A
primeira vez que li este texto foi em formato de poema, de tão encantado, fui
atrás e descobri que ele era uma das falas de um personagem de uma das peças de
Shakespeare. A peça é a comédia romântica Como Gostais (As you
like it), e o personagem que a profere é um cavaleiro chamado Jaques. A
versão que vos trago é a da L&PM POCKET, 2013, traduzida por
Beatriz Viégas-Faria. Eis o monólogo:
“O mundo
inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores. Eles saem de
cena e entram em cena, e cada homem a seu tempo representa muitos papéis, suas
sete idades em sete atos. Primeiro, na infância, é um bebê choramingando e
vomitando no colo da ama. Depois é o menino em idade escolar, reclamão, sacola
a tiracolo, carinha matinal reluzente, arrastando-se feito lesma, contrariado
de ir para a escola. E então é o apaixonado, suspirando forte como uma
fornalha, com uma cantiguinha triste, triste, feita em homenagem às
sobrancelhas da amada. Depois é um soldado, cheio de extraordinários
juramentos, grandes melenas, barba farta, como um leão, zeloso pela sua honra,
pronto para executar ordens, rápido no combate, sempre buscando a fama, linda e
vazia, mesmo que na boca do canhão. E então é o juiz, barrigudo, estômago
forrado de um bom franguinho capão, olhar severo, cabelo e barba bem aparados,
cheio de máximas de grande sapiência e exemplos banais, e assim ele encena o
seu papel. A sexta idade troca de figurino; agora é Pantalão, magro e de
chinelas, óculos no nariz, bolsa de dinheiro ao seu lado, os calções da mocidade
bem guardados, o mundo vasto demais para as suas pernas débeis, sua voz potente
e viril voltando a ser aguda e infantil, um som cheio de assobios e sopros e
chiados. Na última cena, que dita o fim desta admirável história cheia de
acontecimentos, temos a volta à infância e o esquecimento, agora já sem
paladar, sem dentes, sem enxergar, sem nada.” (Jaques, ato II, cena VII – p. 62)
Este
trecho vai além da vida dos atores, pois fala de nós. É a descrição do ciclo
humano, a começar pelo simbolismo do número sete, que indica um ciclo: sete
cores do arco-íris, sete dias da semana, sete pecados mortais, etc.
É
interessante a colocação de que todos nós somos atores, pois, sendo assim,
todas as nossas ações já estavam preditas por um roteiro criado por alguém
(para alguns, Deus; para outros, a sociedade) — é o determinismo que já surge
aqui, no Classicismo, muito antes de ser usado e abusado pelos realistas e
naturalistas. Com isto, também somos chamados de falsos ou alienados, pois tudo
o que fazemos, não fazemos por vontade, mas por necessidade de cumprir nosso
dever, nosso papel; não agimos: fingimos, atuamos (sem saber).
Todos
entram e saem de cena, a cena é a vida; cada pessoa representando muitos papéis
em seus sete (o simbolismo citado) atos, suas sete idades, que são as fases da
vida. Este texto foi escrito em 1599, mas é atemporal, pois é aplicável à época
atual. Nesta chamada Pós-Modernidade, onde tudo é líquido (para
usar o termo de Zygmunt Bauman), tudo acontece de maneira muito rápida, as relações
são frágeis, podemos estar e estamos em muitos lugares, fazendo as mais
diversas ações, isto é, como Shakespeare coloca (e que depois Fernando Pessoa
faria ao se multiplicar em vários heterônimos): representamos muitos papéis em
pouco tempo.
Então
Jaques começa a descrever as sete idades, as sete fases, os sete atos da vida
humana: primeiro a infância, a criança chorando e vomitando no colo dos outros
(para quem não tem ou teve ama, foi na mãe mesmo). Há um pessimismo neste
texto, primeiro ao dizer que somos atores, ou seja, não somos livres para
agirmos como quisermos; segundo, a infância é dando problema aos outros, ao
mesmo tempo em que chorar e vomitar é problema para si mesmo também.
Depois é
a idade escolar, caminhando devagar para ir à escola, e, ainda sim, reclamando.
Notemos a infelicidade das crianças, até hoje é assim: elas não vão com gosto à
escola, vão porque são obrigadas (são os papéis sociais a serem cumpridos).
Mesmo sem ter a consciência de que a liberdade está sendo perdida, a criança
demonstra que se sente presa; ela não sabe o motivo de ter de ir estudar, só
sabe a ordem: é preciso estudar. Além disso, devemos ver como uma crítica à
Educação, pois quando é que faremos instituições competentes e que façam os
alunos se sentirem bem e com vontade de ir além, de aprender sempre mais e de serem mais (na
linguagem de Paulo Freire)?
Iniciando
a rebeldia ao ir para a escola, a próxima fase é a adolescência. Sabemos que é
a que há mais conflitos e mais desejo de liberdade, no entanto, é a fase em que
se começam as paixões mais fortes — tanto “paixões” no sentido de “sentimento
amoroso” quanto de “sofrimento”.
É preciso
lembrar que durante as paixões é que a imaginação vai mais longe, e
Shakespeare, através de Jaques, satiriza muito bem isso. Ao dizer que nessa
época os apaixonados fazem cantiguinhas tristes (podemos pensar nas serenatas
ou poemas românticos) sobre as sobrancelhas da amada, já mostra a ironia dos
quão bobos os adolescentes são. Porém, a imaginação é um ponto de fuga da
realidade — lembremos, a maior parte deste texto é pessimista. Se há vontade ou
necessidade de fuga, é porque onde se está, não está bem.
Após essa
fase vem o início da vida adulta, onde se busca a carreira. No caso é citada a
vida do soldado (porque, na época, é quando os homens se alistavam; na verdade,
até hoje é assim, mas a maioria é dispensada). É interessante que aqui é quando
o ser humano começa a zelar pela moral, isto é, além do seu papel, ele se
aprisiona a mais visões e opiniões de outrem.
Cheios de
juramentos, grandes melenas (mecha de cabelos compridos) e barba — percebamos a
preocupação com a aparência; tudo isso são amarras, são ideais de beleza que
são postos para serem seguidos. Na época, o visual do soldado era este; hoje é
o cabelo curto, sem barba, sem nada: mas ainda há um modelo que deve ser
seguido.
Jaques
sabe que tudo isso é em vão, por isso diz que os soldados (que podemos ver como
qualquer adulto em qualquer profissão que dê para “subir de cargo”) estão
sempre aptos a seguir ordens, sempre buscando a fama linda e vazia,
mesmo que morra por isso (“mesmo na boca do canhão”). É um niilismo e
pessimismo de Shakespeare, que não vê sentido (considera vazia) a busca por
essas questões (honra, fama, aparência), pois ao final elas não valem nada, são
meras interpretações.
A quinta
idade/ato/fase da vida é aquela em que o ser humano já está estabilizado, já
conquistou o que gostaria de ter conquistado e é considerado por muitos como um
exemplo a ser seguido (ele mesmo se considera assim, às vezes). Por isso Jaques
o chama de “juiz”, pois nessa idade é quando ele começa a julgar os outros,
quem está começando a carreira, o que é certo ou errado, bom ou ruim, etc. Mas
agora, depois de velho, a preocupação com a aparência muda; não tem mais o
cabelo grande nem barba cheia, mas curtos. Considera-se mais experiente, mais
inteligente, mais sábio (sabemos que na maioria das vezes nem o é). Na verdade,
agora ele é mais moralista.
Depois
disso começa o declínio do ser humano, Pantalão (bobo), magro e de chinelas, óculos
e bolsa de dinheiro ao lado, é a fase da velhice. Como é dito, o mundo é grande
demais para as suas pernas fracas, a voz volta a ser aguda como a das crianças,
cheia de assobios, sopros e chiados, isto é, quase não se fala, sai mais ar do
que voz.
É
interessante a comparação do velhinho, que quase não fala mais, com a infância
(“sua voz potente e viril voltando a ser aguda e infantil”), porque a palavra
“infância”, etimologicamente, já significa “aquele que não fala; aquele que é
incapaz de falar”. Maria Rosa da Costa (2000), em sua dissertação de
pós-graduação, nos traz o significado original da palavra:
Da partícula negativa latina in,
‘não’, usada como prefixo, e do latim fans, fantis, particípio presente de
fari, ‘falar, ter a faculdade da fala’, forma-se o adjetivo latino infans,
infantis, ‘que não fala, que tem pouca idade, que é ainda criança’. O adjetivo
infantilis, ‘que diz respeito à crianças, infantil’, e o substantivo infantia,
‘incapacidade de falar, dificuldade em se exprimir, meninice, infância’, são
derivados latinos de infans, infantis. (DICIONÁRIO ESCOLAR
LATINO-PORTUGUÊS, 1956, apud COSTA, 2000, p. 23).
O idoso,
além de ficar bobo como as crianças, também necessita de cuidados, pois seu
corpo é tão frágil quanto os de seres em formação, pois já está em
desconstrução. Daí a comparação.
Por fim,
a última cena do ator, do ser humano, é aquela em que ele volta à infância e ao
esquecimento, isto é, volta ao início, quando ele era nada/ninguém. Este trecho
nos lembra uma passagem do livro O ano da morte de
Ricardo Reis (1988), do escritor Saramago, quando o personagem
Fernando Pessoa diz a Ricardo Reis que depois que morremos não desaparecemos
por completo: “(...) acho que é por uma questão de equilíbrio, antes de
nascermos ainda não nos podem ver, mas todos os dias pensam em nós, depois de
morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias vão nos esquecendo um pouco
(...)” (p. 80).
Mesmo sem
paladar, sem dentes, sem enxergar, sem nada, ainda estamos atuando, ainda
estamos vivendo o último ato, ainda fazemos parte da peça e do cenário. Como?
Nas falas do outro, quando citam algo que falamos ou falávamos, quando
mencionam histórias em que estivemos, quando mostram fotografias, quando se
utilizam de algo que criamos. Esta última parte é a única otimista.
As
pessoas passam a vida toda atuando, uma após a outra, sem saber o que estão
fazendo; Shakespeare/Jaques notou o ciclo de atuações, ele foi mais do que
espectador, foi crítico e teórico. Ele criou essa peça que sobrevive até hoje,
nos ajudando a sermos mais do que atores, mas espectadores, críticos e
analistas também. Não importa quem fez o roteiro, o importante é a chance de
atuar; somente tendo a chance de subir ao palco, de estar na vida, é que
podemos improvisar e recusar o que nos é dado. Shakespeare ainda está aqui
entre nós, pois a sétima idade/sétimo ato/sétima fase nunca termina. Como ele,
além de ator, também sejamos criadores de nossos próprios papéis.
Referências
COSTA,
Maria Rosa da. Eu também quero falar: Um estudo sobre infância,
violência e educação. Rio Grande do Sul, 2000. Dissertação
(Pós-graduação em Educação) – Universidade Federal Do Rio Grande do Sul,
2000. Disponível em:
SARAMAGO,
José. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.
SHAKESPEARE,
William. Como gostais. São Paulo: L&PM POCKET, 2013.