AKIKO, Yosano. Descabelados.
Tradução, introdução e notas de Donatella Natili e Álvaro Faleiros. Brasília:
Universidade de Brasília, 2007. (Coleção Poetas do Mundo)
A Poesia é uma arte muito
sutil, mas quando se fala de literatura japonesa, vinda de uma sociedade tão
distante e diferente da ocidental, essa sutileza ganha contornos ainda mais
sublimes, como é o caso da obra de Yosano Akiko (1878 – 1942), escritora que,
só pelo título de um livro, já se tornou, na época, contestadora social.
Mideragami, publicado originalmente em 1901, traduzido
para o português como “Descabelados” (2007), é considerado, no Japão, um dos
cem livros mais importantes do século XX, pela ousadia da autora, que usou um
gênero textual tradicional, o tanka, com uma abordagem de conteúdo totalmente
nova e considerada imoral para a época.
Para quem não sabe, o
tanka é um poema que tem como estrutura cinco versos, possuindo,
respectivamente, cinco, sete, cinco, sete e sete sílabas. Pode-se dizer que é um
haicai acrescentado de dois versos de sete sílabas e, tal como o gênero citado,
o tanka também aborda questões relacionadas à descrições da natureza. Portanto,
vê-se que é um poema rígido, o qual Yosano Akiko utiliza de forma diferente da
proposta.
A sublime distorção,
contestação e inovação da poetisa já começam ao contrapor forma e conteúdo: se
o tanka é um gênero tradicional, duro, ao usar a imagem de uma mulher
descabelada, Akiko cria estranhamentos dentro e fora do texto: primeiro, porque
o cabelo solto de uma mulher no Japão daquela época não era bem visto, pois
subjetivamente indicava ou erotismo ou desordem; segundo, porque dentro da
estrutura formal do poema está uma representação informal, descabelada (com
toda sua carga subjetiva), contrastando a regra. Como diz Álvaro Faleiros,
escritor das notas de Descabelados (2007): “O escândalo causado pelos
textos de Akiko deveu-se ao fato de a poeta utilizar-se de uma forma clássica e
introduzir uma temática inusitada, erótica e altamente subversiva para os
padrões tanto estéticos como morais do Japão” (p. 44).
Quanto à estrutura dos
poemas que serão mostrados, é necessário ressaltar que os tradutores optaram
por seguir a própria técnica japonesa, isto é, diferente da contação de sílabas
portuguesas, que só vai até a última tônica, traduziram os tankas de forma que
cada verso tenha cinco ou sete sílabas até o fim, não importando onde se
encontra a mais forte, seja a palavra oxítona, paroxítona ou proparoxítona. Ao
serem transpostos para cá, essas questões serão melhor percebidas.
Além disso, esta edição da
Universidade de Brasília traz, nas folhas esquerdas (e, melhor ainda, no canto
direito da folha esquerda, que é a ordem da leitura japonesa), o texto
original, em japonês, o que é muito útil para quem deseja estudar o idioma ou
ter contato com a fonte primária. A seguir, alguns poemas e interpretações.
1.
cabelos negros
são mil longos
cabelos
descabelados
mente descabelada
descabelada mente
Antes de começar a análise,
é preciso deixar claro que o poema foi alinhado à direita para reproduzir a
forma como foi escrito no livro e dar, mesmo que levemente, a impressão que se
tem ao ler em japonês, que, diferentemente do modelo ocidental de leitura, lê-se
da direita para a esquerda. Os espaços “exagerados” seguem a mesma linha e servem
como lacunas e pausas subjetivas, tal como estão no texto original. Como se vê,
o tanka tem cinco versos, possuindo, respectivamente, 5, 7, 5, 7 e 7 sílabas,
não se contando apenas até a tônica, mas absolutamente todas. Os poemas não
começam com letra maiúscula e nem possuem ponto final.
Já sobre o conteúdo, tem-se
a descrição dos cabelos negros (cor predominante nos povos asiáticos),
descabelados, o que pode representar tanto algo físico quanto um reflexo
emocional do eu-lírico que, em seguida, descreve que a mente também está
descabelada, ou seja, confusa. É importante perceber o movimento das palavras
nos dois últimos versos, que sugerem o próprio balanço do cabelo e a
instabilidade psicológica: mente
descabelada / descabelada mente.
Como já foi mencionado antes, a desordem do cabelo, no Japão, é símbolo de
erotismo.
3.
ouça o poema
como negar o
carmim
da flor do
campo?
delícias a
menina
pecar na primavera
Este poema pode parecer
simples, mas possui suas sutilezas. Em primeiro lugar, o imperativo “ouça”, que
ordena que se dê atenção ao texto; em seguida, uma pergunta retórica sobre a
cor da flor (sinônimo de beleza) do campo, “carmim”, isto é, vermelho, que, por
sua vez, pode significar a cor do amor. Como negar este sentimento? Como negar
os sentidos? É preciso lembrar que no passado (e até em alguns casos no
presente), não só no Japão, mas no mundo todo, os casamentos eram arranjados. A
primavera, estação das flores, do encanto e da juventude, então, é o tempo bom (“delícias”)
para se rebelar contra o que é imposto socialmente, para se fazer o que é
considerado “pecado” — aliás, o uso esta palavra pode remeter a uma influência
cristã na vida da poetisa.
4.
lá mergulhada
no fundo da
nascente
a flor de
lírio
corpo de vinte
verões
vejo assim tão
bonito
Aqui, pode parecer comum,
um eu-lírico que se orgulha da sua própria beleza, com seus vinte anos de idade
(“vinte verões”), comparando-se a uma flor de lírio, no entanto, como diz a
tradutora desta edição, Donatella Natili: “Tradicionalmente, uma das maiores
virtudes das mulheres japonesas era a modéstia” (p. 114). O que hoje é
considerado normal, ter orgulho de si mesmo e descrever o próprio corpo
feminino, na época era considerado uma afronta, além de ser um despertar para questões
do ego, logo, de certa forma, um início de modernidade. Por essas e outras
questões, Yosano Akiko é considerada uma pioneira do feminismo no Japão.
A tradução também merece
ser elogiada, por produzir efeitos estético-sonoros que contribuem para a graça
de ler o poema. Perceba a rima interna entre “flor” e “CORpo”, além da
aliteração (repetição de letras) em /v/, com “VINte VErões” e “VEjo”.
8.
mamilos duros
revelam-se os
mistérios
tão docemente
uma flor desabrocha
vem tingida de
carmim
Ousadia, inocência e
beleza natural. Se até hoje é considerado tabu falar sobre sexo, imagine uma
mulher, numa sociedade tradicional como a japonesa, em 1901, escrever sobre o
tema. Os mamilos duros representam a excitação feminina, a flor pode ser
metáfora para a vagina, tingida do supracitado carmim, vermelho, isto é, o
sangue da primeira relação sexual de uma moça jovem a quem ainda os mistérios
da sexualidade estão se revelando — para o seu prazer, “docemente”.
Último poema a ser
comentado, pois o livro, embora bom, só traz 30 tankas:
20.
uma lágrima
eu assim derramada
sem saber
secar
nessa água solitária
reluz a lua cheia
Este texto é de uma
tremenda imagem sensível e os tradutores conseguiram fazer um excelente
trabalho aqui, que reforça a mensagem. Uma descrição do eu-lírico chorando sob
a lua cheia que, por sua vez, é vista no reflexo das lágrimas de tristeza,
visto os adjetivos usados, “derramada” e “solitária”. A angústia é tanta que
não apenas a lágrima cai, mas o próprio eu-lírico se sente “derramado (a)” e
não consegue (se) secar. Além disso, observe essa aliteração em /s/: SEM SAber
SEcar / SOlitária, que sugere o soluço do choro. Ainda sobre a estética que
reforça o conteúdo, perceba a assonância (repetição de vogais) da letra “a”
presente em todos os versos, o que manifesta a claridade da lua nesta vogal
aberta. Brilhante!
Como pode ser observado,
Yosano Akiko foi uma poetisa sensível, contestadora e revolucionária em seu
contexto, não apenas na sua obra, mas na vida como um todo (que está resumida
no livro). Os seus textos têm estrutura rígida e sentimentos íntimos expostos, com
toques de inocência e audácia ao mesmo tempo, o que torna a escritora dialética.
A antologia da editora UnB
conta, ainda, com dezenas de páginas de estudo, tanto sobre a autora e a obra,
quanto sobre o gênero tanka e modos de tradução, além dos poemas no idioma
original, o que enriquece bastante a compreensão, interpretação e análise dos
textos, e toda a bibliografia utilizada e recomendada para quem deseja se
aprofundar nas pesquisas do ramo. Poderia contar com mais poemas da autora,
pois foram apenas 30, mas já é um começo para conhecer e buscar aprender mais
sobre a literatura japonesa.
Antônio Carlos da Silva
Siqueira Júnior é graduado em Letras pela Faculdade de Santo André – Santo André
– São Paulo.