sábado, 20 de junho de 2020

Análise do conto “Rashômon”, de Ryûnosuke Akutagawa


Atenção: Se você não conhece o conto "Rashômon", é possível lê-lo neste outro blog: http://contosquevalemapena.blogspot.com/2015/02/33-rashomon-r-akutagawa.html, ou, se preferir baixar o livro inteiro em PDF, veja este outro link: https://docero.com.br/doc/nes10

Breve introdução ao gênero conto e ao escritor Akutagawa

O conto é um dos gêneros literários mais populares contemporaneamente, pelo seu caráter breve, relativamente objetivo e verossímil, pela aproximação dos (poucos) personagens através de diálogos e pela fácil assimilação dos acontecimentos, por meio do tempo cronológico (sempre seguido). Outra característica do conto é que ele tem apenas uma célula dramática, isto é, apenas um clímax, sempre no final do texto.

Ryûnosuke Akutagawa é considerado por muitos como o “Pai do conto japonês”, por ser o primeiro a se preocupar com a estética do gênero e a introduzi-la à literatura japonesa, influenciando diversos escritores. Seu nome, inclusive, intitula um dos maiores prêmios literários do Japão.

(Ryûsosuke Akutagawa)

Nascido no final do século XIX (1892), Akutagawa teve uma vida breve, pois se suicidou aos 35 anos (1927). Sua obra é marcada por reflexões melancólicas e/ou pessimistas sobre o homem, a sociedade e a verdade. O escritor, mesmo que de modo sutil, o que é uma característica da cultura japonesa, sempre revela aspectos mesquinhos do ser humano, como a hipocrisia e o egoísmo, ambientados em diversos períodos históricos do Japão — cada um, inclusive, descrito coerentemente de acordo com a realidade material e espiritual da época, o que demonstra o cuidado de pesquisador que Akutagawa tinha.

“Rashômon” (1915), um dos seus contos mais famosos, que já até inspirou filmes e histórias em animes, é baseado numa coletânea de narrativas do século XII, a “Konjaku monogatarishû”. Antes que se diga qualquer coisa, é necessário saber que faz parte da cultura literária japonesa pegar algum trecho de uma obra já escrita e usá-lo para inspirar ou reinterpretá-lo num texto novo, a tradição “Honkadori”. Akutagawa foi mestre em utilizar breves histórias antigas e aprofundá-las, deixando-as muito mais ricas, complexas e com o seu próprio estilo, a saber, crítico, irônico e belo esteticamente.

A seguir, uma análise do conto Rashômon, com foco nos possíveis significados de sugestivas metáforas através de imagens simbólicas e até mesmo do estilo narrativo do autor.
Análise

Todo texto começa a ser lido e interpretado a partir da sugestão do título, no caso, “Rashômon”, que nada mais é do que um portal, a entrada para a cidade de Quioto, na época, a capital do país. Ou seja, a história acontece num lugar de encontros, de entradas e saídas, numa “fronteira”, numa divisa, num limite entre um começo e um fim. Isso, inclusive, é importante para o reforço da significação do conto. A primeira frase já rima com o título: “Era num entardecer” (AKUTAGAWA, 2008, p. 25). De novo: uma fronteira, uma divisa, agora, entre o dia e a noite.

Além desse microcenário (o portal), o macro, a cidade, Quioto, já “sofrera seguidas calamidades: terremotos, redemoinhos, incêndios e fome” (idem, ibidem, p. 25), o que, então, remete aos tempos difíceis que o povo, até mesmo o protagonista do conto, um servo de baixa condição, estava passando. Mais do que isso, o clima era de chuva, o que pode indicar o estado mental conflituoso pelo qual o servo passava, tanto o é que o próprio narrador quebra a quarta parede e utiliza-se da metalinguagem para explicar: “o tempo chuvoso contribuía sensivelmente para a disposição de espírito daquele homem da era Heian” (idem, ibidem, p. 27). Esse período histórico japonês, Heian, que fique claro, durou do ano de 794 a 1185.

É nesse contexto que o personagem principal vive, um pobre servo, numa terra desolada, onde, segundo o narrador, até mesmo estátuas de Buda e outros objetos de culto budista eram destruídos para aproveitar a madeira e/ou outras partes que podiam ser vendidas. Ato significativo: a vida física, o lado material, acima da vida espiritual. Homens sem transcendência. Há várias passagens no conto em que o narrador iguala os personagens a animais, seja comparando-os com características, seja colocando-os lado a lado. Embaixo do portal, por exemplo, o servo só tem a companhia de um grilo, para se ter noção da solidão naquele lugar e daquele ser.

Ainda mencionando os animais, é mencionado que como o portal estava abandonado, “raposas e texugos começaram a se abrigar ali. E também ladrões” (idem, ibidem, p. 26). Muito perspicaz da parte do Akutagawa, que já deixa dicas para bons leitores do que pode vir a acontecer na história. É explicável: o servo, agora sem trabalho, não sabe o que fazer da vida e começa a pensar em se tornar ladrão, mas essa informação só chega mais tarde para quem lê; por hora, só há essas sugestões.

Todo o cenário é descrito de maneira obscura, cheio de detalhes feios, para demonstrar a decadência do lugar e que será o meio em que o protagonista entrará, moral e fisicamente. Além dos corvos (que podem representar o mau agouro), que “Vinham, obviamente, alimentar-se da carne dos mortos abandonados (...) podiam-se notar seus excrementos pontilhados de branco sobre os degraus de pedra quase em ruínas” (idem, ibidem, p. 26). Como se não bastassem esses aspectos sombrios e desagradáveis dignos da descrição de um Edgar Allan Poe, o servo estava “sentindo-se incomodado com a enorme espinha que lhe aparecera na face direita” (idem, ibidem, p. 26). Essa espinha, além de deixar o personagem mais feio, pode representar o seu conflito interior, algo que lhe incomodava e que estava prestes a “estourar”.

Agora, um detalhe interessantíssimo do conto: Akutagawa utiliza-se da metalinguagem e de uma espécie de quebra da quarta parede para refletir sobre a verdade da história. Observe:

Escreveu o autor anteriormente: ‘Um servo de baixa condição esperava a chuva passar’. Entretanto, mesmo que a chuva passasse, o servo não teria, na verdade, nada a fazer. (...) Acontece que fora dispensado havia quatro ou cinco dias. (...) Seria, portanto, mais adequado dizer ‘Um servo de baixa condição, preso pela chuva, estava desnorteado, sem saber para onde ir’ (idem, ibidem, p. 26-27).

Vê-se, então, curiosamente, um narrador que se autocorrige para passar a informação correta a quem lê, isto é, uma busca pela verdade, que é um dos temas abordados nas obras do escritor japonês. Mais ainda: talvez, esse ato revele a efemeridade das coisas e da verdade perante novas informações, o que de fato acontecerá mais à frente.

Finalmente, descoberto o recente passado do servo, apresenta-se o conflito: tornar-se ou não se tornar um ladrão? “Quando se tenta resolver uma questão insolúvel, não há tempo para escolher os meios. Se demorasse muito na escolha, o servo certamente terminaria morrendo de fome” (idem, ibidem, p.  27), todavia “ele não tinha coragem suficiente para aceitar de forma positiva a resposta inevitável à questão: ‘A única saída é tornar-me ladrão’. (idem, ibidem, p. 27). Pronto, está posto o dilema, o eterno shakespeariano: “Ser ou não ser?”. É errado roubar? Sim. E se não for por maldade, apenas para não morrer de fome? Não. É a verdade relativa, tema comum de Akutagawa. Não há moral quando se trata de sobrevivência.

É importante prestar atenção às cores da roupa do servo também: “a gola azul-escura que envergava sobre a roupa amarela” (idem, ibidem, p. 28). Azul, cor escura, amarelo, clara, mais um conflito, tal como se tornar um obscuro ladrão ou continuar um servo moralmente correto, tudo isso somado ao entardecer, que não é noite nem dia, embaixo de um portal, local de encontros, de atritos. Quantas rimas semânticas. Do mesmo modo, é possível pensar na sugestão: a parte azul da roupa, escura, está acima da clara, o que pode indicar a preferência final do protagonista.

Ainda sobre descrições, é interessante perceber como o narrador tece comentários sobre os movimentos do homem: “o corpo encolhido como um gato (...) Abafando seus passos como uma lagartixa” (idem, ibidem, p. 28-29). Duas interpretações sobre as representações: em primeiro lugar, a desumanização do personagem, agora comparado a animais (e isso já havia sido feito ao descrever o portal, onde ladrões e animais se refugiavam); em segundo lugar, a ressaltada qualidade desses seres, gato e lagartixa, é a forma silenciosa de se mover, necessidade para quem deseja ser ladrão, atributo que o servo já possui.

A desumanização continua, pois quando o homem sobe as escadas do portal, para se proteger do frio, encontra cadáveres de homens e mulheres, nus e vestidos, “sobre o assoalho, como bonecos de barro, as bocas abertas, os braços estirados, fazendo até duvidar que um dia tivessem sido humanos” (idem, ibidem, p. 29). No meio dos corpos, ele vê “uma velha de aparência simiesca” (idem, ibidem, p. 29). Novamente, uma adjetivação animalesca. Aparentemente, através da narração, fica a mensagem de que na pobreza, mais do que perder a religiosidade, o ser humano perde a humanidade.

Essa velha arrancava os fios do cabelo de um cadáver, “exatamente como uma macaca catando piolhos do filhote” (idem, ibidem, p. 30). Observe, de novo, como o narrador desumaniza o ser humano, colocando a velha como uma macaca mãe. Além disso, atente-se à aliteração obtida na tradução do conto: “COMO - u - MAMA – CA – CA - CA - tan – do”. O que, por um lado, pode parecer um vício de linguagem, um cacófato, algo sonoramente feio de se ouvir, por outro lado pode sugerir até mesmo sons parecidos e repetidos de animais: CO – MO – MA – MA - CA – CA - CA. Se foi trabalho proposital na tradução, merecem parabéns; se foi coincidência, ótima surpresa.

Ao ver aquela cena grotesca, o servo, demasiadamente humano, começa a odiar a velha, quer dizer, como se autocorrige novamente o narrador,

Não, não seria exato dizer “contra a velha”. Na verdade, o que a cada minuto se tornava mais forte era uma repulsa contra todos os males. Se naquele instante alguém lhe propusesse, outra vez, o dilema que antes o atormentara — morrer de fome ou tornar-se ladrão —, não hesitaria mais em escolher a morte pela fome. (idem, ibidem, p. 30)

Então, o homem, que estava na dúvida entre se tornar ladrão ou não, desistiu de se transformar num malfeitor, o que revela a efemeridade dos sentimentos humanos, tema caro ao Akutagawa. O narrador, irônico, crítico, não perde a chance: “Obviamente, o servo já nem recordava que, há poucos minutos, tencionava tornar-se ladrão” (idem, ibidem, o. 30). O homem, que não conhecia a verdade sobre aquele ato da velha, julgou-a e partiu para cima dela. De novo, a metalinguagem: “O autor nem precisa dizer o susto que ela levou” (idem, ibidem, p. 31).

Depois de dominá-la, ela, fraca, “Quais pés de galinhas, seus braços eram somente pele e osso” (idem, ibidem, p. 31) — mais uma vez, animalização do ser humano —, o homem “percebeu claramente que aquela vida se encontrava totalmente em suas mãos, e tal consciência acabou por arrefecer o ódio que até então lhe inflamava peito” (idem, ibidem, p. 31). Ao vê-la sob si, o ódio diminuiu. Impossível não se lembrar de Nietzsche: “Não se odeia senão seu igual ou seu superior” (NIETZSCHE, 2013, p. 111).

A velha, pega subitamente, com as “pálpebras vermelhas como as de aves de rapina” (AKUTAGAWA, 2008, p. 32), mais uma vez, comparação a um animal, é tão feia que tem “lábios que quase se confundiam com o nariz devido ao número de rugas” (idem, ibidem, p. 31), além de ter uma “voz grasnada, como a de um corvo” (idem, ibidem, p. 32). É uma visão grotesca, aterrorizante (criada já por toda a ambientação do conto), ou da verdade nua e crua, sem floreios, que o autor busca descrever.

O homem pergunta qual o motivo da idosa fazer aquela barbaridade, arrancar os cabelos de pessoas mortas, e ela diz, simplesmente, que é para fazer perucas e vendê-las, uma forma de sobreviver, senão morreria de fome. O curioso é que o servo se sente desapontado por uma resposta tão banal, como se esperasse algo pior, como se seu desejo fosse por uma atitude mais vil. Seria uma sutil crítica do escritor à mesquinhez humana? Mais ainda: a velha justifica que aquela mulher de quem arrancava os cabelos, em vida, era uma impostora que vendia uma coisa por outra, e que nem por isso a considerava errada, pois a pobre o fazia para se manter viva: “Para mim, o que ela fazia não era ruim. Não tinha outro jeito, senão morreria de fome. Não acho, tampouco, que eu esteja agindo errado. Eu também morreria de fome, não tenho escolha” (idem, ibidem, p. 32).

Pronto, está posta camada sobre camada: a mulher morta enganava os outros para não morrer de fome, esta agora tem os cabelos roubados por uma velha que também o faz para se manter viva, que, por sua vez, é ameaçada por um homem que cogita se tornar ladrão para sobreviver nesses tempos difíceis. Além disso, a moralidade é questionada de vez, a verdade do que é certo ou errado torna-se relativa. O servo,

Enquanto ouvia, sua mão direita apalpava a grande espinha vermelha e purulenta que o incomodava. (...) O servo não hesitava mais entre morrer de fome ou tornar-se ladrão. Nesse momento, morrer de fome nem passava por sua cabeça; era uma alternativa que lhe fugira por completo à consciência. (idem, ibidem, p. 33).

A velha, sem querer, causou a decisão do homem. Como foi mencionado, a espinha, feia, dolorida, preste a explodir, representava a preocupação do protagonista. Tanto o é que logo após ter escolhido a opção de tornar-se ladrão, “subitamente afastou a mão direita da espinha” (idem, ibidem, p. 33) e roubou as roupas da velha, chutando-a com violência: “não me leve a mal se eu roubá-la. Se eu não fizer isso, também meu corpo irá morrer de fome” (idem, ibidem, p. 33). Depois disso, “precipitou-se escada abaixo rumo a uma noite profunda” (idem, ibidem, p. 33) e nunca mais foi visto.

Pela última vez, é visto como os sentimentos humanos são efêmeros: do fim de uma tarde para uma noite, um homem decide roubar, desiste de roubar, volta atrás novamente e, mais do que escolher que lado tomará, pratica o roubo. Cada contexto altera o significado dos atos, a moralidade e a verdade são colocadas em xeque diversas vezes, inclusive através da metalinguagem, pelo próprio narrador, que se autocorrige.

Além disso, observe as sugestões de metáforas nesse final: a velha se justifica pelo roubo de cabelos, o homem, então, decidido a se tornar ladrão, rouba as roupas dela, isto é, a justificativa com que a mulher se vestia agora passa a ser dele. E mais: o homem foge escada abaixo, ou seja, é um declínio, uma queda do ser, tanto é assim que, como se não bastasse retirar as roupas da idosa, ainda a chuta.

Por fim, o servo some “rumo a uma noite profunda”. O conto começou à tarde e terminou no escuro; a parte clara, iluminada, do dia e do homem, acabou: só restou escuridão. Tudo isso embaixo de um portal, cenário de passagem e de encontro entre pessoas, tal como o protagonista entrou de um jeito e saiu de outro, graças ao encontro com outra personagem.

REFERÊNCIAS

AKUTAGAWA, Ryûnosuke. Rashômon e outros contos. Tradução de Madalena Hashimoto Cordaro e Junko Ota. São Paulo: Hedra, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Tradução de Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2013.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Crônica anual


Acordei e senti meu corpo normalmente: sem dores e com a preguiça comum do dia-a-dia. Abri a janela e vi o céu: nada de extraordinário também. Hoje, meu aniversário, e como (d)escreveu o mestre Ferreira Gullar sobre a nossa galáxia num Réveillon: “nada ali indica / que um ano novo começa” (GULLAR, 2004, p. 190). Claro, afinal, como ele continua: “não começa / nem no céu nem no chão / do planeta: / começa no coração.” (idem, ibidem, p. 190). Parafraseando-o ainda, o ano se inicia com a esperança de dias melhores, sentimento humano (ser que sonha e luta). Bom pensamento para despertar, principalmente nesta época cheia de desafios.

Neste ano, 2020, uma das adversidades de todos é ficar trancado em casa, por causa da pandemia, o que é um problema, inclusive, para que eu escreva este texto, pois para escrever “é preciso ver o mundo. Aos domingos ou nos outros dias. Ir ao cinema, namorar, visitar amigos — essas coisas. Não se arrancam palavras do nada: as palavras brotam de coisas e seres viventes.” (ABREU, 2015, p. 211). Obviamente, quando o Caio Fernando Abreu escreveu essa crônica, em 1987, não havia internet; hoje, pode-se ver filmes, conversar com amigos e até mesmo namorar online. São oportunidades da nossa época.

Como ninguém pode parar no tempo (porque isso é impossível, querendo ou não) e, segundo João Cabral de Melo Neto, de toda a pontuação existente na vida, “o homem só não aceita do homem / que use a só pontuação fatal: que use, na frase que ele vive / o inevitável ponto final” (NETO, 2010, p. 46), posso tentar florescer “em casa”, regado e iluminado pela arte, pelo diálogo, pelo silêncio, pelos estudos e pelas diversas atividades possíveis, mesmo “isolado”, afinal, se não somos mais sementes nem ovos para nascer pela primeira vez (a nós, crescidinhos, “só” nos é permitido renascer), a gente se desenvolve por e para dentro.

Enfim, não saí de casa, mas este texto, que era uma semente até ontem, cresceu e pode vir a ter frutos, tal como o meu antigo eu e o eu de agora, que estamos sonhando e nos preparando para o amanhã, visto que “o futuro se impõe, / o passado não aguenta” (ENGENHEIROS DO HAWAII, 1992), mesmo que o céu não diga nada. Quem diz é meu coração.  

REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. O melhor de Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

ENGENHEIROS DO HAWAII. Pose (Anos 90). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=4Q3R0eaF07k>. Acesso em: 19 de maio. 2020.

GULLAR, Ferreira. Melhores poemas de Ferreira Gullar. 7 ed. São Paulo: Global, 2004.

NETO, João Cabral de Melo. Poemas para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

A sutileza da literatura japonesa em “Descabelados”, de Yosano Akiko


AKIKO, Yosano. Descabelados. Tradução, introdução e notas de Donatella Natili e Álvaro Faleiros. Brasília: Universidade de Brasília, 2007. (Coleção Poetas do Mundo)

A Poesia é uma arte muito sutil, mas quando se fala de literatura japonesa, vinda de uma sociedade tão distante e diferente da ocidental, essa sutileza ganha contornos ainda mais sublimes, como é o caso da obra de Yosano Akiko (1878 – 1942), escritora que, só pelo título de um livro, já se tornou, na época, contestadora social.

Mideragami, publicado originalmente em 1901, traduzido para o português como “Descabelados” (2007), é considerado, no Japão, um dos cem livros mais importantes do século XX, pela ousadia da autora, que usou um gênero textual tradicional, o tanka, com uma abordagem de conteúdo totalmente nova e considerada imoral para a época.

Para quem não sabe, o tanka é um poema que tem como estrutura cinco versos, possuindo, respectivamente, cinco, sete, cinco, sete e sete sílabas. Pode-se dizer que é um haicai acrescentado de dois versos de sete sílabas e, tal como o gênero citado, o tanka também aborda questões relacionadas à descrições da natureza. Portanto, vê-se que é um poema rígido, o qual Yosano Akiko utiliza de forma diferente da proposta.

A sublime distorção, contestação e inovação da poetisa já começam ao contrapor forma e conteúdo: se o tanka é um gênero tradicional, duro, ao usar a imagem de uma mulher descabelada, Akiko cria estranhamentos dentro e fora do texto: primeiro, porque o cabelo solto de uma mulher no Japão daquela época não era bem visto, pois subjetivamente indicava ou erotismo ou desordem; segundo, porque dentro da estrutura formal do poema está uma representação informal, descabelada (com toda sua carga subjetiva), contrastando a regra. Como diz Álvaro Faleiros, escritor das notas de Descabelados (2007): “O escândalo causado pelos textos de Akiko deveu-se ao fato de a poeta utilizar-se de uma forma clássica e introduzir uma temática inusitada, erótica e altamente subversiva para os padrões tanto estéticos como morais do Japão” (p. 44).

Quanto à estrutura dos poemas que serão mostrados, é necessário ressaltar que os tradutores optaram por seguir a própria técnica japonesa, isto é, diferente da contação de sílabas portuguesas, que só vai até a última tônica, traduziram os tankas de forma que cada verso tenha cinco ou sete sílabas até o fim, não importando onde se encontra a mais forte, seja a palavra oxítona, paroxítona ou proparoxítona. Ao serem transpostos para cá, essas questões serão melhor percebidas.

Além disso, esta edição da Universidade de Brasília traz, nas folhas esquerdas (e, melhor ainda, no canto direito da folha esquerda, que é a ordem da leitura japonesa), o texto original, em japonês, o que é muito útil para quem deseja estudar o idioma ou ter contato com a fonte primária. A seguir, alguns poemas e interpretações.

1.
cabelos negros
são mil longos cabelos
descabelados
mente   descabelada
descabelada   mente


Antes de começar a análise, é preciso deixar claro que o poema foi alinhado à direita para reproduzir a forma como foi escrito no livro e dar, mesmo que levemente, a impressão que se tem ao ler em japonês, que, diferentemente do modelo ocidental de leitura, lê-se da direita para a esquerda. Os espaços “exagerados” seguem a mesma linha e servem como lacunas e pausas subjetivas, tal como estão no texto original. Como se vê, o tanka tem cinco versos, possuindo, respectivamente, 5, 7, 5, 7 e 7 sílabas, não se contando apenas até a tônica, mas absolutamente todas. Os poemas não começam com letra maiúscula e nem possuem ponto final.

Já sobre o conteúdo, tem-se a descrição dos cabelos negros (cor predominante nos povos asiáticos), descabelados, o que pode representar tanto algo físico quanto um reflexo emocional do eu-lírico que, em seguida, descreve que a mente também está descabelada, ou seja, confusa. É importante perceber o movimento das palavras nos dois últimos versos, que sugerem o próprio balanço do cabelo e a instabilidade psicológica: mente   descabelada / descabelada   mente. Como já foi mencionado antes, a desordem do cabelo, no Japão, é símbolo de erotismo.

3.
ouça o poema
como negar o carmim
da flor do campo?
delícias   a   menina
pecar    na primavera

Este poema pode parecer simples, mas possui suas sutilezas. Em primeiro lugar, o imperativo “ouça”, que ordena que se dê atenção ao texto; em seguida, uma pergunta retórica sobre a cor da flor (sinônimo de beleza) do campo, “carmim”, isto é, vermelho, que, por sua vez, pode significar a cor do amor. Como negar este sentimento? Como negar os sentidos? É preciso lembrar que no passado (e até em alguns casos no presente), não só no Japão, mas no mundo todo, os casamentos eram arranjados. A primavera, estação das flores, do encanto e da juventude, então, é o tempo bom (“delícias”) para se rebelar contra o que é imposto socialmente, para se fazer o que é considerado “pecado” — aliás, o uso esta palavra pode remeter a uma influência cristã na vida da poetisa.

4.
    mergulhada
no fundo da nascente
a flor       de lírio
corpo de vinte verões
vejo assim tão bonito

Aqui, pode parecer comum, um eu-lírico que se orgulha da sua própria beleza, com seus vinte anos de idade (“vinte verões”), comparando-se a uma flor de lírio, no entanto, como diz a tradutora desta edição, Donatella Natili: “Tradicionalmente, uma das maiores virtudes das mulheres japonesas era a modéstia” (p. 114). O que hoje é considerado normal, ter orgulho de si mesmo e descrever o próprio corpo feminino, na época era considerado uma afronta, além de ser um despertar para questões do ego, logo, de certa forma, um início de modernidade. Por essas e outras questões, Yosano Akiko é considerada uma pioneira do feminismo no Japão.

A tradução também merece ser elogiada, por produzir efeitos estético-sonoros que contribuem para a graça de ler o poema. Perceba a rima interna entre “flor” e “CORpo”, além da aliteração (repetição de letras) em /v/, com “VINte VErões” e “VEjo”.

8.
mamilos duros
revelam-se os mistérios
tão docemente
uma flor     desabrocha
vem tingida de carmim

Ousadia, inocência e beleza natural. Se até hoje é considerado tabu falar sobre sexo, imagine uma mulher, numa sociedade tradicional como a japonesa, em 1901, escrever sobre o tema. Os mamilos duros representam a excitação feminina, a flor pode ser metáfora para a vagina, tingida do supracitado carmim, vermelho, isto é, o sangue da primeira relação sexual de uma moça jovem a quem ainda os mistérios da sexualidade estão se revelando — para o seu prazer, “docemente”.

Último poema a ser comentado, pois o livro, embora bom, só traz 30 tankas:

20.
uma lágrima
eu assim      derramada
sem saber secar
nessa água      solitária
reluz      a lua cheia

Este texto é de uma tremenda imagem sensível e os tradutores conseguiram fazer um excelente trabalho aqui, que reforça a mensagem. Uma descrição do eu-lírico chorando sob a lua cheia que, por sua vez, é vista no reflexo das lágrimas de tristeza, visto os adjetivos usados, “derramada” e “solitária”. A angústia é tanta que não apenas a lágrima cai, mas o próprio eu-lírico se sente “derramado (a)” e não consegue (se) secar. Além disso, observe essa aliteração em /s/: SEM SAber SEcar / SOlitária, que sugere o soluço do choro. Ainda sobre a estética que reforça o conteúdo, perceba a assonância (repetição de vogais) da letra “a” presente em todos os versos, o que manifesta a claridade da lua nesta vogal aberta. Brilhante!

Como pode ser observado, Yosano Akiko foi uma poetisa sensível, contestadora e revolucionária em seu contexto, não apenas na sua obra, mas na vida como um todo (que está resumida no livro). Os seus textos têm estrutura rígida e sentimentos íntimos expostos, com toques de inocência e audácia ao mesmo tempo, o que torna a escritora dialética.

A antologia da editora UnB conta, ainda, com dezenas de páginas de estudo, tanto sobre a autora e a obra, quanto sobre o gênero tanka e modos de tradução, além dos poemas no idioma original, o que enriquece bastante a compreensão, interpretação e análise dos textos, e toda a bibliografia utilizada e recomendada para quem deseja se aprofundar nas pesquisas do ramo. Poderia contar com mais poemas da autora, pois foram apenas 30, mas já é um começo para conhecer e buscar aprender mais sobre a literatura japonesa.

Antônio Carlos da Silva Siqueira Júnior é graduado em Letras pela Faculdade de Santo André – Santo André – São Paulo.


segunda-feira, 2 de março de 2020

Relato pessoal: Vision Divine - Brasil - 01/03/2020 (Carioca Club)


A primeira vez que ouvi falar na banda Vision Divine foi no saudoso Orkut, na comunidade do Helloween, numa discussão dos veteranos conhecedores de Power Metal sobre vocalistas. Quando vi e ouvi “La vita fugge” ao vivo, com o até então desconhecido para mim Michele Luppi, fiquei maravilhado, já perdi a conta de quantas vezes vi aquela apresentação e, sempre que posso, mostro para alguém: “É disso que gosto! Técnica, velocidade, fundo literário e agudos!”

Ontem, 01/03/2020, tive a oportunidade de ver os italianos pela primeira vez, num pequeno “festival” onde, antes deles, tocaram outras três bandas, a saber, Eve Desire, Ego Absence e StormSons. O show do Vision Divine, curto, focou mais em seu novo trabalho, “When all the heroes are dead”, de 2019, apresentando o seu novo baterista, Mike Terrana (ex-Malmsteen, ex-Tarja Turunen, ex-Masterplan), e vocalista, Ivan Giannini.


O concerto, o último da turnê da América-Latina, marcado para começar às 20h, iniciou às 21h e durou até às 22h30. O setlist não trouxe novidades, na verdade, por causa do atraso, tocaram uma música a menos, “The miracle”, que foi tocada em todas as outras datas, mas a qualidade continuou a mesma.

O novo vocalista, Ivan Giannini, é absurdo, muito carismático e possui uma voz potente, limpa, aguda, que cobre bem as outras duas fases da banda, com Fabio Lione (Angra, Turilli/Lione Rhapsody) e Michele Luppi (Whitesnake, Secret Sphere). Além dos seus movimentos no palco, é impossível não notar algumas de suas manias, como mostrar a língua e virar os olhos para cima (essa última é vista até mesmo no clipe de “26th machine”). Quanto aos outros membros da banda, exceto o baterista (que teve um momento só para ele solar e assolar os seus pratos altíssimos), conhecido por muitos outros trabalhos, já é sabido que são extremamente técnicos e competentes.

(Videoclipe de "The 26th machine")

O repertório da banda teve músicas de todos os álbuns, mesmo que de alguns tenha sido apenas uma canção, como foi o caso de “Violet loneliness” (do “9 degrees West of the Moon”), de “Send me an angel”, do álbum homônimo, de “Message to home” (do “Destination set to nowhere”) e da “25th hour”, do também homônimo trabalho.

Como já foi relatado, diferente dos outros shows da turnê, neste não houve a execução de “The miracle”, por causa do atraso das bandas anteriores. Por um momento, pensei que haveria uma troca de músicas, pois o vocalista e o tecladista iniciaram a belíssima “Identities”, o que foi uma grande surpresa, mas depois emendaram-na em “Of light and darkness”, num curto medley, para em seguida a banda terminar o show com a clássica “La vita fugge”, a música que me fez conhecer e adorar os italianos.

Uma pena que a noite foi curta, não houve tempo (ou não quiseram perdê-lo) nem para apresentar os integrantes. Logo após o medley mencionado, o vocalista chamou o tecladista para a frente do palco, mas o líder da banda, o guitarrista Olaf Thorsen, expressou, visivelmente, na frente do Ivan (e de todo mundo...): “NON HA TEMPO!”, ao que fomos respondidos com um rápido: “Oh, OK, there’s no time. The last song, ‘La vita fugge’!” Uma pena (trocadilho à parte: “The fallen feather”...).

Além do atraso, outros problemas do show foram que estava sobrando muito grave e nos momentos de maior silêncio havia um chiado saindo de algum equipamento, transtorno ocorrido somente  com o Vision Divine...

Ainda assim, foi uma boa apresentação, uma grande estreia dos novos membros e mais uma consolidação do grupo como um todo. Que venha a próxima vez — e que não demore tantos anos novamente para acontecer! —, num show de maior duração e sem esses pequenos obstáculos. Be Divine!

Setlist

The 26th machine
3 men walk on the Moon
The secret of life
Now that all heroes are dead
Angel of revenge
Violet loneliness
25th hour
Solo de bateria
The perfect machine
Message to home
Were I God
Send me an angel
Medley (Identities e Of light and darkness)
La vita fugge



segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Beastars, mais do que uma fábula


Quando se fala em anime feito em CGI (computer generated imagery), todos já olham estranhamente, mas não deve ser o caso de Beastars, de 2019, produzido pelo estúdio Orange, que só trabalha com esse tipo de técnica. Adaptação do mangá homônimo de Paru Itagaki, terminada agora a primeira temporada, a obra consagra-se como uma das melhores do ano na cena, por diversos motivos.
Beastars passa-se num universo de animais humanizados, isto é, antropomórficos, predominantemente dentro de uma escola, a Cherryton, numa sociedade onde é proibido que carnívoros devorem herbívoros. Mais do que isso, toda ação gira em torno do clube de teatro e o protagonista é um lobo que esconde ao máximo a sua natureza. Já deve ter ficado claro que, como as fábulas, o anime metaforiza a vida em comunidade e engloba questões psico-filosóficas, não é?
 Antes de tudo, é preciso lembrar que a sociedade é um lugar onde, segundo Freud, pai da psicanálise, “ao menos todos capazes de viver em comunidade — contribuem com o sacrifício de seus instintos, e que não permite — de novo com a mesma exceção — que ninguém se torne vítima da força bruta” (FREUD, 2011, p. 40-41). Ou seja, é necessário reprimir os seus sentidos animais para se viver socialmente. Ora, essa é a premissa da vida civilizada, do anime de Beastars, e que é quebrada logo no começo do primeiro episódio: ninguém sabe quem foi o malfeitor, mas um animal foi devorado na escola.


 Essa situação deixa todos os herbívoros em pânico e, ao mesmo tempo, revela um preconceito sobre os carnívoros que, por sua vez, sentem relativa raiva dos primeiros e da lei que os defende, o que lembra o pensamento nietzschiano de que a sociedade é um local em que uma massa de fracos vence os fortes (NIETZSCHE, 2009).
 Além disso, não se pode esquecer de que o anime foca no grupo de teatro, isto é, uma arte que busca o Belo através da atuação; de certa forma, do fingimento. Como disse Shakespeare, mestre da dramaturgia: “O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores” (SHAKESPEARE, 2013, p. 62). A representação, tanto em Beastars quanto na vida real, continua além dos holofotes, já que não se pode fazer nem falar tudo o que se deseja à luz do dia, em qualquer que seja o contexto social, pois há regras implícitas e explícitas que norteiam e “vigiam” seus usuários e punem quem as infringe (FOUCAULT, 2014).
 Como não poderia deixar de ser, embora não pareça, toda esta pressão e vigilância causa sofrimento às pessoas: “(...) privar um instinto de satisfação (...) É algo que tem seus perigos; se não for compensado economicamente, podem-se esperar graves distúrbios” (FREUD, 2011, p. 43). É o caso do protagonista da história, o lobo Legoshi, que, diferente de tudo o que se espera (inclusive dentro da obra), não é violento nem se exibe pela sua força, mas é gentil e calmo. Todavia, como já revela a abertura do anime, uma noite  — o que é simbólico, horário que a razão diminui um pouco, as subjetividades e vontades vêm à tona —, o lobo se deixa levar pelos instintos e quase devora uma coelha (pela qual, depois, ele se apaixona).


 Essa personagem, Haru, não é bem vista pelas outras coelhas e mesmo por alguns espectadores, porque ela “fica” (faz sexo) com qualquer animal, mesmo de outras espécies, como o cervo e líder do teatro, Louis, ou como quando já ia se entregar ao Legoshi, mesmo sem conhecê-lo, antes de ele fugir. Beastars é muito competente nisso, por juntar, ao mesmo tempo, questões humanas (morais) e animais (instintivas).
 No anime, Haru diz que cede a todos por medo, pois sabe que é fraca e frágil, então, se ser usada por outro animal lhe permitirá continuar viva, ela deixará, mesmo que não haja amor envolvido. É triste e reflexivo. Por outro lado, ela também diz que é só durante a relação sexual que todos são iguais. Não é nem preciso dizer que “tirar a roupa” e “ficar nu” é algo tanto literal quanto metafórico. Sem contar que “o amor sexual (genital) proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satisfação, dá-lhe realmente o protótipo de toda felicidade” (idem, ibidem, p. 46). Daí, o preconceito que mascara a possível inveja inconsciente das outras coelhas sobre Haru e, na vida real, das pessoas “tradicionalistas/reacionárias” quanto à liberdade sexual dos outros. Novamente, pode-se lembrar de Nietzsche e a moral dos fortes e fracos.
 O anime aborda, então, um triângulo amoroso entre Legoshi, que ora se move pelos sentimentos, ora pela racionalidade, Haru, que se deixa levar mais pelos instintos, e Louis (o cervo, líder e ídolo da turma do teatro), que tenta ao máximo esconder seus medos e fraquezas de herbívoro e mostrar uma imagem de forte e elegante — muito coerente, já que é o maior representante da arte de atuar. O lobo gosta da coelha que gosta do cervo. Situação complicada, difícil de lidar, que evoca questões psicológicas.


 Por falar nessa área de estudo, há uma espécie de “psicólogo”, um panda que vive fora da escola, na cidade, no “mundo dos adultos”, ou, como ele mesmo diz, de quem aprendeu a dominar os seus instintos e que sabe que, de qualquer forma, há uma fuga, no caso, o “mercado negro”, local em que é possível comprar e vender carne, onde crimes acontecem, todos sabem, mas não fazem nada para impedir, apenas afastam as crianças e os estudantes. Nada mais verossímil. Se quiser aproximar da realidade de cá, troque “carne” por “drogas” ou “prostituição”.
 É esse panda que ensina a Legoshi que, na verdade, o que ele sente pode não ser amor, mas somente desejo; que o medo que ele tem de perder a coelha para alguém é, no fundo, medo de perder a própria presa, seu objeto de prazer. É impossível não lembrar de Nietzsche: “Amamos, em definitivo, somente nossas inclinações e não aquilo a que nos inclinamos” (NIETZSCHE, 2013, p. 111). Isto é, ama-se o desejo, não o desejado; gosta-se apenas dos sentimentos e das sensações boas que o outro pode causar, mas não própria e especificamente do causador, tanto que, quando alguém deixa de ser fonte de prazer, é trocado por outra pessoa.
 Ainda assim, Beastars não se trata apenas de romance. Há ação, outros personagens interessantes, lutas/brigas (obviamente, sem poderes e exageros, pois a obra, como já deve ter ficado claro, não é um shounen), cenas cômicas, diálogos reflexivos e poéticos e momentos muito tensos, tudo feito com bastante cuidado, tanto na animação e nos enquadramentos, quanto nas cores e na trilha sonora. Aliás, a abertura é um show à parte, com imagens em stop-motion (aquela técnica de sequência de fotografias de objetos para simulação de movimentos) e música jazz, bem ao estilo das openings de Cowboy Bebop (1998) e Baccano! (2007), embora sejam instrumentais.

(Abertura de Beastars)

 Se fosse para apontar um ou outro “defeito” nesta primeira temporada, pode-se falar que alguns episódios soam desconectados, como, por exemplo, um no qual muito do tempo é gasto descrevendo ações e pensamentos de uma galinha. O capítulo é interessante e engraçado, tem seus próprios questionamentos e a personagem até possui relação com Legoshi, mas soa relativamente desnecessário.
 Outro ponto que parece desconexo é a falta de investigação sobre a morte que acontece no começo da história: ninguém sabe como foi, quem praticou o assassinato, as consequências etc. De vez em quando, até mencionam o fato, mas em boa parte do anime é esquecido. Uma hora, retomam, mas leva tempo. De qualquer forma, são apenas 12 episódios e esses detalhes não estragam a obra. Na já confirmada segunda temporada, ao menos a parte do crime deve ser melhor trabalhada.
 Em resumo, Beastars foi uma grata surpresa neste 2019. Por vezes, nem parece que é feito em CGI. Repleto de metáforas e levantamentos sócio-psico-filosóficos, é uma obra adulta que merece atenção não apenas pelo seu conteúdo, mas pela forma como aborda tudo, afinal, não se vê narrativas com animais antropomórficos toda hora, quase uma fábula moderna, mas sem o clichê maniqueísta de Bem e Mal, “final feliz” (pelo menos por enquanto) e lição de moral. Um verdadeiro trabalho artístico. Que venha a segunda temporada.



REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.  24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics & Companhia das Letras, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do Mal. Tradução de Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2013.

NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moraluma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SHAKESPEARE, William. Como gostais, seguido de Conto de inverno. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre, RS: L&PM POCKET, 2013. (Coleção L&PM Pocket, v. 727).