Este texto é parte modificada
do último trabalho feito para o curso de Letras – Português, Inglês e
respectivas literaturas, da Faculdade de Santo André, no segundo semestre de
2017.
Análise do poema A terra das crianças pretas, de Paulo Franco
Paulo Franco é um escritor contemporâneo, iniciou sua carreira ainda na
infância; por volta dos catorze anos, um de seus poemas tornou-se o primeiro
hino do município Rio Grande da Serra, local onde morava. Vencedor de muitos
concursos literários no país, sua obra revela uma indignação com a sociedade,
com a pobreza, com o preconceito, com a alienação e, ao mesmo tempo, um encanto
pelas pequenas imagens do dia-a-dia e pelos sonhos. Seus versos variam entre os
brancos e os rítmicos sonoros, vão do belo ao trágico.
A terra das crianças pretas, poema contido no livro Pétalas de Insônia, de 1999, traz à tona uma infeliz realidade: a
exclusão do negro na sociedade, que persiste desde a época em que o Brasil era
uma colônia escravista. A seguir, o poema e a sua análise:
A terra das crianças pretas
E os soldados brancos
sentinelam as
crianças pretas.
E as crianças pretas
já não brincam de
marchar
e observam os
desfiles
dos soldados brancos.
E os soldados brancos
nunca brincam
vigiando
esta terra de
crianças pretas.
E as crianças pretas
se acostumam a jamais
serem soldados
e só brincam de
crianças pretas
dominadas por
soldados brancos.
...Pois que ser
soldado
deve ser só para
crianças brancas
que já nascem
dominando
até os sonhos das
crianças pretas.
É interessante o fato de o poema começar com a conjunção “E”, pois dá a
impressão de que o que virá a seguir é uma continuação de um acontecimento que
já ocorreu ou que ainda insiste, o que, realmente, o é: “E os soldados
brancos / sentinelam as crianças pretas” (FRANCO, 1999, p. 3): são os negros
que até hoje são vigiados por soldados, guardas, policiais e pessoas brancas.
Por outro lado, “as crianças pretas / já não brincam de marchar / e
observam os desfiles / dos soldados brancos” (idem, ibidem, p. 3). São versos
que denotam a forma como as crianças negras, desde pequenas, acostumam-se à
passividade, à exclusão, a apenas serem observadas e, assim, deixam até mesmo
de brincar, de se divertir, de ser sujeitos que agem; enfim, passam apenas a
ser espectadores.
É necessário lembrar que a brincadeira das crianças pretas, às vezes,
também é interrompida pela realidade pobre, muitas vezes presente em suas
vidas, quando perdem a infância para trabalharem e ajudarem a sustentar as suas
famílias. Por serem menores de idade, obviamente, o trabalho é ilegal, o que
gera mais desconforto e permite mais abusos, ocasionados pela discriminação. Em
suma, trocam o mundo lúdico das crianças pelo mundo do trabalho dos adultos.
Já os soldados brancos “nunca brincam / vigiando / esta terra de
crianças pretas.” (idem, ibidem, p. 3). Os soldados, os guardas, os policiais,
são agentes do sistema, perpetuam-no, dão continuidade à exclusão dos negros e
ao preconceito, posto que não abrem os seus olhos para o diferente ou mesmo para
a compreensão de sua própria realidade.
No entanto, eles também são vítimas do próprio sistema, pois os soldados
são, de certa forma, alienados, que apenas seguem ordens de sentinelar as
crianças pretas e nunca se questionam sobre o porquê de estarem fazendo o que
fazem. Pela descrição do eu-lírico, são sérios, nunca brincam, apenas
trabalham.
A quarta estrofe confirma que “as crianças pretas / acostumam-se a
jamais serem soldados / e só brincam de crianças pretas / dominadas por
soldados brancos.” (idem, ibidem, p. 3). Desta forma, com a existente e
persistente opressão que há sobre elas, desistem de seus sonhos. A brincadeira
deixa de ser marchar e passa a ser observar a marcha dos brancos, “... Pois que
ser soldado / deve ser só para crianças brancas / que já nascem dominando / até
os sonhos das crianças pretas” (FRANCO, 1999, p. 3).
Semanticamente e esteticamente, é interessante perceber que este jogo de
palavras criado pelo poeta, esta repetição dos vocábulos “soldados brancos” e
“crianças pretas”, que se intercalam ao longo dos versos e estrofes, sugere a
própria marcha dos soldados, para lá e para cá. Outro ponto a ser considerado é
que o adjetivo “pretas” aparece mais vezes (seis, ao todo) do que o “brancos”
(quatro vezes — cinco, se contar com a variação “branca”, no décimo sexto verso),
o que remete à população brasileira, onde há mais negros do que brancos, mas
estes sempre dominaram aqueles (antes, fisicamente; agora, simbolicamente).
Além disso, o uso contínuo dos termos “soldados brancos” e “crianças
pretas”, sem sinônimos, elipses ou troca por pronomes, pode manifestar a ideia
de que a descrição dessa realidade é feita justamente por uma criança, que
ainda não utiliza de forma eficaz e sem redundância a linguagem.
É um poema que explicita um determinismo social, uma predestinação para
cada pessoa: melhores para os brancos, piores para os negros. Este
determinismo, no Brasil, acontece desde quando o país era uma colônia, quando o
branco tinha escravos negros (bem como índios), quando os filhos destes já
nasciam escravos daqueles também, exceto se fossem filhos — frequentemente nascidos
sob abusos sexuais — da escrava com o “senhor” branco, pois, nesses casos,
estariam livres.
Já na época da escravidão existiam os soldados brancos, os capitães do mato, os caçadores de escravos,
que vigiavam as crianças, os jovens e os adultos negros; que se sentiam alheios
às dores e à falta de liberdade dos semelhantes; que se achavam superiores a
eles, simplesmente pela cor da pele, o que lhes rendiam classes sociais distintas.
Aliás, é importante notar que o eu-lírico de Paulo Franco não utiliza a
palavra “negras”, mas “pretas”, o que pode indicar que, para o eu-lírico, só há
uma raça, a humana, não a “branca” ou a “negra”, como alguns dizem até hoje.
Dentro desta única raça, há os
brancos (soldados) e os pretos (crianças pobres).
No entanto, essa separação denota que, mais do que racial, há uma separação social, as crianças brancas já
nascem dominando os sonhos das crianças negras, dominando como os soldados
brancos dominam as ações das crianças pretas. As brancas poderão e serão
líderes e livres; as negras, lideradas e vigiadas; as brancas podem brincar do
que quiserem, têm acesso à escola e à boa alimentação; as negras, quase sempre,
não.
É desta maneira que a terra de
crianças pretas é criada. Não é um local específico, mas qualquer um feito
através da segregação, do preconceito, da opressão. As favelas não foram
criadas por livre e espontânea vontade, mas porque eram os locais onde os
brancos não queriam morar, eram os restos,
eram as margens da sociedade (daí a palavra “marginal”); era para onde os
negros “livres” se refugiaram após a sua “libertação” (que só lhe deu o nome de
“livre”, mas não lhe deu emprego, moradia, educação, vestimentas, alimentação,
nada). Obviamente, se uma terra de crianças pretas é criada, por outro lado,
uma terra das crianças brancas também o é, sempre o oposto da primeira.
Assim, a mímesis continua a
acontecer: se as crianças brancas veem que só há soldados brancos, líderes
brancos, presidentes brancos, atrizes e atores brancos, apresentadores de
televisão brancos, acostumam-se e acreditam que é seu direito sê-los, quando,
na verdade, é um privilégio. A criança negra, ao não ver ninguém de sua cor e
de sua classe social nesses locais, quando a “representação” dos seus aparece apenas
como empregados passivos ou vítimas, ela também se acostuma à situação.
REFERÊNCIAS
FRANCO, Paulo. Pétalas de Insônia. São
Paulo: C. Cranchi, 1999.