Logo de
início, nota-se a percepção do eu-lírico quanto à espécie de novilíngua: “Eu
presto atenção no que eles dizem / mas eles não dizem nada”. A novilíngua,
idioma fictício do governo autoritário de “1984”, livro de George Orwell, “é o
processo de manipulação da linguagem que invade o campo político, esvazia o
discurso e, como pesadelo de Orwell, instrumentaliza a esfera pública”. Todos
sabemos o quanto os políticos enrolam em seus discursos, mudam de assunto,
utilizam frases prontas, frases de efeito (às vezes contraditórias), enfim,
“falam sem falar”, com intuito de se distanciarem do assunto principal. É a novilíngua, muito utilizada por
ditadores.
Em seguida,
o eu-lírico diz que Fidel Castro e Pinochet dão risada de nós, pois não fazemos
nada, e que ele já começa a achar normal que algum boçal/ignorante — fascista?
— atire bombas na embaixada. É que a novilíngua é “capaz de minar o hábito de
ouvir, a atenção e a concentração, formando pessoas que deixam de pensar a
política como uma esfera de atuação em seu cotidiano” e assim, acostumam-se,
apenas seguem o que é dito, acreditam que todos os discursos são iguais e
mentirosos, alienam-se.
Os nomes
Fidel e Pinochet podem ser trocados por vários outros, aqui mesmo, no Brasil,
temos tantos políticos que caçoam de nós, que criam leis que beneficiam a eles
e nos prejudicam, no entanto, nós não fazemos nada para combatê-los; ou ainda,
nem precisa ser político, mas líderes religiosos ou certos “artistas”, que
soltam seus ideais e passam por cima de leis e nada lhes acontece.
Para quem
não sabe, Fidel Castro foi o revolucionário cubano, líder ao
lado de Che Guevara na Revolução Cubana, que tirou o ditador Fulgêncio Batista
do poder e que implantou o Comunismo. Embora Cuba tenha melhorado em
muitos sentidos desde então, Fidel Castro continuou
sendo autoritário. Assim, o eu-lírico critica a “extrema esquerda”.
Por outro
lado, Augusto Pinochet, comandante do exército chileno, foi quem liderou o
golpe militar de 1973 e implantou uma ditadura sobre o Chile. Autoritarismo e
fascismo resumem o que foi o “governo” de Pinochet. Assim, o eu- lírico critica
a “extrema direita”.
Em seguida,
chega o refrão, e é nesta parte em que o eu-lírico, conscientemente, aproxima-se
da novilíngua, distanciando-se totalmente do discurso proferido na
primeira estrofe.
Se no
primeiro verso ele reclama que presta “atenção no que eles dizem, mas eles não
dizem nada”, agora, quem não diz nada é o próprio eu-lírico: “Se tudo passa,
talvez você passe por aqui / E me faça esquecer tudo que eu vi / Se tudo passa,
talvez você passe por aqui / E me faça esquecer”.
Além de
fugir do assunto político que estava sendo discutido, neste momento o eu-lírico
canta mais devagar, repete algumas frases e ainda se utiliza de um jogo de
palavras que faz o refrão ser a parte mais memorável da música. Observemos o
jogo de palavras usado, destacadas as sílabas que o compõem: SE – pasSA – voCÊ
– pasSE – faÇA – esqueCER – SE – pasSA – voCÊ – pasSE – faÇA – esqueCER.
Não é à toa
que a maioria das pessoas lembra somente desta parte da música, esquecendo-se
totalmente (ou nem percebendo/refletindo) o teor crítico do resto dela. E isso
acontece na maioria das músicas.
Passando o
refrão, o eu-lírico volta com suas críticas e diz que “toda forma de poder é
uma forma de morrer por nada”, pois “toda forma de conduta se transforma numa
luta armada”. Aqui se mostra quase um niilismo do eu-lírico,
pois este não vê sentido em forma alguma de poder, seja de “direita" ou de
"esquerda”, além disso, há a denúncia de que todo extremismo causa
revoltas/ lutas armadas.
Ainda nesta
parte, é importante perceber a construção dos versos, que é bem composta. “Toda
forma de poder é uma forma de morrer por nada” possui uma rima interna, com as
palavras “poder” e “morrer”, que, aliás, são de classes gramaticais diferentes
(substantivo e verbo), o que cria uma rima rica. Outra rima interna acontece em
“Toda forma de conduta se transforma numa luta armada”, com as palavras
“conduta” e “luta”. Isso mostra o cuidado e a habilidade do letrista, no caso,
Humberto Gessinger, já no primeiro álbum.
Termina-se
essa estrofe dizendo que “a história se repete / mas a força deixa a história
mal contada”, até porque, geralmente quem sobra para contá-la é o vencedor. Ou,
como disse Napoleão (que, por ter ficado na História, pode ser considerado um
vencedor, mesmo após sua última derrota): “A História é um conjunto de mentiras
sobre as quais se chegou a um acordo”. A força e o autoritarismo deformam os
fatos e criam ideologias, por sua vez, camufladas por discursos.
É interessante
notar que o eu-lírico, ao terminar de cantar a última palavra da estrofe,
“contada”, fica repetindo as duas últimas sílabas: “ta” e “da”, como se fosse
um eco, assim como é dito que a história se repete, mas mal contada, contada
pela metade, contada só o final. Outra interpretação possível é a de que essas
duas últimas sílabas, ao serem repetidas, conotam uma onomatopeia, o som de uma
arma, representando o tipo de “força” que “deixa a história mal contada”.
Depois
disso, volta o refrão que nada tem a ver com o conteúdo da música, agora com
mais de uma voz e cantado mais alto. Talvez, implicitamente, esteja mostrando
que para a fuga há mais forças/pessoas/vozes, mas para a crítica...
Por fim,
depois de tantos indícios que o eu-lírico já tinha dado, ele fala do fascismo.
Diz que o “fascismo é fascinante / deixa a gente ignorante e fascinada / É tão
fácil ir adiante e se esquecer / Que a coisa toda tá errada / Eu presto atenção
no que eles dizem / Mas eles não dizem nada”.
Além de ser
real, essa estrofe é atual. Ora, o fascismo, a violência, o poder, realmente
atraem/fascinam. Dão uma resposta simples e rápida para problemas difíceis e
complexos. Assim nascem as ideologias. O Nazismo, por exemplo, deu uma resposta
muito simples e rápida para todos os problemas na Alemanha: extermínio de
judeus. Disseram, na época, que o problema de toda a situação ruim (seja
econômica, cultural etc.) da Alemanha era a presença dos judeus, sendo assim, a
solução era somente exterminá-los. Não houve autocrítica nem diálogo,
apenas imposição e eliminação de um ao outro. Hoje, ataques às minorias (defendidos
por pessoas importantes, inclusive!) continuam acontecendo, sem reflexão nem
diálogo. É o fascismo em escala menor, porque não oficializado.
Voltando à
novilíngua, ela foi e ainda é muito utilizada por ditadores e fascistas, tanto
que antes de ela possuir esse nome, era referida como “linguagem stalinista”
(Stalin, como se sabe, foi um ditador da União Soviética). A ideia de
punição/aniquilação/destruição, isto é, o fascismo, fascina e “deixa a gente
ignorante”. Dão-se respostas simples e rápidas, porque é “tão fácil ir adiante
e se esquecer que a coisa toda está errada”.
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Não nos deixemos enganar
pela linguagem, não nos deixemos cair em ideologias; pensemos antes de agir,
porque ao agirmos sem pensar, se não for por emoção e desatenção, é por
intenção, é por pretensão, é por ação imediata, ao invés de reflexão, opinião e
ação sensata.
Engenheiros
do Hawaii é uma banda brasileira de rock, liderada por Humberto Gessinger,
criada em 1984, esteve em atividade até 2008, ano em que a banda entrou em
“pausa” e está até hoje.
REFERÊNCIAS