sábado, 20 de junho de 2020

Análise do conto “Rashômon”, de Ryûnosuke Akutagawa


Atenção: Se você não conhece o conto "Rashômon", é possível lê-lo neste outro blog: http://contosquevalemapena.blogspot.com/2015/02/33-rashomon-r-akutagawa.html, ou, se preferir baixar o livro inteiro em PDF, veja este outro link: https://docero.com.br/doc/nes10

Breve introdução ao gênero conto e ao escritor Akutagawa

O conto é um dos gêneros literários mais populares contemporaneamente, pelo seu caráter breve, relativamente objetivo e verossímil, pela aproximação dos (poucos) personagens através de diálogos e pela fácil assimilação dos acontecimentos, por meio do tempo cronológico (sempre seguido). Outra característica do conto é que ele tem apenas uma célula dramática, isto é, apenas um clímax, sempre no final do texto.

Ryûnosuke Akutagawa é considerado por muitos como o “Pai do conto japonês”, por ser o primeiro a se preocupar com a estética do gênero e a introduzi-la à literatura japonesa, influenciando diversos escritores. Seu nome, inclusive, intitula um dos maiores prêmios literários do Japão.

(Ryûsosuke Akutagawa)

Nascido no final do século XIX (1892), Akutagawa teve uma vida breve, pois se suicidou aos 35 anos (1927). Sua obra é marcada por reflexões melancólicas e/ou pessimistas sobre o homem, a sociedade e a verdade. O escritor, mesmo que de modo sutil, o que é uma característica da cultura japonesa, sempre revela aspectos mesquinhos do ser humano, como a hipocrisia e o egoísmo, ambientados em diversos períodos históricos do Japão — cada um, inclusive, descrito coerentemente de acordo com a realidade material e espiritual da época, o que demonstra o cuidado de pesquisador que Akutagawa tinha.

“Rashômon” (1915), um dos seus contos mais famosos, que já até inspirou filmes e histórias em animes, é baseado numa coletânea de narrativas do século XII, a “Konjaku monogatarishû”. Antes que se diga qualquer coisa, é necessário saber que faz parte da cultura literária japonesa pegar algum trecho de uma obra já escrita e usá-lo para inspirar ou reinterpretá-lo num texto novo, a tradição “Honkadori”. Akutagawa foi mestre em utilizar breves histórias antigas e aprofundá-las, deixando-as muito mais ricas, complexas e com o seu próprio estilo, a saber, crítico, irônico e belo esteticamente.

A seguir, uma análise do conto Rashômon, com foco nos possíveis significados de sugestivas metáforas através de imagens simbólicas e até mesmo do estilo narrativo do autor.
Análise

Todo texto começa a ser lido e interpretado a partir da sugestão do título, no caso, “Rashômon”, que nada mais é do que um portal, a entrada para a cidade de Quioto, na época, a capital do país. Ou seja, a história acontece num lugar de encontros, de entradas e saídas, numa “fronteira”, numa divisa, num limite entre um começo e um fim. Isso, inclusive, é importante para o reforço da significação do conto. A primeira frase já rima com o título: “Era num entardecer” (AKUTAGAWA, 2008, p. 25). De novo: uma fronteira, uma divisa, agora, entre o dia e a noite.

Além desse microcenário (o portal), o macro, a cidade, Quioto, já “sofrera seguidas calamidades: terremotos, redemoinhos, incêndios e fome” (idem, ibidem, p. 25), o que, então, remete aos tempos difíceis que o povo, até mesmo o protagonista do conto, um servo de baixa condição, estava passando. Mais do que isso, o clima era de chuva, o que pode indicar o estado mental conflituoso pelo qual o servo passava, tanto o é que o próprio narrador quebra a quarta parede e utiliza-se da metalinguagem para explicar: “o tempo chuvoso contribuía sensivelmente para a disposição de espírito daquele homem da era Heian” (idem, ibidem, p. 27). Esse período histórico japonês, Heian, que fique claro, durou do ano de 794 a 1185.

É nesse contexto que o personagem principal vive, um pobre servo, numa terra desolada, onde, segundo o narrador, até mesmo estátuas de Buda e outros objetos de culto budista eram destruídos para aproveitar a madeira e/ou outras partes que podiam ser vendidas. Ato significativo: a vida física, o lado material, acima da vida espiritual. Homens sem transcendência. Há várias passagens no conto em que o narrador iguala os personagens a animais, seja comparando-os com características, seja colocando-os lado a lado. Embaixo do portal, por exemplo, o servo só tem a companhia de um grilo, para se ter noção da solidão naquele lugar e daquele ser.

Ainda mencionando os animais, é mencionado que como o portal estava abandonado, “raposas e texugos começaram a se abrigar ali. E também ladrões” (idem, ibidem, p. 26). Muito perspicaz da parte do Akutagawa, que já deixa dicas para bons leitores do que pode vir a acontecer na história. É explicável: o servo, agora sem trabalho, não sabe o que fazer da vida e começa a pensar em se tornar ladrão, mas essa informação só chega mais tarde para quem lê; por hora, só há essas sugestões.

Todo o cenário é descrito de maneira obscura, cheio de detalhes feios, para demonstrar a decadência do lugar e que será o meio em que o protagonista entrará, moral e fisicamente. Além dos corvos (que podem representar o mau agouro), que “Vinham, obviamente, alimentar-se da carne dos mortos abandonados (...) podiam-se notar seus excrementos pontilhados de branco sobre os degraus de pedra quase em ruínas” (idem, ibidem, p. 26). Como se não bastassem esses aspectos sombrios e desagradáveis dignos da descrição de um Edgar Allan Poe, o servo estava “sentindo-se incomodado com a enorme espinha que lhe aparecera na face direita” (idem, ibidem, p. 26). Essa espinha, além de deixar o personagem mais feio, pode representar o seu conflito interior, algo que lhe incomodava e que estava prestes a “estourar”.

Agora, um detalhe interessantíssimo do conto: Akutagawa utiliza-se da metalinguagem e de uma espécie de quebra da quarta parede para refletir sobre a verdade da história. Observe:

Escreveu o autor anteriormente: ‘Um servo de baixa condição esperava a chuva passar’. Entretanto, mesmo que a chuva passasse, o servo não teria, na verdade, nada a fazer. (...) Acontece que fora dispensado havia quatro ou cinco dias. (...) Seria, portanto, mais adequado dizer ‘Um servo de baixa condição, preso pela chuva, estava desnorteado, sem saber para onde ir’ (idem, ibidem, p. 26-27).

Vê-se, então, curiosamente, um narrador que se autocorrige para passar a informação correta a quem lê, isto é, uma busca pela verdade, que é um dos temas abordados nas obras do escritor japonês. Mais ainda: talvez, esse ato revele a efemeridade das coisas e da verdade perante novas informações, o que de fato acontecerá mais à frente.

Finalmente, descoberto o recente passado do servo, apresenta-se o conflito: tornar-se ou não se tornar um ladrão? “Quando se tenta resolver uma questão insolúvel, não há tempo para escolher os meios. Se demorasse muito na escolha, o servo certamente terminaria morrendo de fome” (idem, ibidem, p.  27), todavia “ele não tinha coragem suficiente para aceitar de forma positiva a resposta inevitável à questão: ‘A única saída é tornar-me ladrão’. (idem, ibidem, p. 27). Pronto, está posto o dilema, o eterno shakespeariano: “Ser ou não ser?”. É errado roubar? Sim. E se não for por maldade, apenas para não morrer de fome? Não. É a verdade relativa, tema comum de Akutagawa. Não há moral quando se trata de sobrevivência.

É importante prestar atenção às cores da roupa do servo também: “a gola azul-escura que envergava sobre a roupa amarela” (idem, ibidem, p. 28). Azul, cor escura, amarelo, clara, mais um conflito, tal como se tornar um obscuro ladrão ou continuar um servo moralmente correto, tudo isso somado ao entardecer, que não é noite nem dia, embaixo de um portal, local de encontros, de atritos. Quantas rimas semânticas. Do mesmo modo, é possível pensar na sugestão: a parte azul da roupa, escura, está acima da clara, o que pode indicar a preferência final do protagonista.

Ainda sobre descrições, é interessante perceber como o narrador tece comentários sobre os movimentos do homem: “o corpo encolhido como um gato (...) Abafando seus passos como uma lagartixa” (idem, ibidem, p. 28-29). Duas interpretações sobre as representações: em primeiro lugar, a desumanização do personagem, agora comparado a animais (e isso já havia sido feito ao descrever o portal, onde ladrões e animais se refugiavam); em segundo lugar, a ressaltada qualidade desses seres, gato e lagartixa, é a forma silenciosa de se mover, necessidade para quem deseja ser ladrão, atributo que o servo já possui.

A desumanização continua, pois quando o homem sobe as escadas do portal, para se proteger do frio, encontra cadáveres de homens e mulheres, nus e vestidos, “sobre o assoalho, como bonecos de barro, as bocas abertas, os braços estirados, fazendo até duvidar que um dia tivessem sido humanos” (idem, ibidem, p. 29). No meio dos corpos, ele vê “uma velha de aparência simiesca” (idem, ibidem, p. 29). Novamente, uma adjetivação animalesca. Aparentemente, através da narração, fica a mensagem de que na pobreza, mais do que perder a religiosidade, o ser humano perde a humanidade.

Essa velha arrancava os fios do cabelo de um cadáver, “exatamente como uma macaca catando piolhos do filhote” (idem, ibidem, p. 30). Observe, de novo, como o narrador desumaniza o ser humano, colocando a velha como uma macaca mãe. Além disso, atente-se à aliteração obtida na tradução do conto: “COMO - u - MAMA – CA – CA - CA - tan – do”. O que, por um lado, pode parecer um vício de linguagem, um cacófato, algo sonoramente feio de se ouvir, por outro lado pode sugerir até mesmo sons parecidos e repetidos de animais: CO – MO – MA – MA - CA – CA - CA. Se foi trabalho proposital na tradução, merecem parabéns; se foi coincidência, ótima surpresa.

Ao ver aquela cena grotesca, o servo, demasiadamente humano, começa a odiar a velha, quer dizer, como se autocorrige novamente o narrador,

Não, não seria exato dizer “contra a velha”. Na verdade, o que a cada minuto se tornava mais forte era uma repulsa contra todos os males. Se naquele instante alguém lhe propusesse, outra vez, o dilema que antes o atormentara — morrer de fome ou tornar-se ladrão —, não hesitaria mais em escolher a morte pela fome. (idem, ibidem, p. 30)

Então, o homem, que estava na dúvida entre se tornar ladrão ou não, desistiu de se transformar num malfeitor, o que revela a efemeridade dos sentimentos humanos, tema caro ao Akutagawa. O narrador, irônico, crítico, não perde a chance: “Obviamente, o servo já nem recordava que, há poucos minutos, tencionava tornar-se ladrão” (idem, ibidem, o. 30). O homem, que não conhecia a verdade sobre aquele ato da velha, julgou-a e partiu para cima dela. De novo, a metalinguagem: “O autor nem precisa dizer o susto que ela levou” (idem, ibidem, p. 31).

Depois de dominá-la, ela, fraca, “Quais pés de galinhas, seus braços eram somente pele e osso” (idem, ibidem, p. 31) — mais uma vez, animalização do ser humano —, o homem “percebeu claramente que aquela vida se encontrava totalmente em suas mãos, e tal consciência acabou por arrefecer o ódio que até então lhe inflamava peito” (idem, ibidem, p. 31). Ao vê-la sob si, o ódio diminuiu. Impossível não se lembrar de Nietzsche: “Não se odeia senão seu igual ou seu superior” (NIETZSCHE, 2013, p. 111).

A velha, pega subitamente, com as “pálpebras vermelhas como as de aves de rapina” (AKUTAGAWA, 2008, p. 32), mais uma vez, comparação a um animal, é tão feia que tem “lábios que quase se confundiam com o nariz devido ao número de rugas” (idem, ibidem, p. 31), além de ter uma “voz grasnada, como a de um corvo” (idem, ibidem, p. 32). É uma visão grotesca, aterrorizante (criada já por toda a ambientação do conto), ou da verdade nua e crua, sem floreios, que o autor busca descrever.

O homem pergunta qual o motivo da idosa fazer aquela barbaridade, arrancar os cabelos de pessoas mortas, e ela diz, simplesmente, que é para fazer perucas e vendê-las, uma forma de sobreviver, senão morreria de fome. O curioso é que o servo se sente desapontado por uma resposta tão banal, como se esperasse algo pior, como se seu desejo fosse por uma atitude mais vil. Seria uma sutil crítica do escritor à mesquinhez humana? Mais ainda: a velha justifica que aquela mulher de quem arrancava os cabelos, em vida, era uma impostora que vendia uma coisa por outra, e que nem por isso a considerava errada, pois a pobre o fazia para se manter viva: “Para mim, o que ela fazia não era ruim. Não tinha outro jeito, senão morreria de fome. Não acho, tampouco, que eu esteja agindo errado. Eu também morreria de fome, não tenho escolha” (idem, ibidem, p. 32).

Pronto, está posta camada sobre camada: a mulher morta enganava os outros para não morrer de fome, esta agora tem os cabelos roubados por uma velha que também o faz para se manter viva, que, por sua vez, é ameaçada por um homem que cogita se tornar ladrão para sobreviver nesses tempos difíceis. Além disso, a moralidade é questionada de vez, a verdade do que é certo ou errado torna-se relativa. O servo,

Enquanto ouvia, sua mão direita apalpava a grande espinha vermelha e purulenta que o incomodava. (...) O servo não hesitava mais entre morrer de fome ou tornar-se ladrão. Nesse momento, morrer de fome nem passava por sua cabeça; era uma alternativa que lhe fugira por completo à consciência. (idem, ibidem, p. 33).

A velha, sem querer, causou a decisão do homem. Como foi mencionado, a espinha, feia, dolorida, preste a explodir, representava a preocupação do protagonista. Tanto o é que logo após ter escolhido a opção de tornar-se ladrão, “subitamente afastou a mão direita da espinha” (idem, ibidem, p. 33) e roubou as roupas da velha, chutando-a com violência: “não me leve a mal se eu roubá-la. Se eu não fizer isso, também meu corpo irá morrer de fome” (idem, ibidem, p. 33). Depois disso, “precipitou-se escada abaixo rumo a uma noite profunda” (idem, ibidem, p. 33) e nunca mais foi visto.

Pela última vez, é visto como os sentimentos humanos são efêmeros: do fim de uma tarde para uma noite, um homem decide roubar, desiste de roubar, volta atrás novamente e, mais do que escolher que lado tomará, pratica o roubo. Cada contexto altera o significado dos atos, a moralidade e a verdade são colocadas em xeque diversas vezes, inclusive através da metalinguagem, pelo próprio narrador, que se autocorrige.

Além disso, observe as sugestões de metáforas nesse final: a velha se justifica pelo roubo de cabelos, o homem, então, decidido a se tornar ladrão, rouba as roupas dela, isto é, a justificativa com que a mulher se vestia agora passa a ser dele. E mais: o homem foge escada abaixo, ou seja, é um declínio, uma queda do ser, tanto é assim que, como se não bastasse retirar as roupas da idosa, ainda a chuta.

Por fim, o servo some “rumo a uma noite profunda”. O conto começou à tarde e terminou no escuro; a parte clara, iluminada, do dia e do homem, acabou: só restou escuridão. Tudo isso embaixo de um portal, cenário de passagem e de encontro entre pessoas, tal como o protagonista entrou de um jeito e saiu de outro, graças ao encontro com outra personagem.

REFERÊNCIAS

AKUTAGAWA, Ryûnosuke. Rashômon e outros contos. Tradução de Madalena Hashimoto Cordaro e Junko Ota. São Paulo: Hedra, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal. Tradução de Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2013.