Shakespeare viveu no
período do Classicismo, uma época em que os artistas buscavam inspiração nos
elementos da mitologia greco-romana. Este fato aconteceu por os textos
clássicos terem sido publicados em maior escala, por causa da invenção da
imprensa, e os pensadores quererem novos ares, até pelo momento de
descobrimento de novas terras, povos e culturas, com as navegações.
Sobre os gregos, como
se sabe, eles buscavam o ideal, a perfeição, o culto à forma, a padronização, o
belo e a racionalização. O teatro era dividido em dois grandes gêneros:
Tragédia e Comédia. Otelo (2014) é
uma tragédia (final triste que consagra o herói) que possui todos esses
tópicos.
A peça se passa, na
maior parte do tempo, nas ruas de Veneza (cidade italiana) e em um único
momento, num porto de Chipre (ilha do mar Mediterrâneo). A obra narra a história
de Otelo, um mouro a serviço de Veneza, um dos homens mais respeitados do
exército, e sua esposa Desdêmona, filha de Brabâncio, que é um senador
veneziano.
Dentre os servos de
Otelo há Iago, um homem cruel, mentiroso, ganancioso e inteligente, mas que usa
sua esperteza para o mal. É bom lembrar que a racionalização é um dos elementos
valorizados pelos gregos, logo, pelos classicistas. Ao ver que o posto que
queria tomar foi assumido por Cássio, que é outro servo de Otelo, Iago deseja
se vingar de todos: de Cássio, por ter conseguido o cargo que ele queria; de
Otelo, por ser negro, estrangeiro, casado com uma das mais belas mulheres
locais e por desconfiar de que o mouro tenha dormido com sua esposa, Emília; e de Desdêmona, por deseja-la e ela ter
aceitado se casar com Otelo.
Utilizando-se de toda
sua capacidade argumentativa e persuasiva, Iago engana todos, fazendo com que
Otelo despeça Cássio de seu cargo (por causa de uma briga arranjada com outro
servo de Iago); depois, faz com que Otelo desconfie de que Cássio possua um
relacionamento extraconjugal com sua mulher, Desdêmona. E após mais armações de
Iago, Otelo termina louco de ciúme e mata sua própria esposa.
A obra é dividida em
cinco atos e quinze cenas. Nela, são apresentadas algumas formas de
preconceito, uma crise política e visões (algumas, distorcidas) sobre honra,
traição e amor.
Sobre o preconceito
presente na peça, é possível destacar o racial, o religioso e o xenofóbico. Como
se sabe, a Inglaterra é uma ilha, portanto, um lugar isolado dos outros países
europeus. Isso é refletido na sua literatura, na qual, muitas vezes, quando
aparece algum estrangeiro, é observado com maus olhos e desconfiança. É o caso
de Otelo, que não é bem visto por Iago e outros personagens, por
ter vindo de fora (a raiva de Iago por Cássio também é justificada com esse
argumento: Cássio subiu de cargo e era florentino, enquanto ele, veneziano,
continuou no que estava).
O preconceito racial,
por sua vez, é presente em quase toda a obra. É fácil encontrar trechos em que
outros personagens zombam de Otelo por causa de sua cor, mesmo que ele seja de
uma classe superior: “Iago – (...)
Neste momento, um carneiro velho e preto está cobrindo sua ovelhinha branca.”
(p. 23). Nota-se, nesse trecho e em vários outros, a comparação de Otelo aos
animais. Quando Iago profere essas frases de cunho erótico, essa analogia é frequente.
O preconceito religioso
também é percebido nas falas de Otelo: “(...) eu agarrei o cão peçonhento
circuncidado pelo pescoço e o apunhalei assim” (p. 191). A circuncisão é uma
operação que retira parte do prepúcio do corpo masculino. Esse tipo de cirurgia
é feito pelos judeus para serem confirmados na religião. No Novo e no Velho
Testamentos, sempre que é usado o termo “circuncidado”, faz-se referência aos
judeus. Há outros momentos em Otelo
nos quais Iago faz comparações do cristianismo com outras religiões, sempre
rebaixando-as. Dialeticamente, por ser escrita no período do Classicismo, há
várias expressões exaltando alguns deuses mitológicos ao mesmo tempo em que o
Deus cristão é citado.
No campo social, a peça
demonstra haver certa instabilidade e crise política no país. Em um trecho,
Brabâncio (pai de Desdêmona) xinga Iago de “canalha”, ao que este devolve,
ironizando, chamando-o de “senador”: “Brabâncio
– Você é um canalha. / Iago – E você
um senador!” (p. 17). Além disso, há conversas de alguns personagens sobre uma
guerra e ameaça do Império Otomano.
Ademais, a obra
demonstra algumas questões sobre amor e traição: o que é o amor? Do que ele é
capaz? Quando o sentimento deixa de ser amor e torna-se ciúme? Até que ponto o ciúme (representado por Otelo) pode chegar? Qual o preço por uma traição?
Claro que são perguntas
subjetivas, mas na obra elas possuem muito peso, chegando ao ponto de haver
mortes (de inocentes!), segundo alguns personagens, “por uma questão de honra”,
que na verdade é vista através de uma concepção patriarcal, a qual o homem
sempre manda na família e na mulher.
As mulheres, por sua
vez, nem podiam encenar na época de Shakespeare, então, eram representadas por
homens vestidos como mulheres. Na obra, há três personagens femininas:
Desdêmona (que representa a mulher ideal — para os padrões gregos), Emília
(mulher de Iago) e Bianca (uma prostituta). Cada uma representa uma classe
social diferente, respectivamente: aristocracia, "classe média" e baixa. Embora sejam
de camadas sociais distintas, todas são submissas aos seus maridos (no caso de
Bianca, ao seu amante Cássio).
Em suma, Otelo continua sendo uma história atual
neste mundo violento, ciumento, ganancioso, preconceituoso, racista e ainda
machista. Os temas discutidos por Shakespeare são universais, por isso é um
autor que está sempre em voga.
REFERÊNCIAS
SHAKESPEARE, William. A tragédia de Otelo: o Mouro de Veneza. Tradução de Marilise
Rezende Bertin. São Paulo: Matin Claret, 2014. (Coleção A obra-prima de cada
autor, v. 123).