quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Breve comentário sobre Otelo, o Mouro de Veneza


Shakespeare viveu no período do Classicismo, uma época em que os artistas buscavam inspiração nos elementos da mitologia greco-romana. Este fato aconteceu por os textos clássicos terem sido publicados em maior escala, por causa da invenção da imprensa, e os pensadores quererem novos ares, até pelo momento de descobrimento de novas terras, povos e culturas, com as navegações.

Sobre os gregos, como se sabe, eles buscavam o ideal, a perfeição, o culto à forma, a padronização, o belo e a racionalização. O teatro era dividido em dois grandes gêneros: Tragédia e Comédia. Otelo (2014) é uma tragédia (final triste que consagra o herói) que possui todos esses tópicos.

A peça se passa, na maior parte do tempo, nas ruas de Veneza (cidade italiana) e em um único momento, num porto de Chipre (ilha do mar Mediterrâneo). A obra narra a história de Otelo, um mouro a serviço de Veneza, um dos homens mais respeitados do exército, e sua esposa Desdêmona, filha de Brabâncio, que é um senador veneziano.

Dentre os servos de Otelo há Iago, um homem cruel, mentiroso, ganancioso e inteligente, mas que usa sua esperteza para o mal. É bom lembrar que a racionalização é um dos elementos valorizados pelos gregos, logo, pelos classicistas. Ao ver que o posto que queria tomar foi assumido por Cássio, que é outro servo de Otelo, Iago deseja se vingar de todos: de Cássio, por ter conseguido o cargo que ele queria; de Otelo, por ser negro, estrangeiro, casado com uma das mais belas mulheres locais e por desconfiar de que o mouro tenha dormido com sua esposa,  Emília; e de Desdêmona, por deseja-la e ela ter aceitado se casar com Otelo.

Utilizando-se de toda sua capacidade argumentativa e persuasiva, Iago engana todos, fazendo com que Otelo despeça Cássio de seu cargo (por causa de uma briga arranjada com outro servo de Iago); depois, faz com que Otelo desconfie de que Cássio possua um relacionamento extraconjugal com sua mulher, Desdêmona. E após mais armações de Iago, Otelo termina louco de ciúme e mata sua própria esposa.

A obra é dividida em cinco atos e quinze cenas. Nela, são apresentadas algumas formas de preconceito, uma crise política e visões (algumas, distorcidas) sobre honra, traição e amor.

Sobre o preconceito presente na peça, é possível destacar o racial, o religioso e o xenofóbico. Como se sabe, a Inglaterra é uma ilha, portanto, um lugar isolado dos outros países europeus. Isso é refletido na sua literatura, na qual, muitas vezes, quando aparece algum estrangeiro, é observado com maus olhos e desconfiança. É o caso de Otelo, que não é bem visto por Iago e outros personagens, por ter vindo de fora (a raiva de Iago por Cássio também é justificada com esse argumento: Cássio subiu de cargo e era florentino, enquanto ele, veneziano, continuou no que estava).

O preconceito racial, por sua vez, é presente em quase toda a obra. É fácil encontrar trechos em que outros personagens zombam de Otelo por causa de sua cor, mesmo que ele seja de uma classe superior: “Iago – (...) Neste momento, um carneiro velho e preto está cobrindo sua ovelhinha branca.” (p. 23). Nota-se, nesse trecho e em vários outros, a comparação de Otelo aos animais. Quando Iago profere essas frases de cunho erótico, essa analogia é frequente.

O preconceito religioso também é percebido nas falas de Otelo: “(...) eu agarrei o cão peçonhento circuncidado pelo pescoço e o apunhalei assim” (p. 191). A circuncisão é uma operação que retira parte do prepúcio do corpo masculino. Esse tipo de cirurgia é feito pelos judeus para serem confirmados na religião. No Novo e no Velho Testamentos, sempre que é usado o termo “circuncidado”, faz-se referência aos judeus. Há outros momentos em Otelo nos quais Iago faz comparações do cristianismo com outras religiões, sempre rebaixando-as. Dialeticamente, por ser escrita no período do Classicismo, há várias expressões exaltando alguns deuses mitológicos ao mesmo tempo em que o Deus cristão é citado.

No campo social, a peça demonstra haver certa instabilidade e crise política no país. Em um trecho, Brabâncio (pai de Desdêmona) xinga Iago de “canalha”, ao que este devolve, ironizando, chamando-o de “senador”: “Brabâncio – Você é um canalha. / Iago – E você um senador!” (p. 17). Além disso, há conversas de alguns personagens sobre uma guerra e ameaça do Império Otomano.

Ademais, a obra demonstra algumas questões sobre amor e traição: o que é o amor? Do que ele é capaz? Quando o sentimento deixa de ser amor e torna-se ciúme? Até que ponto o ciúme (representado por Otelo) pode chegar? Qual o preço por uma traição?

Claro que são perguntas subjetivas, mas na obra elas possuem muito peso, chegando ao ponto de haver mortes (de inocentes!), segundo alguns personagens, “por uma questão de honra”, que na verdade é vista através de uma concepção patriarcal, a qual o homem sempre manda na família e na mulher.

As mulheres, por sua vez, nem podiam encenar na época de Shakespeare, então, eram representadas por homens vestidos como mulheres. Na obra, há três personagens femininas: Desdêmona (que representa a mulher ideal — para os padrões gregos), Emília (mulher de Iago) e Bianca (uma prostituta). Cada uma representa uma classe social diferente, respectivamente: aristocracia, "classe média" e baixa. Embora sejam de camadas sociais distintas, todas são submissas aos seus maridos (no caso de Bianca, ao seu amante Cássio).

Em suma, Otelo continua sendo uma história atual neste mundo violento, ciumento, ganancioso, preconceituoso, racista e ainda machista. Os temas discutidos por Shakespeare são universais, por isso é um autor que está sempre em voga.

REFERÊNCIAS

SHAKESPEARE, William. A tragédia de Otelo: o Mouro de Veneza. Tradução de Marilise Rezende Bertin. São Paulo: Matin Claret, 2014. (Coleção A obra-prima de cada autor, v. 123).