Quando se fala em anime feito em CGI (computer
generated imagery), todos já olham estranhamente, mas não deve ser o caso
de Beastars, de 2019, produzido pelo estúdio Orange,
que só trabalha com esse tipo de técnica. Adaptação do mangá homônimo de Paru
Itagaki, terminada agora a primeira temporada, a obra consagra-se como uma das
melhores do ano na cena, por diversos motivos.
Beastars passa-se num universo de animais humanizados,
isto é, antropomórficos, predominantemente dentro de uma escola, a Cherryton,
numa sociedade onde é proibido que carnívoros devorem herbívoros. Mais do que
isso, toda ação gira em torno do clube de teatro e o protagonista é um lobo que
esconde ao máximo a sua natureza. Já deve ter ficado claro que, como as
fábulas, o anime metaforiza a vida em comunidade e engloba questões
psico-filosóficas, não é?
Antes de tudo, é preciso lembrar que a sociedade é
um lugar onde, segundo Freud, pai da psicanálise, “ao menos todos capazes de
viver em comunidade — contribuem com o sacrifício de seus instintos, e que não
permite — de novo com a mesma exceção — que ninguém se torne vítima da força
bruta” (FREUD, 2011, p. 40-41). Ou seja, é necessário reprimir os seus sentidos
animais para se viver socialmente. Ora, essa é a premissa da vida civilizada,
do anime de Beastars, e que é quebrada logo no começo do primeiro
episódio: ninguém sabe quem foi o malfeitor, mas um animal foi devorado na
escola.
Essa situação deixa todos os herbívoros em pânico
e, ao mesmo tempo, revela um preconceito sobre os carnívoros que, por sua vez,
sentem relativa raiva dos primeiros e da lei que os defende, o que lembra o
pensamento nietzschiano de que a sociedade é um local em que uma massa de
fracos vence os fortes (NIETZSCHE, 2009).
Além disso, não se pode esquecer de que o anime
foca no grupo de teatro, isto é, uma arte que busca o Belo através da atuação;
de certa forma, do fingimento. Como disse Shakespeare, mestre da dramaturgia:
“O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores”
(SHAKESPEARE, 2013, p. 62). A representação, tanto em Beastars quanto
na vida real, continua além dos holofotes, já que não se pode fazer nem falar
tudo o que se deseja à luz do dia, em qualquer que seja o contexto social, pois
há regras implícitas e explícitas que norteiam e “vigiam” seus usuários e punem
quem as infringe (FOUCAULT, 2014).
Como não poderia deixar de ser, embora não pareça,
toda esta pressão e vigilância causa sofrimento às pessoas: “(...) privar um
instinto de satisfação (...) É algo que tem seus perigos; se não for compensado
economicamente, podem-se esperar graves distúrbios” (FREUD, 2011, p. 43). É o
caso do protagonista da história, o lobo Legoshi, que, diferente de tudo o que
se espera (inclusive dentro da obra), não é violento nem se exibe pela sua
força, mas é gentil e calmo. Todavia, como já revela a abertura do anime, uma
noite — o que é simbólico, horário que a razão diminui um pouco, as
subjetividades e vontades vêm à tona —, o lobo se deixa levar pelos instintos e
quase devora uma coelha (pela qual, depois, ele se apaixona).
Essa personagem, Haru, não é bem vista pelas outras
coelhas e mesmo por alguns espectadores, porque ela “fica” (faz sexo) com
qualquer animal, mesmo de outras espécies, como o cervo e líder do teatro,
Louis, ou como quando já ia se entregar ao Legoshi, mesmo sem conhecê-lo, antes
de ele fugir. Beastars é muito competente nisso, por juntar,
ao mesmo tempo, questões humanas (morais) e animais (instintivas).
No anime, Haru diz que cede a todos por medo, pois
sabe que é fraca e frágil, então, se ser usada por outro animal lhe permitirá
continuar viva, ela deixará, mesmo que não haja amor envolvido. É triste e
reflexivo. Por outro lado, ela também diz que é só durante a relação sexual que
todos são iguais. Não é nem preciso dizer que “tirar a roupa” e “ficar nu” é
algo tanto literal quanto metafórico. Sem contar que “o amor sexual (genital)
proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satisfação, dá-lhe
realmente o protótipo de toda felicidade” (idem, ibidem, p. 46). Daí, o
preconceito que mascara a possível inveja inconsciente das outras coelhas sobre
Haru e, na vida real, das pessoas “tradicionalistas/reacionárias” quanto à
liberdade sexual dos outros. Novamente, pode-se lembrar de Nietzsche e a moral
dos fortes e fracos.
O anime aborda, então, um triângulo amoroso entre
Legoshi, que ora se move pelos sentimentos, ora pela racionalidade, Haru, que
se deixa levar mais pelos instintos, e Louis (o cervo, líder e ídolo da turma
do teatro), que tenta ao máximo esconder seus medos e fraquezas de herbívoro e
mostrar uma imagem de forte e elegante — muito coerente, já que é o maior
representante da arte de atuar. O lobo gosta da coelha que gosta do cervo.
Situação complicada, difícil de lidar, que evoca questões psicológicas.
Por falar nessa área de estudo, há uma espécie de
“psicólogo”, um panda que vive fora da escola, na cidade, no “mundo dos
adultos”, ou, como ele mesmo diz, de quem aprendeu a dominar os seus instintos
e que sabe que, de qualquer forma, há uma fuga, no caso, o “mercado negro”,
local em que é possível comprar e vender carne, onde crimes acontecem, todos
sabem, mas não fazem nada para impedir, apenas afastam as crianças e os
estudantes. Nada mais verossímil. Se quiser aproximar da realidade de
cá, troque “carne” por “drogas” ou “prostituição”.
É esse panda que ensina a Legoshi que, na verdade,
o que ele sente pode não ser amor, mas somente desejo; que o medo que ele tem
de perder a coelha para alguém é, no fundo, medo de perder a própria presa, seu
objeto de prazer. É impossível não lembrar de Nietzsche: “Amamos, em
definitivo, somente nossas inclinações e não aquilo a que nos inclinamos”
(NIETZSCHE, 2013, p. 111). Isto é, ama-se o desejo, não o desejado; gosta-se
apenas dos sentimentos e das sensações boas que o outro pode causar, mas não
própria e especificamente do causador, tanto que, quando alguém deixa de ser
fonte de prazer, é trocado por outra pessoa.
Ainda assim, Beastars não se trata
apenas de romance. Há ação, outros personagens interessantes, lutas/brigas
(obviamente, sem poderes e exageros, pois a obra, como já deve ter ficado
claro, não é um shounen), cenas cômicas, diálogos reflexivos e
poéticos e momentos muito tensos, tudo feito com bastante cuidado, tanto na
animação e nos enquadramentos, quanto nas cores e na trilha sonora. Aliás, a
abertura é um show à parte, com imagens em stop-motion (aquela
técnica de sequência de fotografias de objetos para simulação de movimentos) e
música jazz, bem ao estilo das openings de Cowboy
Bebop (1998) e Baccano! (2007), embora sejam
instrumentais.
(Abertura de Beastars)
Se fosse para apontar um ou outro “defeito” nesta
primeira temporada, pode-se falar que alguns episódios soam desconectados,
como, por exemplo, um no qual muito do tempo é gasto descrevendo ações e
pensamentos de uma galinha. O capítulo é interessante e engraçado, tem seus
próprios questionamentos e a personagem até possui relação com Legoshi, mas soa
relativamente desnecessário.
Outro ponto que parece desconexo é a falta de
investigação sobre a morte que acontece no começo da história: ninguém sabe como
foi, quem praticou o assassinato, as consequências etc. De vez em quando, até
mencionam o fato, mas em boa parte do anime é esquecido. Uma hora, retomam, mas
leva tempo. De qualquer forma, são apenas 12 episódios e esses detalhes não
estragam a obra. Na já confirmada segunda temporada, ao menos a parte do crime
deve ser melhor trabalhada.
Em resumo, Beastars foi uma grata
surpresa neste 2019. Por vezes, nem parece que é feito em CGI. Repleto de
metáforas e levantamentos sócio-psico-filosóficos, é uma obra adulta que merece
atenção não apenas pelo seu conteúdo, mas pela forma como aborda tudo, afinal,
não se vê narrativas com animais antropomórficos toda hora, quase uma fábula
moderna, mas sem o clichê maniqueísta de Bem e Mal, “final feliz” (pelo menos
por enquanto) e lição de moral. Um verdadeiro trabalho artístico. Que venha a
segunda temporada.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.
24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização.
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics & Companhia
das Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do
Mal. Tradução de Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Editora
Escala, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral: uma
polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
SHAKESPEARE, William. Como gostais,
seguido de Conto de inverno. Tradução de Beatriz Viégas-Faria.
Porto Alegre, RS: L&PM POCKET, 2013. (Coleção L&PM Pocket, v. 727).