da relação entre ambos.

Não só isso: o episódio chama-se Ballad of fallen angels, isto é, a balada dos anjos caídos. Os dois personagens não são mais o que costumavam ser, ambos lutam dentro de uma igreja, que, por sua vez, traz-nos a história bíblica da criação e da traição (vício) de Lúcifer, o anjo caído. No entanto, ironicamente, quem cai do vitral é o Spike... No final, causada por Faye Valentine, temos uma queda de plumas brancas sobre Spike, o que nos lembra penas de anjos... E que também nos lembra a queda das pétalas de rosas jogadas por Júlia, no passado. Além da chuva, que houve no pretérito, que há agora e que pode significar mudança, purificação ou um ciclo.

Nesse mesmo episódio, por Spike ter ido resolver seus assuntos pessoais sozinho, Jet fica com raiva; e quando Faye pede ajuda para salvar Spiegel, Jet, que estava aparando os galhos de um bonsai (pequena árvore oriental), acaba cortando um galho e nega a ajuda. Depois, muda de ideia e vai atrás do amigo. Esse corte do galho, ocasionado sem querer, pode significar o quase rompimento da amizade entre os dois: negar ajuda é cortar um galho da árvore que dentro da nave todos são. Coerência extrema.

Outro capítulo simbólico é o 18, “Fale como uma criança”, o qual é iniciado com Jet narrando um conto oriental à criança Ed. O conto traz a história de um pescador que não envelheceu (ao mesmo tempo, Spike está pescando ao lado de Jet e Ed...). Em seguida, recebem uma fita cassete (não se sabe de quem) endereçada à Faye Valentine. Porém não existem mais fitas, muito menos os aparelhos para reproduzi-las. Agora tudo é gravado em CDs (os tripulantes da Bebop nem sonhavam com as nossas atuais nuvens)! Assim, partem para o único lugar tão atrasado que pode possuir um aparelho desses: a Terra!

Ao conseguirem-no, veem que é uma mensagem gravada há anos... Incrivelmente, pela Faye e suas amigas (hoje, todas idosas)! Uma mensagem destinada a elas mesmas, porém, anos depois. Contudo, como foi dito no início do texto, Faye perdeu a sua memória e não se lembra de nada... É muito triste ver que algumas pessoas perderam as suas memórias e, assim, a sua identidade. Uma Faye adulta sem conseguir reconhecer ou se lembrar da Faye adolescente, das amigas, de ninguém... Há disso na vida real também. Capítulo bem coeso.

Sobre o episódio 23, Scratch Cerebro, deixo apenas essas palavras: “Eles estão apenas praticando um ato de fé que eles decidiram crer. Por que você acha que as pessoas acreditam em Deus? É porque elas querem. Não é fácil viver neste mundo podre, não há nada certo enquanto se vive neste mundo (...) Deus não criou os humanos. Os humanos criaram Deus. (...) Você sabe qual é a melhor e a pior criação do ser humano? Televisão. A televisão controla as pessoas usando informação e rouba os seus sensos de realidade. Sim, agora a televisão é uma religião por si só. A TV criou pessoas que são facilmente enganadas por fantasias idiotas”.

Outra sessão muito bem entrelaçada é a 24, Hard Luck Woman. Nele, Faye recupera parte da memória e vai atrás de onde ela pensa que pertence. Por sua vez, Ed encontra o seu pai na Terra. O trabalho dele é fazer mapas. Interessante ligação: enquanto um faz mapas, a filha acha o pai e Faye procura o seu lugar no mundo. Ora, o mapa é um instrumento de localização. Ao mesmo tempo, o pai de Ed dá ovos a Jet e a Spike. Claro, os ovos são o princípio da vida, que nos remete à família recém encontrada e à mulher que procura o seu passado para entender o seu presente. Aliás, esse episódio anuncia o final do curto anime, que é o Spike resolvendo as suas pendências com Júlia e Vicious.

Não comentarei sobre o que acontece nesses dois episódios finais, somente sobre a criação de um cenário que achei muito interessante. Num dos momentos, Spike e Jet conversam e o segundo comenta sobre um conto em que um gato morre e revive um milhão de vezes, um gato que não tinha medo de morrer (podemos associar à própria imagem do protagonista), mas que um dia se libertou desse ciclo.

Agora, o curioso é que “a câmera” mostra os dois embaixo de um ventilador que gira (observemos o ciclo — tal como o da história narrada por Jet — aqui também) em sentido anti-horário: assim como Spike fala de seu passado (não do futuro). No final do conto, ele dá uma resposta inusitada a Jet, assim como a história caminha para um curso, mas, igualmente ao ventilador, Spike vai ao contrário do que nós e Jet estávamos pensando. Muito criativo.

(Câmera mostrando Jet e Spike embaixo de um ventilador que gira em sentido anti-horário)

Sobre o filme, Knockin’ on Heaven’s Doors, de 2001, há um homem (Vincent Volaju) que foi cobaia de testes de medicina e deseja se vingar de todos, passando a doença a qual ele é imune para toda a população. Doença essa que está ligada à nanotecnologia. Claro, a tripulação da Bebop encarregar-se-á do caso. 

Os traços do filme são superiores aos da animação (até porque o longa foi feito três anos depois e por um estúdio melhor, que é o Bones) e a trilha sonora continua impecável. Falta um pouco (só um pouco) de Jazz e Blues, mas que são compensados pelos corais (que combinam com as palavras ditas pelo antagonista: céu, inferno, purgatório, Halloween etc).

Também é interessante notarmos que uma das ruas que Spike passa ao lado chama-se La Fontaine. La Fontaine, sabemos, foi um grande e importante fabulista do século XVII. Além disso, há a citação de feijões por alguns vendedores que parecem árabes (porém, esses personagens, com certeza, são para serem relacionados a terroristas... — Vincent é considerado um terrorista — Olhemos a ideologia aqui...). Embora a história de João e o pé de feijão seja inglesa e tenha ficado famosa a partir do século XVIII e XIX, os orientais foram grandes fabulistas também. E o pé de feijão levava ao céu, lugar ao qual o antagonista deseja ir (e o próprio nome do filme nos remete a isso: Batendo na porta do céu — Knockin’ on Heaven’s Door). Filme muito bem feito. Também há a metáfora das borboletas, mas que deixarei para quem for atrás...

(La Fontaine e um comercial da Coca-Cola)

Em suma, é isso. Um animê obrigatório para todos os apreciadores de animações japonesas, um clássico repleto de referências a diversas artes e culturas (mas principalmente à americana); muito bem elaborado, tanto em imagem quanto em conteúdo, cheio de sublimes reflexões sobre a liberdade, a solidão, o sentimento de pertencimento, o existencialismo etc. Os personagens são carismáticos (exceto a Ed, que chega a ser irritante, às vezes... — porém, não devemos nos esquecer que ela é apenas uma criança, logo, normal) e não estereotipados. Além disso, é preciso ressaltar a presença de muitos personagens negros nas diversas posições, não só como foragidos, mas como médicos, advogados, apresentadores de TV, policiais etc., o que não é comum no universo dos animês. Tudo acompanhado sempre de muita ação, lutas e momentos cômicos. E, claro, uma das melhores trilhas sonoras de todos os animês, muito Blues e Jazz (e Heavy Metal em um dos episódios). 



(Abertura de Cowboy Bebop)

Obviamente, não comentei sobre todos os episódios e nem sobre todo o conteúdo dos capítulos que escolhi falar (sou apenas um apreciador de animês, não um crítico e especialista — muito menos um caçador de easter-eggs!). É uma obra que deve ser vista muito mais vezes para a entendermos melhor, então, assim que puderem, vejam-na. 

 See you in space, cowboy!

sábado, 15 de abril de 2017

Relato pessoal: muros e pontes

Há pessoas que são muros e há outras que são pontes — em diversos sentidos.

Em dezembro de 2006, no finzinho da sexta série, o meu melhor amigo foi embora para a Bahia, pois os pais dele são de lá e queriam morar na cidade natal (na verdade, a cidade natal do pai...). Continuamos a nos falar pela internet, embora, no começo, para isso, eu tivesse que ir para as lan houses (muitos jovens nem sabem o que é ou o que foi isso). Só alguns anos depois, em 2008, é que fui ter um computador e uma internet própria (do tipo discada!).

Com essa falta, aproximei-me de outras pessoas, tive novas, boas e ruins experiências. Foi durante essas más relações que notei que existem pessoas-muro, pessoas fechadas em si e que tentam fechar o outro também. Para elas, se somos amigos, até podemos ser amigos dos seus amigos, mas não podemos levar os nossos próprios para este novo círculo. Isso acontece frequentemente em relações amorosas (o que nunca foi o meu caso).

E sobre os muros, há os fortes e os fracos. Estes, feitos de vidro, qualquer coisa é capaz de quebrá-los. Não precisa ser uma pedrada, basta uma palavra ou um olhar. São ultrassensíveis. Devemos ter cuidado com essas pessoas, mas nem por isso devemos deixá-las sozinhas, dentro de suas muralhas. Aproveitando-nos da característica do vidro, a transparência, podemos aparecer em sua frente e acenarmos, para que possam nos ver e verem que há pessoas ao seu redor. A não ser que, por dentro, o dono tenha colocado cortinas escuras, para também não ver ninguém...

Por outro lado, há as pessoas-ponte, que foi o que imaginei quando o meu amigo voltou para São Paulo, neste mês de abril, para passar umas férias. Vieram ele e o irmão.

É que ele foi embora há 11 anos, mas a história dele comigo e com a turma não acabou ali, continuou sendo escrita, por outros meios, mas continuou, tijolo por tijolo. Ainda não está acabada, mas não está parada: está em construção.

Não foi a primeira vez que ele veio passar umas férias aqui, mas cada vez que vem, conhece mais pessoas do nosso círculo (cada vez mais expandido), além de, unicamente pela sua presença, reunirmos parte da turma que estudou junto na 5° e 6° série A, nos anos de 2005 e 2006, na escola Di Cavalcanti. Hoje, todos com suas vidas distanciadas, mas que se juntam para relembrar histórias, narrar a continuidade etc.

Acho isso fantástico: pessoas que são pontes entre outras pessoas, entre histórias, entre lacunas no e do tempo, entre algumas relações que, por causa das novas situações cotidianas, vão se perdendo... E, claro, por serem pontes, levam-nos à frente, permitem-nos caminhar e crescer enquanto elas também crescem.

Com essa vinda do meu amigo, fiquei mais próximo do seu irmão, que era bem pequeno quando foi embora (lembro até hoje...), retomei laços com outros amigos que há tempos não os via, relembrei histórias que não recordava (e isso porque eu já tenho uma ótima memória!), rememorei bons momentos que os colegas haviam esquecido, visitei lugares que nunca havia ido, conheci e ri com seus amigos (que não eram meus), passamos momentos com outros meus (que não eram da época dele) etc.

Enfim, penso ter havido um crescimento e fortalecimento mútuo. Às vezes, precisamos dessas visitas para que possamos caminhar um pouco mais e melhor.

Ao meu jeito, tento criar pontes entre as pessoas através das palavras (o escritor é um construtor de pontes, de experiências e de sentidos múltiplos). Ao menos como lembrança e agradecimento. 

Que esse texto seja mais um bloco na construção de nossa amizade.

Humildemente,
Um amigo e futuro escritor.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Um breve comentário sobre o soneto XCI, de Shakespeare

(Introdução copiada de outra publicação que já fiz aqui)

De maneira (muito) resumida: Shakespeare foi/é um dos maiores homens que o mundo já viu, nascido possivelmente em 1564 e falecido em 1616, desenvolveu suas obras (poemas e peças teatrais) no período do Classicismo.

O Classicismo encontra-se dentro de um período histórico chamado Renascimento, que foi uma época de grandes mudanças em todos os âmbitos (sociais, religiosos, filosóficos, econômicos, políticos etc.): iniciam-se as grandes navegações, começa-se a mudança de sistema (feudalismo para "capitalismo"), a igreja católica perde seu poderio, muda-se a visão de teocentrismo para o antropocentrismo  e, principalmente, surge a Imprensa de Gutenberg.

Com a imprensa, muitos livros são publicados; assim, as ideias e obras de filósofos passam a ser conhecidas por muitos. Surge uma nova mentalidade, o homem considera-se em um período iluminado e renascido. Cheio de descobertas, busca diferenciar-se de outrora, agora buscando elementos da cultura grega e romana para adotar em suas obras. Portanto, a arte será racional; valorizarão a ciência, o engenho e os valores da Era Clássica. Que fique claro: de maneira (muito) resumida.

Traduzido por Ivo Barroso, este soneto faz parte de Os Melhores Sonetos (2013) de William Shakespeare (Saraiva de Bolso). Como se sabe, o soneto é composto por 4 estrofes, sendo 2 quartetos (estrofes com 4 versos) e 2 tercetos (estrofes com 3 versos), podendo ser decassílabo (versos de 10 sílabas poéticas) ou alexandrino (versos de 12 sílabas poéticas).  Mas existe um "tipo" de soneto próprio de Shakespeare, também chamado "soneto inglês".

Este modelo possui a estrutura de 3 quartetos e 1 dístico (estrofe de 2 versos); diferente do soneto italiano, o soneto inglês não é feito em estrofes separadas, mas todo junto; apenas os dois últimos versos se diferenciam por estarem 2 espaços à frente dos outros. Mantendo a fidelidade ao livro, eis o poema:

XCI

Uns se orgulham do berço, ou do talento;
Outros da força física, ou dos bens;
Alguns da feia moda do momento;
Outros dos cães de caça, ou palafréns.
Cada gosto um prazer traz na acolhida,
Uma alegria de virtudes plenas;
Tais minúcias não são minha medida.
Supero a todos com uma só apenas.
Mais do que o berço o teu amor me é caro,
Mais rico que a fortuna, e a moda em uso,
Mais me apraz que os corcéis, ou cães de faro,
E tendo-te, do orgulho humano abuso.
   O infortúnio seria apenas este:
   Tirar de mim o bem que tu me deste.

(SHAKESPEARE, 2013, p. 89)

Comentário

Quanto à estrutura do poema, temos um soneto decassílabo, isto é, todos os versos possuem dez sílabas poéticas. Como vimos na descrição acima, o texto segue com três quartetos e um dístico; o esquema de rima, por sua vez, é: ABAB – CDCD – EFEF – GG.

Como é costume dos sonetos, principalmente os da época do Classicismo (ao qual Shakespeare fez parte) e do Barroco (que viria depois), temos o uso da sintaxe invertida (frases inversas, não na ordem direta, como estamos acostumados, principalmente na fala espontânea).

O uso de antíteses (ideias contrárias) nesse poema não ficou muito explícito por meio de palavras antônimas, exceto em “plenas” e “minúcias”, “alegria” e “infortúnio”, “tirar” e “deste”, mas através das ideias: o eu-lírico prefere apenas uma coisa em detrimento de todas as outras, além de comparar os quesitos de que alguns se orgulham.

Quanto ao conteúdo, até que é simples. Há um eu-lírico que diz que muitos se orgulham da classe social a que pertencem; outros, dos bens que possuem; outros, da fortuna; outros, dos cavalos treinados; outros, dos cães; outros, da força física; outros, por acompanharem a moda (e aqui há o adjetivo “feia”, crítica feita pelo dramaturgo às roupas na época) etc., mas que nada disso alegra o eu-lírico. Este a tudo o que foi dito e comparado antes, bens ou habilidades que todos se vangloriam, orgulha-se de ter o amor de alguém.

Com isso, também se pode pensar que ele dá mais valor a algo imaterial, abstrato, do que às coisas terrenas e concretas. É um traço de uma transcendência, algo além, como os classicistas enfocavam (geralmente com substantivos iniciados com letras maiúsculas), por conta da retomada do platonismo.

O que chama a atenção, no entanto, é o fato de o eu-lírico se orgulhar do amor dado a ele por uma pessoa, não propriamente pela pessoa que se dá a ele. Algo diferente do que se vê na maioria das relações, onde um olha para o outro, mas nenhum olha para o objetivo (se há algum) em comum e para aquilo que os une.

É claro que há indivíduos que lamentam pela vida toda a perda de alguém, mas há aquelas que seguem em frente, relacionando-se com outros sujeitos. O que ninguém percebe e que o poeta mostra-nos nesse poema, escrito há séculos atrás, é que, antes de tudo, somos apaixonados e amamos o amor, não somente a pessoa. Não buscamos “alguém”, mas aquilo que ele(a) pode trazer ou criar: os sentimentos, dentre eles, o amor.

Os pares vão se trocando, mas o que procuram ainda é o mesmo: afetos. O eu-lírico sabe disso, por isso teme que lhe tirem o bem causado por alguém, tirem-lhe o amor, tirem-lhe as lembranças, pois lhe tirando essa subjetividade, esse valor transcendente, sobram apenas objetos terrenos e, por isso, passageiros... Sobre as habilidades, idem.

E se o eu-lírico teme que essa substância possa lhe ser tirada, é porque há essa possibilidade... Através de brigas, de discussões, de falta de diálogo, de reciprocidade etc. Então, nem tudo o que é imaterial é eternamente duradouro... Mas, por isso mesmo, é importante e deve ser valorizado.

Vale lembrar que em momento algum o eu-lírico sofre, ele apenas reflete. Os poemas e as obras em geral, na época do Classicismo, refletem a racionalidade, elemento herdado da Era Clássica. Quem demonstrará muito mais do que a razão, mas os sentimentos, o sofrimento, uma subjetividade maior, serão os românticos. Mas isso somente séculos depois. 

Referências

SHAKESPEARE, William. Os melhores sonetos. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. (Saraiva de Bolso)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Kino no Tabi: uma viagem pela irracionalidade humana

Já há alguns anos, li, numa revista, uma sinopse de um anime chamado Kino No Tabi. Interessei-me na hora e corri para assisti-lo. Como esperado, não me arrependi. Recentemente, assisti à obra novamente e venho aqui, agora, fazer um breve comentário sobre esse excelente e curto animê, o mais filosófico e poético de todos os que eu já vi.

Kino No Tabi é uma light novel (uma espécie de livro, romance curto, geralmente ilustrado no estilo mangá) de Keiichi Sigsawa. Publicada (escrita) em 2000, em 2003 ganhou a sua curta animação de apenas 13 episódios, a qual ficou conhecida como Kino’s Journey: the Beautiful World.

O animê conta a história de Kino, uma viajante, e Hermes, a sua moto falante. Sim, um veículo que entende o que dizemos e responde-nos. Excelente criação para quem viaja. Pouco sabemos da protagonista; tanto a moto quanto Kino falam pouco, muitas vezes a atenção é focada com quem elas interagem, mas, mesmo assim, a dupla consegue cativar tanto os personagens quanto o telespectador.

A menina Kino viaja, então, por vários países, que na verdade são pequenas cidades, algumas mais desenvolvidas, outras nem tanto. Por motivos pessoais (para não se apegar e deixar de viajar), ela não fica mais de três dias em cada país. Cada local possui uma característica e aqui entra o trunfo da obra: a cada estadia de Kino, mais do que os costumes do lugar, ela aprende e nós aprendemos sobre a irracionalidade humana.

(Kino e Hermes)

Comentarei um pouco sobre o primeiro episódio, no qual Kino chega ao “País da dor aparente”. Título forte, episódio também. Ao entrar no país, a protagonista percebe que está tudo muito vazio, as cidades são cuidadas por robôs (isso é comum no universo de Kino), mas humanos “não há” nenhum.

Este fato por si só já nos traz um pensamento: até quando o ser humano será útil? Pior ainda: sem ser útil, precisará e continuará a existir? De qualquer forma, criando robôs superinteligentes para aumentar o seu tempo livre, o seu prazer, o homem cria, também, a sua ruína. (Até lembrei-me do Aldous Huxley: o fim e o maior sofrimento da humanidade virão com a sua busca incessante pelo prazer).

No entanto, no “País da dor aparente” os humanos não morreram ainda, só estão escondidos, cada um em sua casa, cada casa a metros e quilômetros de distância uma da outra. Por quê? Um dos moradores “nos” conta.

Depois de ver algumas pessoas e todas fugirem de Kino, uma delas volta atrás e percebe que não consegue ler os pensamentos da menina, nem ela os dele. Fato raro, isso denuncia que ela não é daquele lugar.

O homem narra a história daquele país: tratando-se de tecnologia, seu povo havia avançado muito, criando diversos tipos de robôs que faziam quase tudo para os humanos. Os cientistas criaram, então, uma máquina líquida, em forma de água. A pessoa que a bebesse conseguiria ler os pensamentos do outro. Por que essa ideia? Para acabar com o sofrimento!

Diz-se que a maioria dos problemas ocorre porque não conseguimos sentir ou imaginar a situação que o outro está passando, além de nossa linguagem muitas vezes ser falha, não conseguir expressar o que pensamos (e isso está relacionado à filosofia do Ludwig Wittgenstein). Logo, se todos bebessem a máquina líquida, entender-se-iam sem falarem uma única palavra.

Foi assim que o morador que conta a história casou-se com a sua amada: ele gostava dela, ela gostava dele, mas ambos nunca tiveram coragem de falar um para o outro. Quando todos os cidadãos beberam a água (pois ninguém queria ficar de fora, ser excluído, não conseguir ler os pensamentos do outro, não ter os seus lidos), ao se olharem, um percebeu o que o outro sentia. Casaram-se.

Passou-se o tempo e os problemas vieram: a mulher não gostava tanto de música quanto o homem, o homem não gostava tanto de plantas quanto a mulher. Nem precisavam falar, um lia os pensamentos do outro. Os dois sabiam que estavam se desgostando, logo, romperam a relação. Pior ainda: as pessoas nas ruas brigavam e se matavam, porque sabiam que tal pessoa tinha ódio por ela, outra queria se vingar, outra estava mentindo etc. O país virou um caos, as pessoas separaram-se umas das outras a uma distância que não conseguiam ler os pensamentos do outro nem terem os seus lidos. Os robôs cuidaram da cidade.

Como consequência, as pessoas foram morrendo, os casais foram rompendo e ninguém mais nasceu. No fim do episódio, quando Kino vai embora, em seu caminho, passa por uma casa que está tocando a mesma música do homem que lhe contou a história: a casa da "ex amada". A música preferida dele, a música preferida da ex-mulher. Um sente a falta do outro, mas o medo das discordâncias, o medo das possíveis brigas, afasta-os.

Embora seja uma ficção, além das reflexões já comentadas aqui, pode-se pensar no quão o episódio é atual quando pensamos em nossa sociedade virtual, na internet, no Facebook ou em outras redes, nas quais ao primeiro sinal de discordância de ideias, pode-se bloquear o outro. Ou, antes disso, antes de adicionar alguém à sua lista de contatos, pode-se ver as páginas que o ele(a) curtiu, as bandas que gosta, os livros que lê etc., e, dependendo do seu gosto, pode evitar ou não o contato com tal pessoa. É quase como ler os pensamentos do outro, evitando o contato, evitando o futuro.

Esse é apenas um dos episódios e esses são apenas alguns pontos que eu comentei, pois os diálogos são quase todos profundos e poéticos. Kino passa por diversos países e situações, que até podem parecer estranhas demais, mas na verdade são sublimes representações de nossa irracionalidade.

Dentre essas situações, temos, por exemplo, o “País dos Adultos”, onde as crianças passam por uma operação para fazerem os seus trabalhos sem reclamar, sempre sorrindo, aceitando o seu “destino”; para eles, isso é ser adulto. Isto é, os adultos são aqueles que renunciam à razão e às suas vontades. Há também o país no qual o trabalho foi abolido, deixado para os robôs, mas por não terem o que fazer, os humanos trabalham gratuitamente, apenas para passar o tempo e estressarem-se propositalmente.

Essa história é contada a outros três homens que não se conhecem e não sabem o motivo pelo qual trabalham, embora estejam numa mesma estrada (física e metafórica). Há 50 anos, cada um deles foi enviado para uma parte de uma ferrovia: o primeiro, para limpá-la, pois foi dito que um dia ela poderia ser usada; o segundo, mais atrás, para desmontá-la, pois disseram que ela não seria mais utilizada; e o terceiro, mais atrás ainda, para refazê-la, pois falaram que daqui a uns anos ela seria usada. Nenhum tem contato com a família, nenhum nunca parou de trabalhar, pois nunca foi enviada uma ordem para isso. Assim continuam o trabalho sem propósito, completando um ciclo e trazendo a metáfora de Sísifo. Porém, sem saberem de si mesmos, querem saber de Kino: “Para onde você vai?” Irônico, poético...

Há outras críticas no animê, feitas aos sistemas políticos, às religiões, às atitudes humanas, às guerras — há um país que é rival de um país vizinho, para ambos deixarem de se matar, resolveram a situação de forma muito simples: não lutarão mais entre si para disputarem territórios: destruirão os pobres povoados ao redor. Os pobres, os outros, serão dizimados; os ricos países rivais, não. Não é muito diferente do nosso mundo.

Já em outro momento, Kino no Tabi traz reflexões sobre a tênue linha entre a subjetividade da criação imaginária, a ficção dos livros, e a realidade objetiva do mundo, suas semelhanças e diferenças, como uma interfere e ajuda a outra; enfim, uma discussão sobre a função dos livros e o poder que eles exercem sobre as pessoas.

É por essas e outras que eu indico o animê Kino no Tabi, desconhecido, curto, porém profundo. A animação conta com 13 episódios, um OVA e dois curtos filmes (de meia hora). Os gráficos/traços podem não ser de primeira qualidade, a trilha sonora pode não ser marcante (embora cumpra bem a sua função), mas o conteúdo é. Outro fator positivo é que a animação não cai no clichê maniqueísta do bem x mal. São situações, contextos e pessoas diferentes; são múltiplos ângulos de nossos atos e de nossa sociedade. "Beautiful World" pode ser uma ironia, depende de que lado olharmos.

Viajemos pela viagem de Kino, pelos países e pelos dilemas que a envolvem, que envolvem os personagens, que nos envolvem e nos devolvem um pouco da razão. 

P.S.: Eu queria comentar sobre vários momentos de todos os episódios, porque são ricos demais, mas só de fazer este texto já me doeu. Duas dores: a de ficar contando parte do enredo e a de ter evitado contar mais... Sinto-me como se tivesse dito nada... 

domingo, 15 de janeiro de 2017

Um breve comentário sobre o anime "Now and then, here and there"

Não sou especialista em animês, mas gostaria de comentar sobre um que acabei de assistir.

Há cerca de dois anos, um amigo do Facebook relatou ter assistido ao anime Now and then, here and there e ter gostado muito. Anotei o nome para assisti-lo depois, mas passou-se um ano e eu não o tinha assistido ainda. Prometi a mim mesmo que depois que terminasse de ver o Yu-Gi-Oh, vê-lo-ia.

Terminado de assistir aos 224 episódios das aventuras e dos duelos de Yugi e seus amigos, fui direto ao anime recomendado. O nome original da animação é Ima, Soko Ni Iru Boku, que no Ocidente ficou conhecido como Now and then, here and there (Agora e depois, aqui e lá).

(Shu e Lala Ru)
A obra possui apenas treze episódios, que foram dirigidos por Daichi Akitaro (famoso pelo Fruits Basket) e dirigido por Hideyuki Kurata. O anime foi exibido entre outubro de 1999 e janeiro de 2000. Apesar de curto, não se engane, os temas abordados e a forma como são discutidos são de uma profundidade imensa, proporcionando reflexões por muito mais tempo do que a duração de cada capítulo.

Primeiramente, falemos sobre a abertura, que chega a nos lembrar algumas soundtracks do Hunter x Hunter (Yoshihiro Togashi) clássico — também exibido entre 1999 e 2001 —, mas não apresenta ação alguma, apenas as figuras e os nomes dos personagens.

(Opening de Now and then, here and there)

É preciso dizer, também, que antes de cada episódio, antes mesmo da abertura, lemos a frase “Pois dez bilhões de anos é um tempo tão frágil, tão efêmero... Que incita um carinho amargo, quase desolador...”. Uma reflexão introdutória, tal como é feito em Berserk (Kentaro Miura), mas este último foi exibido em 1997 e 1998.

Pois bem, assim começa Now and then, here and there, com o personagem principal, Shu, um menino elétrico, ingênuo e bondoso, lutando e perdendo num dojo. Em seguida, caminhando pela rua, ele avista alguém em cima de uma chaminé de um local abandonado, observando o pôr-do-sol.

Depois de certa insistência, a menina misteriosa diz se chamar Lala Ru. Neste momento, porém, surge uma luz, alguns soldados e uma mulher, que depois descobrimos se chamar Abelia. Eles são membros do exército de Hellywood, um país-navio de outro mundo (em outro tempo), governado pelo ditador Hamdo. Lala Ru está sendo procurada há tempos, por conta de uma habilidade única que ela possui (depois descobrimos ser o controle da água). Shu, ao perceber que a menina lhe pede ajuda, tenta impedir (a qualquer custo) que ela seja pega, mas ambos são levados à Hellywood.

Neste momento, penso ser um ponto negativo na obra, pois é inverossímil com a realidade. Shu tinha acabado de descobrir o nome da menina, não sabia nem de onde ela veio ou o motivo pelo qual estavam atrás dela. Embora ele tenha um grande senso de justiça, não é sempre que se pula de uma chaminé para outra, correndo risco de vida, lutando contra dois soldados montados em enormes máquinas-dragão, tudo isso tendo como arma apenas um pedacinho de madeira a seu favor... Mesmo depois, ao chegar num mundo desconhecido, o personagem principal nem se lembra da própria família, apenas em salvar a menina recentemente conhecida...

A partir daqui haverá alguns spoilers. Se não quiser sabê-los, assista ao anime e volte — se quiser — depois.

Chegando ao outro mundo (Hellywood), Shu e Lala Ru tentam fugir, mas são perseguidos por vários soldados de Hellywood a mando do ditador Hamdo. Aqui começa o peso da história: todos os soldados são apenas crianças... Crianças que foram retiradas de outras vilas, mas que agora servem a um ditador que, sem que eles soubessem, após tomá-los de suas famílias, destruiu as suas cidades. Então, elas lutam a favor do ditador, que lhes prometeu que quando capturassem Lala Ru, voltariam para suas famílias e vilas... Cegas, elas seguem um sonho; cegas, elas seguem a ideologia (d)e um homem que as oprime...

Não se explica o que “é” o mundo de Hellywood, mas acredito ser algum lugar da Terra no futuro, pois, lá, todo o cenário é devastado por causa das guerras e pela falta d’água. Além disso, há relação dada pelo título do anime: Agora e depois, aqui e lá, que pode demonstrar o presente de Shu e o futuro de Lala Ru e dos outros, o “aqui” do Japão e o “lá” de Hellywood. Ou ainda, pode significar uma reflexão sobre quem somos aqui e agora e o que seremos ou podemos ser mais tarde; outra sugestão, talvez, seja o “aqui” = nós, e o “lá” = o(s) outro(s).

Outro fator não explicado é quem é Lala Ru, de onde veio, porque ela existe, de onde vem o seu poder etc. Só sabemos que ela é considerada uma lenda por alguns povos, pois vive(u?) há milhares de anos; é cobiçada por Hamdo, para que com a água (que o mundo todo quase não tem) ele possa dominar outros lugares e países.

Num dos episódios, Lala Ru diz que sempre que usa o seu poder, sente-se fraca; odeia os seres humanos, porque se ela os ajuda, eles querem “ajuda” (benefícios) sempre, e caso se recuse, passa a ser odiada e perseguida, nunca os contentando completamente. Isso ocorreu e se repetiu durante gerações (lembram-se da frase que inicia todos os episódios? “Pois dez bilhões de anos é um tempo tão frágil, tão efêmero... Que incita um carinho amargo, quase desolador...”). Enquanto isso, Shu tenta convencê-la do oposto, que ainda há bondade no mundo e pessoas boas; ele é um exemplo, outras pessoas que eles conhecem, também.

Voltando à história, Lala Ru é capturada, mas para a infelicidade do ditador, ela está sem o objeto que contém retido todo um “oceano” de água doce. Este fica com Shu, que o perde numa luta contra Nabuca, uma criança líder de uma tropa de Hamdo.

Nabuca é um dos personagens que mais muda conforme a narrativa, pois, no início, ele se mostra sempre eficiente a serviço de Hamdo, matando até amigos (outras crianças) se for preciso, se for uma ordem de um superior; mas quanto mais ele se relaciona e conversa com Shu, mais percebe que não só ele, mas todos os outros estão vivendo uma loucura, algo desumano.

Um dos companheiros de Nabuca, sempre ao seu lado, é Boo. Uma criança mais nova e negra. É preciso ressaltar essa característica, pois não é comum, nos animês, termos personagens negros. Boo é um dos primeiros a ser influenciado por Shu, compreendendo a si mesmo, suas vontades e seus medos; deixando de fazer o que não queria, mas que fazia porque foi imposto, lutando sem querer lutar. Além disso, é interessante notar a leve semelhança entre o personagem de Now and then, here and there com o Oob (o contrário de “Boo”, pois é a reencarnação boa do vilão “Boo”) de Dragon Ball Z (Akira Toriyama). Coincidência (?), ambos são negros.
(Boo e Oob)
Uma outra leve (leve, bem de longe!) semelhança entre personagens que podemos perceber é entre Abelia, a fiel súdita do louco ditador Hamdo, que vive entre seus surtos, ora sendo elogiada, ora sendo xingada e agredida fisicamente, mas sempre submissa (como muitas mulheres ao redor do mundo...), e a Faye Valentine, do anime Cowbow Bebop (Shinichiro Watanabe e Keiko Nobumoto), mas esta última aparenta ser mais jovem e é mais cool, (muito) mais sexy, e também possui uma personalidade muito diferente da súdita de Hamdo — claro, além de obras e desenhistas diferentes, o contexto de Abelia é muito pior.
(Abelia e Faye. Detalhe: escolhi imagens em que as personagens podiam se parecer mais, porque, na verdade, Abelia é mais morena e "feia", enquanto Faye é mais bonita do que a imagem escolhida)

Aliás, os traços de todo o anime são mais simples, sem muitos detalhes. As cores alternam entre o escuro e o claro, cores frias e quentes (tal como as alternâncias do título do anime...). Precisamos atentar-nos às feições dos personagens, porque nos diversos momentos de silêncio, elas falam muito sobre o espírito, a vontade e o passado daquelas pessoas...

Para não me prolongar demais, recomendo a animação por conta de seus temas, que não são muito comuns entre nós, ocidentais, em desenhos. Em Now and then, here and there discute-se violência, ideologia, fascismo, guerras, determinismo, reprodução, vingança, tortura, medo, fome, falta d’água, estupro, aborto, perda de inocência etc., tudo mediado, discutido, vivenciado por crianças. É isso que faz com que a obra seja pesada, uma das mais fortes que já assisti. Se fossem adultos, não teria o mesmo impacto. Por mais que seja ficção científica, é tudo muito real e próximo de nós.  

Contudo, no final, por mais tristes acontecimentos que tenham acontecido, ainda assim, resta uma mensagem de esperança. Ao lado de Kino No Tabi (Keiichi Sigsawa), considero-o o animê mais filosófico que já assisti.


P.S.: Há outros personagens e acontecimentos, além de fatores como trilha sonora, que devem ser refletidos, mas deixo-os para quem assistir. Para quem não viu ainda, esse texto é só uma introdução; para quem já o assistiu, uma conversa.