Novamente,
caminhando com o Rambinho (para quem ainda não sabe, ele é o cachorrinho aqui
de casa — na verdade, nem gosto de chamá-lo assim, “cachorro/cachorrinho”, pois
o romantizamos; vemo-lo com características humanas, como prosopopeia), ele me
fez refletir.
Por
gostar de sair, ele sempre sai na frente, cheirando e olhando para tudo. Quando
percebo que a área em que ele pretende ir é perigosa, que possui espinhos ou que pode haver alguns tipos de insetos, eu o seguro com a coleira.
Uma vez, comentei que os animais nem sempre possuem consciência do que estão
fazendo ou do que desejam fazer, apenas o fazem. Somos nós quem temos a consciência da
situação, então, cabe a nós incentivarmos ou mudarmos o rumo do animal. Às
vezes, há pessoas adultas que agem sem pensar também; agem sem consciência do
que estão fazendo (tanto por se moverem pelas emoções, quanto pela alienação). E
há as crianças, que são movidas pelo espírito da curiosidade.
No último
texto do livro A
dialética do esclarecimento, chamado “Sobre a gênese da burrice”, os
filósofos Adorno e Hokheimer comparam a inteligência com as antenas de caracol
e a burrice com a cicatriz. Explico.
O caracol se move conforme o tato de sua antena. Através dos seus sentidos, por onde lhe
parece seguro, ele segue. Assim é a inteligência. Ela não permite que andemos
por onde não conhecemos ou por onde nos parece inseguro. No entanto, se as
antenas sofrerem (e elas são partes muito frágeis) alguma lesão ou se forem
cortadas, mesmo que se curem, ficará uma cicatriz.
Semanticamente,
a palavra “cicatriz” nos traz a característica da fixação, da marca, do sinal
que nunca é esquecido ou apagado. Pois bem, foi disso que lembrei ao caminhar
com o Rambinho, ao puxá-lo para não entrar no mato ou se envolver em brigas. A
reflexão que faço não é sobre ele, mas sobre as crianças.
Há anos
que deixamos de ver as crianças como “adultos em miniatura” e passamos a vê-las
como seres em construção. Durante a infância, somos guiados pela nossa
curiosidade (e a curiosidade é sempre acompanhada pelas perguntas) e pelos
sentidos, antes do que pela razão. Podemos dizer, então, que a curiosidade e os
sentidos são as antenas das crianças. Logo, se machucar ou a cortarmos, ficam
as cicatrizes, fica a marca da burrice — não vamos entender a burrice como
ofensa, mas como uma dificuldade maior ou uma incapacidade de levar adiante a
percepção, o pensamento, a argumentação, o aprendizado e o desenvolvimento.
Ao puxar
o cachorro, lembrei dos pais e professores que “puxam” as crianças e alunos:
“Não pode fazer isso”, “Assim, não!” etc. Não é que não permitem por “achar
perigoso”, mas por considerarem “trabalhoso” ficar observando, ajudando,
incentivando e, assim, avaliando a todo o momento o aluno e a si mesmo (que é
o que deveria acontecer sempre: a autoavaliação e a autocrítica, o repensar a
si, ao outro e a tudo).
A
infância é uma fase muito delicada, é quando começa o descobrimento do mundo
para a criança. Se a curiosidade for cortada, seja lá por qual for o motivo,
veremos pessoas crescidas e desinteressadas em aprender, deficientes em
defender as suas próprias ideias e ideais, porque não sabem para onde apontam as suas
vontades, pois perderam as suas antenas. Após o corte, não é a
vontade ou a curiosidade que orienta o ser, mas, sim, o medo. No entanto, o medo não
orienta: desorienta, paralisa.
Este
texto é só uma reflexão, mas é interessante a metáfora usada por Adorno e
Horkheimer. Os bons professores não são os que “puxam” o aluno para seu lado,
dogmaticamente; os bons pais não são os que cortam as vontades de seus filhos,
autoritariamente. Os bons responsáveis são os que orientam as pessoas, e tenho
certeza de que eles se sentem felizes ao ver o quão longe seu aluno/filho
chegou, seguindo suas sugestões, não ordens. Pois ensinamento não é ordem;
ensinamento é para o bem e para o avanço. Ordem é para a paralisação ou para a ação contra a
vontade.
Agora, o
Rambinho sabe onde pode ou não pode entrar. Mesmo assim, continua indo na minha
frente, sempre curioso. É bom vermos as pessoas indo a lugares novos e
aprendendo por vontade própria, não sendo arrastadas por alguém ou por
obrigação. Ou, pior ainda, quando sozinhas: paralisadas.
Que as
perguntas sejam feitas, que os sentidos funcionem, que não tenhamos — nem
causemos! — cicatrizes, que as antenas não sejam cortadas, que não sejamos
paralisados pelo medo e pelo trauma causado no passado, que possamos vivenciar
o nosso meio.
Aliás, se eu não tivesse ficado atrás, observando (e observar é o sentido da visão) “meu” cachorro, eu não teria conseguido esta reflexão. Podemos dizer que, neste caso, foi ele quem me guiou?
PS.:
Apenas lembrei-me do texto do Adorno e Hokheimer, mas o conteúdo vai muito
além. Recomendo a leitura dele a todos (é pequenininho, só tem uma página).
Deixo abaixo um link para acesso:
ADORNO,
T.W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Disponível em:
<https://nupese.fe.ufg.br/up/208/o/fil_dialetica_esclarec.pdf?1349572420>.
Acessado em: 15 fev. 2016.