Diz-se que há muito tempo atrás, através das boas ações
dos seres humanos, surgiu uma pomba branca (uma só, que também falava de um
único Ser). Esse pássaro voava na contramão de sua época, tanto nas suas
palavras quanto na sua forma física, posto a diversidade de animais, divindades
e crenças existentes no local em que habitavam.
Essa pomba cresceu e teve vontade de conhecer novos
lugares e ares. Conheceu gente pobre, ficou amiga de gente rica e onde quer que
fosse, deixava sua mensagem e imagem. Durante seus voos, caíram três de suas
penas em lugares e tempos diferentes.
Dessas penas surgiram outras três aves menores, que
discordam entre si, mas que são da mesma família (é que uma impõe muito a sua visão e seus modos sobre
algumas partes do discurso da mãe; a outra protesta, querendo remover alguns
trechos; e a outra mudou e acrescentou alguns acontecimentos e personagens na
história).
Embora saibamos que são corpos diferentes, ainda
consideramos todos como parte da mesma pomba. Pois bem, esse pássaro continuou
comendo muito bem, sendo alimentado por quase todos que tinham contato consigo
(algo contrário ao início, quando era ela quem alimentava os povos), e, assim,
muito cresceu — diferente dos bichos e seres do passado, que não foram
alimentados e morreram ou definharam.
Como não poderia deixar de ser, com o tempo a sua
coloração mudou. Além de o ar ser poluído, os lugares que a pombinha branca
visitava também eram sujos. Foi assim que ela se manchou e ficou imunda.
No entanto, a sua sujeira não é uma mera cor encardida,
porque se o fosse, seria superficial. Não, não; é uma sujeira profunda. As
penas sujas caíram, dando nascimento a vários outros animais e vermes, e o seu
couro foi revelado; couro queimado pelo sol ou por maldições jogadas pelas
fogueiras criadas por ela mesma. Houve uma época em que os homens ascendiam o
fogo e a pomba batia asas, esquentando a brasa.
Hoje, quem olha para ela, nem a reconhece mais.
Cresceram novas plumas, mas negras. A pomba virou uma espécie de bicho
mitológico: metade urubu, metade corvo. Urubu, porque vive na podridão e come
lixo; corvo, porque anuncia morte. Só não se sabe se é a morte da antiga pomba,
se é a de si mesma, se é a de seus fiéis ou a de seus espíritos.
Alguns dizem que a verdadeira ave está presa em cativeiro
há muitos anos e que a que vemos hoje é uma farsa, pois até a palavra, o tom de voz e a forma
ensinada de se chegar ao céu mudaram. Cada pena dá origem a outros pássaros e
micróbios, e cada um modifica um pouco a história da mãe.
O engraçado é que ao invés do corvo-urubu ir atrás de sua
comida, é ela quem vai atrás de seu predador, chamando-o de salvador. E pensar
que tudo isso nasceu de uma pena de Platão...