Atenção: Se você não conhece o conto "Rashômon", é possível lê-lo neste outro blog: http://contosquevalemapena.blogspot.com/2015/02/33-rashomon-r-akutagawa.html, ou, se preferir baixar o livro inteiro em PDF, veja este outro link: https://docero.com.br/doc/nes10.
Breve introdução ao gênero conto e ao escritor Akutagawa
O conto é um dos gêneros literários
mais populares contemporaneamente, pelo seu caráter breve, relativamente
objetivo e verossímil, pela aproximação dos (poucos) personagens através de
diálogos e pela fácil assimilação dos acontecimentos, por meio do tempo
cronológico (sempre seguido). Outra característica do conto é que ele tem
apenas uma célula dramática, isto é, apenas um clímax, sempre no final do
texto.
Ryûnosuke Akutagawa é
considerado por muitos como o “Pai do conto japonês”, por ser o primeiro a se
preocupar com a estética do gênero e a introduzi-la à literatura japonesa,
influenciando diversos escritores. Seu nome, inclusive, intitula um dos maiores
prêmios literários do Japão.
Nascido no final do século
XIX (1892), Akutagawa teve uma vida breve, pois se suicidou aos 35 anos (1927).
Sua obra é marcada por reflexões melancólicas e/ou pessimistas sobre o homem, a
sociedade e a verdade. O escritor, mesmo que de modo sutil, o que é uma
característica da cultura japonesa, sempre revela aspectos mesquinhos do ser humano,
como a hipocrisia e o egoísmo, ambientados em diversos períodos históricos do
Japão — cada um, inclusive, descrito coerentemente de acordo com a realidade material
e espiritual da época, o que demonstra o cuidado de pesquisador que Akutagawa
tinha.
“Rashômon” (1915), um dos
seus contos mais famosos, que já até inspirou filmes e histórias em animes, é baseado
numa coletânea de narrativas do século XII, a “Konjaku monogatarishû”. Antes
que se diga qualquer coisa, é necessário saber que faz parte da cultura
literária japonesa pegar algum trecho de uma obra já escrita e usá-lo para inspirar
ou reinterpretá-lo num texto novo, a tradição “Honkadori”. Akutagawa foi mestre
em utilizar breves histórias antigas e aprofundá-las, deixando-as muito mais
ricas, complexas e com o seu próprio estilo, a saber, crítico, irônico e belo
esteticamente.
A seguir, uma análise do
conto Rashômon, com foco nos possíveis significados de sugestivas
metáforas através de imagens simbólicas e até mesmo do estilo narrativo do
autor.
Análise
Todo texto começa a ser
lido e interpretado a partir da sugestão do título, no caso, “Rashômon”, que
nada mais é do que um portal, a entrada para a cidade de Quioto, na época, a
capital do país. Ou seja, a história acontece num lugar de encontros, de
entradas e saídas, numa “fronteira”, numa divisa, num limite entre um começo e
um fim. Isso, inclusive, é importante para o reforço da significação do conto.
A primeira frase já rima com o título: “Era num entardecer” (AKUTAGAWA,
2008, p. 25). De novo: uma fronteira, uma divisa, agora, entre o dia e a noite.
Além desse microcenário (o
portal), o macro, a cidade, Quioto, já “sofrera seguidas calamidades:
terremotos, redemoinhos, incêndios e fome” (idem, ibidem, p. 25), o que, então,
remete aos tempos difíceis que o povo, até mesmo o protagonista do conto, um
servo de baixa condição, estava passando. Mais do que isso, o clima era de chuva,
o que pode indicar o estado mental conflituoso pelo qual o servo passava, tanto
o é que o próprio narrador quebra a quarta parede e utiliza-se da metalinguagem
para explicar: “o tempo chuvoso contribuía sensivelmente para a disposição de
espírito daquele homem da era Heian” (idem, ibidem, p. 27). Esse período histórico
japonês, Heian, que fique claro, durou do ano de 794 a 1185.
É nesse contexto que o
personagem principal vive, um pobre servo, numa terra desolada, onde, segundo o
narrador, até mesmo estátuas de Buda e outros objetos de culto budista eram destruídos
para aproveitar a madeira e/ou outras partes que podiam ser vendidas. Ato
significativo: a vida física, o lado material, acima da vida espiritual. Homens
sem transcendência. Há várias passagens no conto em que o narrador iguala os
personagens a animais, seja comparando-os com características, seja
colocando-os lado a lado. Embaixo do portal, por exemplo, o servo só tem a
companhia de um grilo, para se ter noção da solidão naquele lugar e daquele
ser.
Ainda mencionando os
animais, é mencionado que como o portal estava abandonado, “raposas e texugos
começaram a se abrigar ali. E também ladrões” (idem, ibidem, p. 26). Muito
perspicaz da parte do Akutagawa, que já deixa dicas para bons leitores do que
pode vir a acontecer na história. É explicável: o servo, agora sem trabalho,
não sabe o que fazer da vida e começa a pensar em se tornar ladrão, mas essa
informação só chega mais tarde para quem lê; por hora, só há essas sugestões.
Todo o cenário é descrito
de maneira obscura, cheio de detalhes feios, para demonstrar a decadência do
lugar e que será o meio em que o protagonista entrará, moral e fisicamente.
Além dos corvos (que podem representar o mau agouro), que “Vinham, obviamente,
alimentar-se da carne dos mortos abandonados (...) podiam-se notar seus excrementos
pontilhados de branco sobre os degraus de pedra quase em ruínas” (idem, ibidem,
p. 26). Como se não bastassem esses aspectos sombrios e desagradáveis dignos da
descrição de um Edgar Allan Poe, o servo estava “sentindo-se incomodado com a
enorme espinha que lhe aparecera na face direita” (idem, ibidem, p. 26). Essa
espinha, além de deixar o personagem mais feio, pode representar o seu conflito
interior, algo que lhe incomodava e que estava prestes a “estourar”.
Agora, um detalhe
interessantíssimo do conto: Akutagawa utiliza-se da metalinguagem e de uma
espécie de quebra da quarta parede para refletir sobre a verdade da história.
Observe:
Escreveu o
autor anteriormente: ‘Um servo de baixa condição esperava a chuva passar’.
Entretanto, mesmo que a chuva passasse, o servo não teria, na verdade, nada a
fazer. (...) Acontece que fora dispensado havia quatro ou cinco dias. (...) Seria,
portanto, mais adequado dizer ‘Um servo de baixa condição, preso pela chuva,
estava desnorteado, sem saber para onde ir’ (idem, ibidem, p. 26-27).
Vê-se, então, curiosamente,
um narrador que se autocorrige para passar a informação correta a quem lê, isto
é, uma busca pela verdade, que é um dos temas abordados nas obras do escritor
japonês. Mais ainda: talvez, esse ato revele a efemeridade das coisas e da
verdade perante novas informações, o que de fato acontecerá mais à frente.
Finalmente, descoberto o recente
passado do servo, apresenta-se o conflito: tornar-se ou não se tornar um ladrão?
“Quando se tenta resolver uma questão insolúvel, não há tempo para escolher os
meios. Se demorasse muito na escolha, o servo certamente terminaria morrendo de
fome” (idem, ibidem, p. 27), todavia “ele
não tinha coragem suficiente para aceitar de forma positiva a resposta
inevitável à questão: ‘A única saída é tornar-me ladrão’. (idem, ibidem, p.
27). Pronto, está posto o dilema, o eterno shakespeariano: “Ser ou não ser?”. É
errado roubar? Sim. E se não for por maldade, apenas para não morrer de fome?
Não. É a verdade relativa, tema comum de Akutagawa. Não há moral quando se
trata de sobrevivência.
É importante prestar
atenção às cores da roupa do servo também: “a gola azul-escura que envergava
sobre a roupa amarela” (idem, ibidem, p. 28). Azul, cor escura, amarelo, clara,
mais um conflito, tal como se tornar um obscuro ladrão ou continuar um servo
moralmente correto, tudo isso somado ao entardecer, que não é noite nem dia,
embaixo de um portal, local de encontros, de atritos. Quantas rimas semânticas.
Do mesmo modo, é possível pensar na sugestão: a parte azul da roupa, escura,
está acima da clara, o que pode indicar a preferência final do protagonista.
Ainda sobre descrições, é
interessante perceber como o narrador tece comentários sobre os movimentos do homem:
“o corpo encolhido como um gato (...) Abafando seus passos como uma lagartixa”
(idem, ibidem, p. 28-29). Duas interpretações sobre as representações: em
primeiro lugar, a desumanização do personagem, agora comparado a animais (e
isso já havia sido feito ao descrever o portal, onde ladrões e animais se
refugiavam); em segundo lugar, a ressaltada qualidade desses seres, gato e
lagartixa, é a forma silenciosa de se mover, necessidade para quem deseja ser
ladrão, atributo que o servo já possui.
A desumanização continua, pois
quando o homem sobe as escadas do portal, para se proteger do frio, encontra cadáveres
de homens e mulheres, nus e vestidos, “sobre o assoalho, como bonecos de barro,
as bocas abertas, os braços estirados, fazendo até duvidar que um dia tivessem
sido humanos” (idem, ibidem, p. 29). No meio dos corpos, ele vê “uma velha de
aparência simiesca” (idem, ibidem, p. 29). Novamente, uma adjetivação animalesca.
Aparentemente, através da narração, fica a mensagem de que na pobreza, mais do
que perder a religiosidade, o ser humano perde a humanidade.
Essa velha arrancava os
fios do cabelo de um cadáver, “exatamente como uma macaca catando piolhos do
filhote” (idem, ibidem, p. 30). Observe, de novo, como o narrador desumaniza o
ser humano, colocando a velha como uma macaca mãe. Além disso, atente-se à
aliteração obtida na tradução do conto: “CO – MO - u - MA –
MA – CA – CA - CA - tan – do”. O que, por um lado, pode parecer um vício de
linguagem, um cacófato, algo sonoramente feio de se ouvir, por outro lado pode
sugerir até mesmo sons parecidos e repetidos de animais: CO – MO – MA – MA -
CA – CA - CA. Se foi trabalho proposital na tradução, merecem parabéns; se foi
coincidência, ótima surpresa.
Ao ver aquela cena
grotesca, o servo, demasiadamente humano, começa a odiar a velha, quer dizer,
como se autocorrige novamente o narrador,
Não, não seria
exato dizer “contra a velha”. Na verdade, o que a cada minuto se tornava mais
forte era uma repulsa contra todos os males. Se naquele instante alguém lhe
propusesse, outra vez, o dilema que antes o atormentara — morrer de fome ou
tornar-se ladrão —, não hesitaria mais em escolher a morte pela fome. (idem,
ibidem, p. 30)
Então, o homem, que estava
na dúvida entre se tornar ladrão ou não, desistiu de se transformar num
malfeitor, o que revela a efemeridade dos sentimentos humanos, tema caro ao
Akutagawa. O narrador, irônico, crítico, não perde a chance: “Obviamente, o
servo já nem recordava que, há poucos minutos, tencionava tornar-se ladrão”
(idem, ibidem, o. 30). O homem, que não conhecia a verdade sobre aquele ato da
velha, julgou-a e partiu para cima dela. De novo, a metalinguagem: “O autor nem
precisa dizer o susto que ela levou” (idem, ibidem, p. 31).
Depois de dominá-la, ela,
fraca, “Quais pés de galinhas, seus braços eram somente pele e osso” (idem,
ibidem, p. 31) — mais uma vez, animalização do ser humano —, o homem “percebeu
claramente que aquela vida se encontrava totalmente em suas mãos, e tal
consciência acabou por arrefecer o ódio que até então lhe inflamava peito”
(idem, ibidem, p. 31). Ao vê-la sob si, o ódio diminuiu. Impossível não se lembrar
de Nietzsche: “Não se odeia senão seu
igual ou seu superior” (NIETZSCHE, 2013, p. 111).
A
velha, pega subitamente, com as “pálpebras vermelhas como as de aves de rapina”
(AKUTAGAWA, 2008, p. 32), mais uma vez, comparação a um animal, é tão feia que
tem “lábios que quase se confundiam com o nariz devido ao número de rugas” (idem,
ibidem, p. 31), além de ter uma “voz grasnada, como a de um corvo” (idem,
ibidem, p. 32). É uma visão grotesca, aterrorizante (criada já por toda a
ambientação do conto), ou da verdade nua e crua, sem floreios, que o autor
busca descrever.
O
homem pergunta qual o motivo da idosa fazer aquela barbaridade, arrancar os
cabelos de pessoas mortas, e ela diz, simplesmente, que é para fazer perucas e vendê-las,
uma forma de sobreviver, senão morreria de fome. O curioso é que o servo se
sente desapontado por uma resposta tão banal, como se esperasse algo pior, como
se seu desejo fosse por uma atitude mais vil. Seria uma sutil crítica do
escritor à mesquinhez humana? Mais ainda: a velha justifica que aquela mulher
de quem arrancava os cabelos, em vida, era uma impostora que vendia uma coisa
por outra, e que nem por isso a considerava errada, pois a pobre o fazia para se
manter viva: “Para mim, o que ela fazia não era ruim. Não tinha outro jeito,
senão morreria de fome. Não acho, tampouco, que eu esteja agindo errado. Eu
também morreria de fome, não tenho escolha” (idem, ibidem, p. 32).
Pronto, está posta camada
sobre camada: a mulher morta enganava os outros para não morrer de fome, esta
agora tem os cabelos roubados por uma velha que também o faz para se manter
viva, que, por sua vez, é ameaçada por um homem que cogita se tornar ladrão
para sobreviver nesses tempos difíceis. Além disso, a moralidade é questionada
de vez, a verdade do que é certo ou errado torna-se relativa. O servo,
Enquanto
ouvia, sua mão direita apalpava a grande espinha vermelha e purulenta que o
incomodava. (...) O servo não hesitava mais entre morrer de fome ou tornar-se
ladrão. Nesse momento, morrer de fome nem passava por sua cabeça; era uma
alternativa que lhe fugira por completo à consciência. (idem, ibidem, p. 33).
A velha, sem querer,
causou a decisão do homem. Como foi mencionado, a espinha, feia, dolorida,
preste a explodir, representava a preocupação do protagonista. Tanto o é que
logo após ter escolhido a opção de tornar-se ladrão, “subitamente afastou a mão
direita da espinha” (idem, ibidem, p. 33) e roubou as roupas da velha, chutando-a
com violência: “não me leve a mal se eu roubá-la. Se eu não fizer isso, também
meu corpo irá morrer de fome” (idem, ibidem, p. 33). Depois disso, “precipitou-se
escada abaixo rumo a uma noite profunda” (idem, ibidem, p. 33) e nunca mais foi
visto.
Pela última vez, é visto
como os sentimentos humanos são efêmeros: do fim de uma tarde para uma noite,
um homem decide roubar, desiste de roubar, volta atrás novamente e, mais do que
escolher que lado tomará, pratica o roubo. Cada contexto altera o significado
dos atos, a moralidade e a verdade são colocadas em xeque diversas vezes, inclusive
através da metalinguagem, pelo próprio narrador, que se autocorrige.
Além disso, observe as sugestões
de metáforas nesse final: a velha se justifica pelo roubo de cabelos, o homem,
então, decidido a se tornar ladrão, rouba as roupas dela, isto é, a
justificativa com que a mulher se vestia agora passa a ser dele. E mais: o
homem foge escada abaixo, ou seja, é um declínio, uma queda do ser, tanto é
assim que, como se não bastasse retirar as roupas da idosa, ainda a chuta.
Por fim, o servo some “rumo
a uma noite profunda”. O conto começou à tarde e terminou no escuro; a parte
clara, iluminada, do dia e do homem, acabou: só restou escuridão. Tudo isso
embaixo de um portal, cenário de passagem e de encontro entre pessoas, tal como
o protagonista entrou de um jeito e saiu de outro, graças ao encontro com outra
personagem.
REFERÊNCIAS
AKUTAGAWA, Ryûnosuke. Rashômon
e outros contos. Tradução de Madalena Hashimoto Cordaro e Junko Ota. São
Paulo: Hedra, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm.
Além do Bem e do Mal. Tradução de Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São
Paulo: Escala, 2013.
Acredito ser muito interessante a metáfora do portal utilizado, pois o portal é para ser a travessado. Quando é dito que há seres que se abrigam no portal podemos assumir duas coisas: Ao insistir em ficar nele e não querer atravessá-lo, estaríamos evitando a mudança. Ou, ao permanecer no local de transição assumimos que sempre estamos em mudanças, por isso a necessidade de permanecer sempre no portal? Toda vez que eu preciso descansar eu vou ao portal? Talvez a reflexão aqui pareca simplória e contraditória. E, talvez o seja.
ResponderExcluirOutra parte que me chamou a atenção foi a parte de destruir as figuras budícas para reutilizar seu material, afinal, não haveria de onde mais extraí-lo? Declarando assim a miséria em que estava se vivendo.
A frente sua análise aponta claramente o debate da dualidade em que o personagem principal do poema está submetido, interessante. Outro ponto a analisar, pela referência ao budismo em si mesmo, o conto parece tecer também uma apelativa para a existência do não-eu, o que parece ser constante no conto. Afinal, também, toda vez recorre-se à comparação com a natureza, talvez destacando as interpretações de certos budismos que os animais (e suas características) estão mergulhados em níveis mais profundos do samsara (reino do sofrimento),
Faço este comentário com base em algumas reflexões que tive e, confesso, que, em grande medida, não compreendi na totalidade, mesmo com sua excelente análise.
Abraços Carlos!
Obrigado pelo comentário, Douglas! Não conheço quase nada sobre o Budismo, não poderia relacioná-lo ao conto. De qualquer forma, mais do que esse "caminho", o Akutagawa escrevia muito sobre o cristianismo, que é um tema frequente na obra dele.
ExcluirQue pena que não compreendeu totalmente... Ainda assim, muito obrigado pela leitura e pelo comentário!
Abraço!