ONDJAKI. Bom dia
camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006.
O gênero literário “romance” pertence à categoria Prosa,
mas há alguns autores que conseguem elevá-lo a um outro nível, criando, assim,
uma prosa poética. Ondjaki faz parte desses escritores, Bom dia camaradas faz parte desses textos.
O livro é dividido em duas partes, que, por sua vez, se
dividem entre curtos subcapítulos; cada um é iniciado por uma epígrafe, que é a
fala de algum personagem do próprio romance no respectivo capítulo; enquanto as
duas partes do livro são antecedidas por versos do poeta africano Oscar Bento
Ribas — o que já indica o tom poético que a obra terá.
Bom
dia camaradas é narrado em primeira pessoa quase que o
livro todo, exceto num único trecho, o qual muda para a narração em terceira
pessoa, para contar a ação e visão do personagem principal, que se chama Ndalu.
Ndalu também é o nome do escritor Ondjaki, Ndalu de Almeida, o que pode
indicar, talvez, que se trata de um romance “autobiográfico” (até porque os
versos de Oscar Bento Ribas referem-se à saudade).
A história se passa na Angola (também o local de
nascimento de Ondjaki), no período pós-colonial, e conta alguns relatos diários
do personagem principal, Ndalu, uma criança de classe média, que embora seja jovem,
possui um olhar crítico e politizado sobre o seu meio.
O livro já se inicia com uma pergunta do personagem
principal ao cozinheiro da casa: “’MAS, CAMARADA ANTÓNIO, tu não preferes que o
país seja assim livre?’” (p. 17), o que denota o caráter questionador da
criança, além do período de pós-colonialismo português. Porém, António
discorda, alegando que “(...) no tempo do branco isto não era assim...” (p.
17).
A resposta de António justifica-se, porque após a
libertação do povo angolano, iniciou-se uma guerra civil, guerra que permeia
todo o livro. A criança parece não entender a existência da guerra, pois
agradece por ao menos o país ser governado por africanos de verdade, não por
portugueses. Enquanto, por outro lado, António diz que pelo menos quando eram
dominados, havia ordem...
É o retrato de pessoas que não percebem a situação na
qual estavam inseridas, pessoas sem esperança, que preferem depender de outrem
a criar a própria história. Pode-se dizer que António representa a classe popular
(enquanto Ndalu, a classe média — que quer se reerguer e ser livre).
O menino estuda numa escola que possui professores
cubanos, que foram para a África para ajudarem Angola, agora que é um país livre,
mas em guerra e em construção da própria identidade. O livro, que faz parte da
Literatura Africana de expressões portuguesas, possui diversas palavras
angolanas, além de trechos escritos em espanhol para representar a fala dos
cubanos, o que faz a linguagem da obra ser híbrida.
Esses professores representam a voz crítica do texto, por
todo o seu contexto ideológico e revolucionário que vivenciaram em Cuba, como
no primeiro relato do menino na escola, quando a professora está triste “(...)
porque os alunos tinham sido indisciplinados, e que num país em reconstrução
era preciso muita disciplina (...) que nós tínhamos que nos portar bem para que
as coisas funcionassem bem no nosso país” (p. 21).
Também é importante ressaltar o espanto dos professores
cubanos ao verem que seus alunos possuíam relógios de pulso e calculadoras.
Mais à frente, o espanto aumenta-se ao presenciarem a quantidade de comida
posta na mesa da casa de um de seus alunos. A primeira hipótese que se pode
pensar sobre isso é que os cubanos não tinham acesso a esses objetos e a tal quantidade
de comida em Cuba, ou a surpresa em saber a situação da Angola, que estava
muito melhor do que esperavam (lembremos: esses alunos, em sua maioria, fazem
parte da classe média angolana).
A linguagem utilizada pelo narrador é muito simples e
poética, observando as pequenas coisas, como as atos cotidianos, as plantas e os
insetos, comentando-as de forma ingênua, como se o escritor realmente fosse uma
criança. No entanto, essa observação das pequenas coisas advém da própria
monotonia local: “Nós ficávamos aborrecidos com as notícias, porque era sempre
a mesma coisa: primeiro eram as notícias da guerra, que não eram diferentes
quase nunca (...)” (p. 27).
A ingenuidade da criança é percebida (pela forma e) pelo
o que ela aprende no seu dia-a-dia (por exemplo: quem era Nelson Mandela, seu
tempo de prisão, a existência da África do Sul, as imposições — barbáries —
sobre o povo e sua posição de “inimigos”), acompanhada de seus novos
questionamentos e não conformação com o Apartheid,
com o racismo, com as notícias, enfim, com a realidade.
A dura realidade local é demonstrada a partir da visita
de uma tia de Ndalu, Dada, que mora em Portugal (ela morava na África/Angola,
mas se mudou — não se explica o motivo). Logo no aeroporto, vê-se o medo, a força,
a repressão e o autoritarismo existente no país, quando as Forças Armadas para
a Libertação da Angola (FAPLA) não permitem que sejam tiradas fotos no lugar,
“(...) eles não deviam saber que em Luanda não se podia tirar fotografias assim
à toa. O Fapla disse: ‘a máquina está detida por razões de segurança de Estado!
’” (p. 40).
Mais à frente, vemos que quando o presidente passa de
carro, todos os cidadãos próximos devem sair de dentro de seus veículos, para
mostrar que obedecem e que não possuem armas contra as autoridades. É nisto que
se mostra a dualidade da criança que, por um lado, questiona-se sobre alguns
comportamentos adotados por certas pessoas, mas por outro, considera normais
essas imposições autoritárias do governo,
por já ter crescido nesse contexto.
Um trecho importante e que consome boa parte do livro é a
história do Caixão Vazio. Um boato que estava acontecendo nas redondezas da
escola, em que narrava um grupo de bandidos, todos vestidos de preto, com um
caixão vazio (em que havia uma caveira desenhada), no qual eram colocadas as
crianças. Eles chegavam num caminhão, cercavam as escolas e abusavam das
professoras, além de destruírem tudo por onde passavam. Depois se descobre que
tudo era uma mentira, mas mesmo assim, toda essa ficção reflete os medos das
crianças e do povo, o medo da guerra, da violência e da morte.
Em um diálogo entre o protagonista e a tia Dada,
entendemos um pouco da sociedade angolana no período da guerra civil. Quando a
tia chega com os presentes, o menino pergunta como ela conseguiu tudo aquilo,
se o seu cartão permitia tais
aquisições, já que, na Angola, havia cartões de abastecimento, que limitavam e
controlavam as compras feitas. Dada, por sua vez, responde que em Portugal
pode-se comprar a quantidade que quiser e do que quiser, desde que se tenha
dinheiro.
A narração em primeira pessoa já aproxima o leitor do
narrador; há personagens que o cativam mais ainda; mas em Bom dia camaradas Ondjaki cria um narrador que conversa com o
leitor, como na passagem em que o menino diz que os adultos, às vezes, fazem
gestos somente por fazer, mas que não há sentido para fazê-los (e aqui
percebemos o olhar ingênuo e pontual
da criança). Depois, comenta: “(...) não sei se já repararam que os mais velhos
fazem muito isso.” (p. 51).
Além da influência de cubanos em Angola, há, também, a
presença de soviéticos no país. Estes dominam até mesmo uma praia, como se
fosse deles — isto até nos lembra uma passagem do conto Um passeio na noite (1979), de Alex La Guma, quando os
trabalhadores comentam que os brancos pensam em possuir uma praia africana só
para eles. Novamente, o protagonista acha comum, assim como estranha que em
Portugal o presidente não ande sempre cercado de soldados e que não impõe que
todos parem o que estejam fazendo para observá-lo passar. É nisto que se mostra
que o personagem principal, embora possua um olhar crítico, não deixa de ser
uma criança.
Não só isso, Ndalu conta com naturalidade à sua tia as atrocidades
que acontecem no país ou que lhe são contadas, como queimar bandidos vivos,
mutilar dedos, injetar água de bateria no corpo, etc. Até acha graça. Também
gosta da ideia de terem tirado uma estátua em homenagem a alguém e terem posto
um tanque de guerra. É um traço do determinismo, que acostuma as pessoas aos
seus respectivos meios (o que, automaticamente, ocasiona a reprodução de
ações). Não é à toa que Murtala é um aluno que tem muitas dificuldades, pois é
um dos únicos pobres da sala. Reflexo de seu círculo pessoal.
A segunda parte do livro inicia-se diferente da primeira
(o que já deixa “dicas” do que acontecerá): enquanto a primeira começa de dia,
esta, de noite. É nela que se descobre que o Caixão Vazio não existia e que o
carro que eles pensaram ser o caminhão dos bandidos, era o carro do inspetor da
escola, que faria uma visita surpresa e que todos deveriam estar comportados e
limpos. O medo do caixão vazio reflete o medo das crianças pelo inspetor (elas
fugiram da escola); e esse medo reflete o medo da(s) autoridade(s). É
interessante comentar que os professores cubanos nem sabiam quem era o inspetor
da escola em que trabalhavam, o que lembra os trabalhadores que não conhecem
seus patrões e patrões que não conhecem seus trabalhadores.
É importante percebermos como as descrições mudam o tom
da narrativa nesse segundo capítulo. Além de ser iniciado à noite, o
protagonista passa a acordar mal-disposto (o que é contrário à primeira parte
do livro, na qual ele acordava sempre bem disposto). É uma passagem de
respostas e descobrimentos, como quando assistem a um vídeo e um professor
mostra que o filme é ideológico, que os americanos sempre vencem e nunca
apanham. Depois os alunos complementam, dizendo que realmente, a munição dos
americanos nunca acaba.
Porém, a maior lição que esses garotos ouvem é sobre o
seu próprio país e futuro. Fala do professor Rangel:
(...) Ustedes son
jóvenes, pero ya se debem haber dado cuenta de que muchas cosas han cambiado em
su país em los últimos tiempos... Las tentativas de acuerdos de paz, La llamada
presión internacional, todo eso no pasa solamente en el telediario, va a pasar
de verdad en su país, en sus vidas, en sus amistades... Su país está cambiando
de rumbo y eso, como siempre, tiene consecuencias. La revolución, como decia
Che Guevara, tiene muchas fases, unas más fáciles y otras más difíciles (...)
son alumnos de uma escola, y a ustedes que son nuestros amigos, que la lucha,
la revolución, nunca termina; la educación es uma batalha. Sus opciones de formación,
bien sean profesores, mecânicos, médicos, operarios, campesinos... también esa
opción es una batalha (...) Además de sentir haber cumplido nuestra misión em
Angola, además de habermos sentido privilegiados por poder ayudar a nuestros
hermanos angoleños em la lucha por el poder popular, volvemos alegres a nuestra
pátria sabiendo que Angola tiene jóvenes, en su mayoría, tan empeñados en la
causa revolucionaria, porque la causa revolucionaria, sobre todo, es el
progreso. Angola está dando los primeiros pasos en outra dirección, pero puede
ser una buena direción, todo depende de los hombres, de sus corazones, de la
firmeza com que luchen por sus ideales, de la simplicidad que pongan em sus
acciones, Del respeto que sientan por los compañeros... Angola ya es uma gran
nación y va a crecer más (...) que realmente los niños son las flores de la
Humaniadad! Nunca olviden eso... (p.111 - 113).
É um capítulo de despedidas: a tia Dada volta para
Portugal, as aulas acabam, alguns alunos se mudam, os professores voltam para
Cuba, um dos personagens próximos ao protagonista morre e, também, a guerra
civil termina. Tudo isso é captado e descrito liricamente por Ndalu, de forma
simples e poética, cheia de imagens, sinestesias e reflexões.
Enfim, Bom dia
camaradas é um excelente livro, que se propõe a mostrar a África e a Angola
de uma forma diferente da que é mostrada na mídia (somente a pobreza). É um
texto que mostra as necessidades do país, a guerra, a violência e o
autoritarismo, mas mostra a luta, a busca por identidade, a mudança, a ingenuidade
e a esperança do povo; um bom dia através
das crianças. É uma obra recomendada a todos os interessados em Literatura (não
especificamente a Africana de expressões portuguesas), que buscam conhecer e
aprender sobre outras culturas, agora sim, especificamente, a africana (que,
aliás, tem muito a ver com a brasileira).
Ndalu de Almeida, mais conhecido como Ondjaki, é um sociólogo,
poeta e escritor angolano, nascido em 1977. Vencedor de vários prêmios
literários, entre as suas maiores obras estão Os da minha rua (2007) e Os
transparentes (2012). Atualmente, mora no Rio de Janeiro.
Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é estudante do
curso de Letras, em IESA, Santo André – SP.