Os Sertões é a obra-prima de Euclides da Cunha. Publicado em 1902,
o livro narra a história da Guerra de Canudos, no nordeste brasileiro. Escrito
no período do Pré-Modernismo, a forma de contar os fatos é direta/objetiva,
porém, por influência do Parnasianismo, a linguagem utilizada é complexa (o que
reflete o teor da história).
Antes de iniciar a análise, é preciso comentar que
Euclides da Cunha não era um escritor literário, mas um jornalista e
engenheiro. Trabalhando para o jornal O
Estado de São Paulo, Euclides foi
enviado à área de combate como correspondente, para acompanhar e descrever as
ações do exército e dos “rebeldes”, os seguidores de Antônio Conselheiro.
Chegando lá, o jornalista não encontrou nada do que havia
escrito em artigos anteriores (sertanejos revoltados contra a república, que
queriam trazer de volta a monarquia), nem verdades sobre o que diziam sobre os
nordestinos (povo fraco e não civilizado), muito pelo contrário. Esse foi o
motivo da escrita do livro.
Logo de início, Euclides percebe que o que separa o
nordeste de outras partes do Brasil, mais do que a distância, é “o tempo” (CUNHA, 2011, p.
16). Em termos de progresso (construções, indústrias, sociedade, ideias etc.),
os sertões estavam atrasados, ignorados, esquecidos, seguindo modelos de vida
arcaicos.
De certa forma, pode-se dizer que o nordeste era para as
áreas mais desenvolvidas do Brasil como o próprio Brasil em comparação a outros
países até hoje em dia. E mesmo atualmente, quem pode ajudar o país, de dentro dele
mesmo, não o faz.
Assim, o jornalista utiliza-se de seus conhecimentos e
métodos científicos para tentar entender e explicar o motivo de tais situações,
não como os românticos e simbolistas, de forma subjetiva, mas como os realistas
e os naturalistas, através de pesquisas e observações. Com isso, o escritor
propôs-se a desvendar o que é, de fato, o brasileiro, que, até então, era
desconhecido ou conhecido somente uma ou outra personalidade.
É importante ressaltar essa questão do reconhecimento,
pois o Pré-Modernismo foi uma ruptura com o olhar que se tinha sobre o
próprio Brasil, um “inconformismo cultural” (BOSI, 2013, p. 354). Porém, apenas
a visão e a vontade de descobrir e de ampliar o que já se sabia sobre o país mudaram, pois a forma continuou a mesma
utilizada até então, no caso, uma escrita realista, mas em outro tempo (o que a
faz neorrealista). Quem, depois, mudaram tanto o conteúdo quanto à forma de
escrever e descrever nosso território, seres e cultura, foram os modernistas.
O livro é dividido em três núcleos (sub-capítulos): A terra, O homem e A Luta. No
primeiro, o autor investiga as características de cada região do Brasil, desde
o sul e sudeste até o nordeste, descrevendo o sertão como uma terra ignota,
isto é, desconhecida, a qual as estradas são abandonadas, “(...) onde avançavam
os rudes sertanistas nas suas excursões para o interior (...). Não a alteraram
nunca” (CUNHA, 2011, p. 27). Terra seca, dura, difícil de vencer e de ser vencida.
É um capítulo extremamente difícil de ser lido, por conta
de seus termos científicos e rebuscados, mas é nisso que está a riqueza do
livro, pela quantidade de descrições. Vejamos, por exemplo, esta passagem:
(...) Verdadeiros oásis, têm, contudo, não raro, um aspecto lúgubre: localizados em depressões, entre colinas nuas, evoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como espectros de árvores; ou num colo de chapada, recortando-se com destaque no chão poento e pardo, graças à placa verde-negra das algas unicelulares que as revestem. (idem, ibidem, p. 29)
Além disso, note a quantidade de aliterações em [p] e de utilizações de imagens, o que forma, assim, uma prosa poética.
É neste capítulo, também, que numa passagem o autor revela-se muito à frente de seu tempo, percebendo o problema das secas contínuas
do sertão e dando uma possível solução ao sugerir que transportem as águas do
rio São Francisco para as outras áreas, além de aconselhar que façam inúmeras
barragens e muros. O livro foi publicado em 1902, mas essas ações (principalmente a transposição
do rio) só começaram a ser feitas há poucos anos — e, ainda assim, devagar.
Como todo bom escritor, Euclides deixa aberturas para o
leitor já desconfiar do que virá ao longo da obra, quando, por exemplo, diz que
só de olhar para aquele deserto do sertão, vê-se um “mar extinto” (idem, ibidem, p. 33). É o
que será exposto depois, com as ideias de Antônio Conselheiro. Assim ele
descreve toda a área por onde passou, as cidades, povoados, tudo, até chegar ao
próximo capítulo do livro.
No segundo núcleo é descrito o Homem de cada região
(jagunço, vaqueiro, gaúcho etc.). Seguindo a linha do determinismo (pois é
possível dizer que o Pré-Modernismo é uma continuação do Realismo e do Naturalismo
[BOSI, 2013]), cada local determina como os seus habitantes serão, sendo assim,
o ser humano é reflexo e fruto de seu meio. Ora, se o sertão é uma área difícil
de viver, quem consegue tal feito só pode ser alguém forte — não no sentido de
corpo, porque os sertanejos são descritos como magérrimos e quase desnutridos,
mas numa concepção de resistência à oposição.
Porém, mais do que isso, o jornalista detalha cada
característica dos povos, diferente do romântico, que entendia por brasileiro
somente os índios e os europeus, descritos de forma idealizada.
O escritor não observou empiricamente somente aquele a
quem foi ordenado observar, o sertanejo, mas a um leque de tipos de homens
brasileiros, desde as feições, passando pela personalidade até a roupa.
Interessantíssima é a comparação que ele faz e explica o porquê das roupas do
gaúcho, quase como as de festas, em razão de sua riqueza natural do ambiente,
em contrapartida às do nordestino, que mais parecem uma armadura, por conta do
couro duro. É realmente a roupa de alguém que vai à luta, rígida como o próprio
dono.
Em Os Sertões
são observadas as várias miscigenações do povo brasileiro e os seus resultados
— “(...) mulato, o mameluco ou o
curiboca, e o cafuz (...)” (idem, ibidem, p. 77). Como é dito: “(...) o brasileiro, tipo
abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima afirmado, só pode surgir
de um entrelaçamento consideravelmente complexo” (idem, ibidem, p. 77).
Como ele afirma, “(...) Não temos unidade de raça. Não a
teremos, talvez, nunca. (...) Estamos condenados à civilização. Ou progredimos,
ou desaparecemos. A afirmativa é segura” (idem, ibidem, p. 79). E é por esse mesmo motivo,
por não sermos unos, que, além da diferença de características, temos
divergências de ideias e de ações, que ocasionam os conflitos. Assim se dará o
terceiro e mais importante capítulo: A
luta.
Ainda sobre as características, é importante
lembrar como são intrigantes a fé e a crença sertaneja, como foi pontuado pelo escritor, pois ao mesmo tempo em que é
um povo cristão, crê, também, nas lendas e nos mitos, tanto africanos quanto
indígenas. Para o Euclides, um povo mestiço só pode ter uma religião mestiça.
Até então, o autor havia descrito somente o meio e os
agentes que, agora, batalhariam. É uma regra do texto jornalístico manter a
impessoalidade — e é o que faz Euclides da Cunha na maior parte do tempo. Ele
não torce pelos soldados do exército vencer, nem para os sertanejos saírem
vitoriosos, apenas os descreve. E nessas descrições percebe-se como os
soldados da república são despreparados e o quanto a imagem dos nordestinos, de
gente fraca, não passa de estereótipo.
Isso não deixa de ser críticas do escritor contra
àquilo que ele mesmo fazia parte, para quem ele trabalhava. Não é uma opinião,
mas uma constatação de que o que o governo republicano estava fazendo era
errado, barbárie e crime.
Por outro lado, Euclides utiliza-se de
técnicas literárias para narrar a história da Guerra de Canudos, não somente a
do narrador em terceira pessoa (pois isso já há no jornalismo) ou a crítica à
sociedade de sua época, mas a forma de detalhar os espaços e o tempo, cheios de
imagens, comparações e usos de reticências, para deixar aquela sensação de
reflexão, de descontinuidade da ideia. E é com este tipo de linguagem que o
autor escreve o último capítulo do livro.
Depois de derrotarem três expedições do exército
republicano e darem muitas baixas à quarta campanha — próximo ao desfecho da
batalha, os militares, “Ao fim de três horas de combate, tinham-se mobilizado
dous mil homens sem efeito algum (...)” (idem, ibidem, p. 563) —, os nordestinos persistiam
lutando.
É, sobretudo, neste momento, que os juízos
preconceituosos e condenatórios da parte inicial de Os Sertões transformam-se em admiração e respeito pelos sertanejos.
É preciso ressaltar que algumas afirmativas que Euclides
da Cunha faz no começo do livro, como chamar os nordestinos de “raça inferior”,
deve-se ao determinismo racial, aos ensinamentos e às tradições da época, as quais
ele e a maioria aceitaram sem contestar.
Porém, por considerá-los assim, inferiores, é que se
percebe que os sertanejos não mereciam nem deveriam receber toda aquela
artilharia, transformando não só a linguagem euclidiana em épica,
mas o próprio livro. É uma tragédia.
Ora, se o gênero épico narra em versos os grandes feitos de
uma nação, Euclides narra em prosa as batalhas de Canudos. Geralmente, a
narrativa épica possui heróis ou personagens fantasiosos/lendários; em Os Sertões existe a figura de Antônio
Conselheiro, líder da cidade baiana. Aliás, pela descrição feita, Conselheiro assemelhava-se muito a Jesus, personagem bíblico. Não só quanto à aparência, mas
aos ensinamentos religiosos também.
Antônio Conselheiro morreu
após ver as duas igrejas da cidade derrubadas e todos os santos destruídos
pelos tiros de canhões. Foi após ver este quadro que resolveu entrar em jejum,
porém, daí não tornou a lutar. Aliás, mesmo o texto sendo objetivo, essa
passagem é muito simbólica, pois foi nesse momento em que os sertanejos
começaram a fraquejar. Perderam o local da crença religiosa (igrejas), perderam
o líder, perderam a fé na cidade.
No entanto, as igrejas são
materiais, os corpos são materiais, a cidade é material, a fé não. Os moradores
e lutadores de Canudos ainda criam que Antônio Conselheiro voltaria. Eles
realmente acreditavam que “(...) o profeta volveria em breve, entre milhões de
arcanjos descendo (...) numa revoada olímpica, caindo sobre os sitiantes,
fulminando-os e começando o dia do Juízo...” (idem, ibidem, p. 524). Por esse motivo que
continuaram a lutar até o fim.
É por isso que mesmo sendo
um livro de teor jornalístico, o autor conseguiu mesclar com a Literatura,
dando possibilidades a inúmeras interpretações e estudos de diversas áreas
(pois além dessas duas esferas, na obra há muita informação histórica,
sociológica, filosófica, científica etc.).
Os capítulos são todos
curtos, do tamanho de crônicas (que são textos ao mesmo tempo jornalísticos e
literários), a maioria toma o formato de relato impessoal, tendo sempre ao
final um resumo das baixas das batalhas. Há, também, outros capítulos que
sempre fazem uma crítica pessoal às estratégias utilizadas pelos soldados (de
certa forma, são textos de opinião/dissertativos).
Em suma, Os Sertões é um livro muito rico, um
retrato direto do que foi a Guerra de Canudos, escrito de maneira muito
rigorosa e científica, mas que, por conta das imagens, metáforas, antíteses nas
descrições, figuras emblemáticas (como a de Antônio Conselheiro) e reviravoltas
impensáveis e inesperadas, um leitor alheio à História do Brasil pode até
pensar que é ficção, que é pura Literatura.
Como Euclides disse, na nota
preliminar: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na
significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo” (idem, ibidem, p. 16). Um homem
compromissado com a verdade de seu país. Reconheçamo-lo; conheçamo-nos.
Antônio Carlos da Silva
Siqueira Júnior é graduado em Letras, pela Faculdade de Santo André (antigo IESA - Instituto de Ensino
Superior “Santo André”), Santo André, SP.
Referências
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira.
49. ed. São Paulo: Cultrix, 2013.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011 (Saraiva de Bolso).