Já faz mais
de anos que ouvi falar no anime Cowboy
Bebop. Li esse nome pela primeira vez numa revista, em 2005, na extinta Ultra Jovem. Nessa época, a qualidade da
revista era bem menor, vinha uma página de imagem e apenas um parágrafo
sobre a obra. Mesmo assim, o parágrafo sempre me interessou. Porém, só agora,
em 2017, é que criei coragem para ver esse excelente animê. Não me arrependi.
Quero dizer, se há arrependimento, foi de ter demorado tanto para vê-lo.
Escrito por Keiko Nobumoto (conhecida por ter escrito o excelente Wolf’s Rain) e dirigido por Shinichiro Watanabe (também famoso por ter
dirigido o ótimo Samurai Champloo), Cowboy Bebop é um anime de ação, ficção
científica, drama e aventura. Sim, tudo isso. O estúdio responsável pela
produção é o Sunrise, um grande nome,
que também produziu o aclamado InuYasha
(Rumiko Takahashi) e alguns animês
menores (em fama, não em qualidade).
Pois bem, a história se passa no ano de 2071,
uma época onde a tecnologia avançou bastante e é possível viajarmos para outros
planetas facilmente. A Terra está desolada, por causa de um acidente num portal
entre o nosso planeta e a Lua. Mesmo assim, ainda há algumas pessoas que vivem
aqui, entre os meteoros que caem diariamente. Com isso, há muitas colônias e
enormes cidades nos astros vizinhos, para os quais migramos.
Contudo,
por o espaço ser vasto, a libertinagem aumentou demasiadamente, fazendo os
crimes também aumentarem e os policiais não darem conta dos criminosos. Assim, são pagos
prêmios como recompensa para os caçadores que conseguirem prender tais
infratores. Bem ao estilo faroeste. Os personagens principais de Cowboy Bebop são uma turma desses
especialistas em prender bandidos.
Os protagonistas são cinco: Spike Spiegel, um
jovem habilidoso com naves e armas, que possui um passado obscuro e ainda
aberto para se resolver; Jet Black, um ex-policial, o segundo mais velho do grupo
— também não há muitas informações sobre o seu passado; Faye Valentine,
embora tenha a aparência de uma jovem linda, é a mais velha do grupo, pois perdeu a memória num
acidente há 50 anos, mas o seu corpo foi congelado e anos
depois, revivido; Ed, uma criança nerd,
capaz de hackear quase todo sistema de
computador; e, por fim, Ein, um cachorro muito inteligente. Todos são
tripulantes da nave Bebop. Porém, não
se conhecem logo no primeiro episódio (exceto Spike e Jet), somente aos poucos,
com o desenrolar da trama.
Como deu para perceber, os nomes não são
orientais, mas, sim, ocidentais. Não só isso, o visual dos personagens e dos
cenários também é americanizado. O animê possui apenas 26 episódios e um filme
(produzido pelo estúdio Bones e distribuído pela Sony), no entanto, o conteúdo
e as referências utilizadas são enormes.
A primeira delas é o nome dos episódios, quase
todos relacionados à música e a bandas. Na ordem: 1 – Asteroid Blues (Blues é
um gênero musical), 2 – Stray Dog Strut
(um trocadilho com o título da música Stray
Cat Strut, da banda Stray Cats), 3 – Honky
Tonk Woman (nome de uma música dos Rolling Stones), 6 – Sympathy for the devil (idem), 7 – Heavy Metal Queen (Heavy Metal é um gênero musical), 10 – Ganymede Elegy (Elegia é um gênero musical), 11 – Toys in the Attic (nome de um álbum e de uma música do Aerosmith), 12 e 13 – Jupiter
Jazz (Jazz é um gênero musical),
14 - Bohemian Rhapsody (título de uma música do Queen),
16 - Black Dog Serenade (Black Dog é uma música do Led Zeppelin),
17 – Mushroom Samba (Samba é um
gênero musical), 19 – Wilde Horses (nome de uma música dos Rolling Stones), 21 – Boogie Woogie Feng Shui (Boogie Woogie
é um gênero musical), 22 – Cowboy Funk
(Funk é um gênero musical — e não é o
brasileiro, não, hein?!), 23 – Brain
Scratch (talvez seja referência à música Brain Damage, do Pink Floyd), 24 - Hard Luck Woman (título de uma música do KISS) e 25 e 26 – The Real Folk Blues (Folk
é um gênero musical e Blues também).
Além disso, o nome do filme é Knockin’ on
Heaven’s Door, que também é o nome da famosa música do Bob Dylan.
Os nomes dos outros episódios também devem
fazer referências a outros gêneros, artistas e músicas que não conheço.
Afinal, não sou especialista em análises e nem conhecedor de tudo o que é
arte.
Obviamente, toda obra-prima liga entre si o conteúdo
e a forma, por isso, não basta ter nomes de músicas relacionadas ao Rock, ao
Blues e ao Jazz, mas é preciso conter esses elementos dentro da obra. É o que
acontece com Cowboy Bebop, um anime
com uma das melhores soundtracks que
eu já assisti e ouvi. É claro que essa sonoridade é para nos remeter aos filmes
de cowboys do velho oeste, embora o
contexto da história se passe no futuro e no sistema solar (a forma é
diferente, mas a ação é a mesma: perseguição de foras-da-lei).
O anime também faz referências — implícitas e
explícitas — a alguns filmes antigos, a outras músicas (além daquelas que nomeiam os
episódios), a livros, a contos e a escritores. Há um momento, por exemplo, em
que todos os personagens comem cogumelos e têm alucinações. Spike sobe uma
escada infinita quando, de repente, aparece um sapo que diz que aquilo é uma
escada para o céu. “Escada para o céu” é “Stairway to heaven” em inglês, título
de uma música do Led Zeppelin. Na mesma sessão (que é como os capítulos são chamados
em Cowboy Bebop), há um muro escrito
“Mobi Dik”, que faz referência ao livro Moby
Dick, do escritor Herman Melville. Obviamente,
aliado ao conteúdo do livro de Mellville, o cenário se passa num local onde há
peixes (como podemos notar escrito no muro ao lado esquerdo e acima do “Mobi
Dik”: Pescaderia).
Em outro episódio, Spike está lendo um livro
chamado Walking on the moon (que
também é uma música da banda The Police). Já em outra passagem, Jet Black cita
o escritor alemão Goethe. E essas são apenas algumas das intertextualidades que
notei. Com certeza, há muito mais.
Coincidência ou não, há um personagem no
segundo episódio de Cowboy Bebop que
nos lembra muito o Leorio, do animê Hunter
X Hunter (de Yoshihiro Togashi), embora este último tenha sido exibido um ano
mais tarde, em 1999. O que muda é que Leorio é um dos protagonistas de HxH, enquanto o personagem de Cowboy Bebop é apenas mais um. Porém, é
interessante a semelhança entre ambos: os dois carregam maletas, usam óculos,
são atrapalhados e aparecem pela primeira vez (no caso do personagem de Cowboy Bebop, pela única vez) em episódios que há animais.
Também é curioso notarmos o uso de locais
reais do nosso sistema solar, embora desconhecidos por muita gente. Ganímedes e
Europa, por exemplo, que são realmente satélites naturais de Júpiter, no anime
são cidades.
Deixando de lado essas influências, o que eu
mais gostei na obra, além das batalhas, do visual e da comicidade, foi a
coerência simbólica dentro dos próprios episódios. Na sessão 5, Ballad of fallen angels, temos um pouco
da explicação do primeiro capítulo e da vida passada de Spike Spiegel.
Conhecemos o seu antigo amigo (e agora inimigo) Vicious. Os próprios nomes são
simbólicos. Vejamos.
Na primeira vez que Spike aparece, relembra
momentos entre tiros e flores. As flores remetem-nos à morte. O que é que Spike
sempre diz? Que já morreu uma vez. Ele sempre se lembra da sua amada Julia,
que depois conhecemos e percebemos que ela mesma é comparada a uma flor, de tão
linda e aparentemente delicada. Spike, como seu nome diz, é o cravo.
O passado e o presente de Julia, Spike e
Vicious estão ligados. Vicious, como o próprio nome sugere, é o mal da
história, o que se rebelou contra o próprio sistema (a que chamam de Sindicato)
e traiu todas as pessoas próximas. De cabelo cinza (o que pode nos remeter à
frieza de sua personalidade) e sempre acompanhado por corvos (que também podem significar a morte), Vicious utiliza-se de uma espada como arma. Diferente de
Spike, que só usa armas de fogo.
É interessante notarmos que nesses episódios 5
e 6 há muitas cartas de Ás de Espada. Primeiramente, o jogo de cartas é
considerado por muitos como um vício (assim, alia-se ao personagem Vicious). Em
segundo lugar, diz-se que a carta possui muitos significados, que foram mudando
ao longo do tempo, porém, ainda assim, o Ás de Espada está relacionado aos conflitos, à morte e às perdas. Então, lembremos: Spike já foi considerado
morto, Vicious usa uma espada (e está sempre com um corvo por perto), um deseja
matar o outro e a carta pode significar o corte da relação entre ambos.
Não só isso: o episódio chama-se Ballad of fallen angels, isto é, a
balada dos anjos caídos. Os dois personagens não são mais o que costumavam ser,
ambos lutam dentro de uma igreja, que, por sua vez, traz-nos a história bíblica
da criação e da traição (vício) de Lúcifer, o anjo caído. No entanto,
ironicamente, quem cai do vitral é o Spike... No final, causada por Faye
Valentine, temos uma queda de plumas brancas sobre Spike, o que nos lembra
penas de anjos... E que também nos lembra a queda das pétalas de rosas jogadas
por Júlia, no passado. Além da chuva, que houve no pretérito, que há agora e que pode significar mudança, purificação ou um ciclo.
Nesse mesmo episódio, por Spike ter ido
resolver seus assuntos pessoais sozinho, Jet fica com raiva; e quando Faye pede
ajuda para salvar Spiegel, Jet, que estava aparando os galhos de um bonsai
(pequena árvore oriental), acaba cortando um galho e nega a ajuda. Depois, muda
de ideia e vai atrás do amigo. Esse corte do galho, ocasionado sem querer, pode
significar o quase rompimento da amizade entre os dois: negar ajuda é cortar um
galho da árvore que dentro da nave todos são. Coerência extrema.
Outro capítulo simbólico é o 18, “Fale como
uma criança”, o qual é iniciado com Jet narrando um conto oriental à criança
Ed. O conto traz a história de um pescador que não envelheceu (ao mesmo tempo,
Spike está pescando ao lado de Jet e Ed...). Em seguida, recebem uma fita
cassete (não se sabe de quem) endereçada à Faye Valentine. Porém não existem
mais fitas, muito menos os aparelhos para reproduzi-las. Agora tudo é gravado
em CDs (os tripulantes da Bebop nem
sonhavam com as nossas atuais nuvens)!
Assim, partem para o único lugar tão atrasado que pode possuir um aparelho
desses: a Terra!
Ao conseguirem-no, veem que é uma mensagem
gravada há anos... Incrivelmente, pela Faye e suas amigas (hoje, todas idosas)!
Uma mensagem destinada a elas mesmas, porém, anos depois. Contudo, como foi
dito no início do texto, Faye perdeu a sua memória e não se lembra de nada... É
muito triste ver que algumas pessoas perderam as suas memórias e, assim, a sua
identidade. Uma Faye adulta sem conseguir reconhecer ou se lembrar da Faye
adolescente, das amigas, de ninguém... Há disso na vida real também. Capítulo
bem coeso.
Sobre o episódio 23, Scratch Cerebro, deixo apenas essas palavras: “Eles estão apenas
praticando um ato de fé que eles decidiram crer. Por que você acha que as
pessoas acreditam em Deus? É porque elas querem. Não é fácil viver neste mundo
podre, não há nada certo enquanto se vive neste mundo (...) Deus não criou os
humanos. Os humanos criaram Deus. (...) Você sabe qual é a melhor e a pior
criação do ser humano? Televisão. A televisão controla as pessoas usando
informação e rouba os seus sensos de realidade. Sim, agora a televisão é uma
religião por si só. A TV criou pessoas que são facilmente enganadas por
fantasias idiotas”.
Outra sessão muito bem entrelaçada é a 24, Hard Luck Woman. Nele, Faye recupera
parte da memória e vai atrás de onde ela pensa que pertence. Por sua vez, Ed
encontra o seu pai na Terra. O trabalho dele é fazer mapas. Interessante
ligação: enquanto um faz mapas, a filha acha o pai e Faye procura o seu lugar
no mundo. Ora, o mapa é um instrumento de localização. Ao mesmo tempo, o pai de
Ed dá ovos a Jet e a Spike. Claro, os ovos são o princípio da vida, que nos
remete à família recém encontrada e à mulher que procura o seu passado para
entender o seu presente. Aliás, esse episódio anuncia o final do curto anime,
que é o Spike resolvendo as suas pendências com Júlia e Vicious.
Não comentarei sobre o que acontece nesses
dois episódios finais, somente sobre a criação de um cenário que achei muito
interessante. Num dos momentos, Spike e Jet conversam e o segundo comenta sobre
um conto em que um gato morre e revive um milhão de vezes, um gato que não
tinha medo de morrer (podemos associar à própria imagem do protagonista), mas
que um dia se libertou desse ciclo.
Agora, o curioso é que “a câmera” mostra os
dois embaixo de um ventilador que gira (observemos o ciclo — tal como o da história narrada por Jet — aqui também) em
sentido anti-horário: assim como Spike fala de seu passado (não do futuro). No
final do conto, ele dá uma resposta inusitada a Jet, assim como a história
caminha para um curso, mas, igualmente ao ventilador, Spike vai ao contrário do
que nós e Jet estávamos pensando. Muito criativo.
Sobre o filme, Knockin’ on Heaven’s Doors, de 2001, há um homem (Vincent Volaju) que foi cobaia de
testes de medicina e deseja se vingar de todos, passando a doença a qual ele é
imune para toda a população. Doença essa que está ligada à nanotecnologia.
Claro, a tripulação da Bebop encarregar-se-á do caso.
Os traços do filme são superiores aos da animação (até porque o longa foi feito três anos depois e por um estúdio melhor, que é o Bones) e a trilha sonora continua impecável. Falta um pouco (só um pouco) de Jazz e Blues, mas que são compensados pelos corais (que combinam com as palavras ditas pelo antagonista: céu, inferno, purgatório, Halloween etc).
Os traços do filme são superiores aos da animação (até porque o longa foi feito três anos depois e por um estúdio melhor, que é o Bones) e a trilha sonora continua impecável. Falta um pouco (só um pouco) de Jazz e Blues, mas que são compensados pelos corais (que combinam com as palavras ditas pelo antagonista: céu, inferno, purgatório, Halloween etc).
Também é interessante notarmos que uma das
ruas que Spike passa ao lado chama-se La
Fontaine. La Fontaine, sabemos, foi um grande e importante fabulista do
século XVII. Além disso, há a citação de feijões por alguns vendedores que
parecem árabes (porém, esses personagens, com certeza, são para serem
relacionados a terroristas... — Vincent é considerado um terrorista — Olhemos a ideologia aqui...). Embora a história de João e o pé de feijão seja inglesa e
tenha ficado famosa a partir do século XVIII e XIX, os orientais foram grandes
fabulistas também. E o pé de feijão levava ao céu, lugar ao qual o antagonista
deseja ir (e o próprio nome do filme nos remete a isso: Batendo na porta do céu
— Knockin’ on Heaven’s Door). Filme
muito bem feito. Também há a metáfora das borboletas, mas que deixarei para
quem for atrás...
Em suma, é isso. Um animê obrigatório para
todos os apreciadores de animações japonesas, um clássico repleto de
referências a diversas artes e culturas (mas principalmente à americana); muito
bem elaborado, tanto em imagem quanto em conteúdo, cheio de sublimes reflexões
sobre a liberdade, a solidão, o sentimento de pertencimento, o
existencialismo etc. Os personagens são carismáticos (exceto a Ed, que chega a ser irritante, às vezes... — porém, não devemos nos esquecer que ela é apenas uma criança, logo, normal) e não
estereotipados. Além disso, é preciso ressaltar a
presença de muitos personagens negros nas diversas posições, não só como
foragidos, mas como médicos, advogados, apresentadores de TV, policiais etc., o
que não é comum no universo dos animês. Tudo acompanhado sempre de muita ação,
lutas e momentos cômicos. E, claro, uma das melhores trilhas sonoras de todos
os animês, muito Blues e Jazz (e Heavy Metal em um dos episódios).
(Abertura de Cowboy Bebop)
Obviamente, não comentei sobre todos os
episódios e nem sobre todo o conteúdo dos capítulos que escolhi falar (sou
apenas um apreciador de animês, não um crítico e especialista — muito menos um
caçador de easter-eggs!). É uma obra
que deve ser vista muito mais vezes para a entendermos melhor, então, assim que
puderem, vejam-na.