terça-feira, 30 de julho de 2019

Análise do poema A terra das crianças pretas, de Paulo Franco


Este texto é parte modificada do último trabalho feito para o curso de Letras – Português, Inglês e respectivas literaturas, da Faculdade de Santo André, no segundo semestre de 2017.

 

Análise do poema A terra das crianças pretas, de Paulo Franco


Paulo Franco é um escritor contemporâneo, iniciou sua carreira ainda na infância; por volta dos catorze anos, um de seus poemas tornou-se o primeiro hino do município Rio Grande da Serra, local onde morava. Vencedor de muitos concursos literários no país, sua obra revela uma indignação com a sociedade, com a pobreza, com o preconceito, com a alienação e, ao mesmo tempo, um encanto pelas pequenas imagens do dia-a-dia e pelos sonhos. Seus versos variam entre os brancos e os rítmicos sonoros, vão do belo ao trágico.

A terra das crianças pretas, poema contido no livro Pétalas de Insônia, de 1999, traz à tona uma infeliz realidade: a exclusão do negro na sociedade, que persiste desde a época em que o Brasil era uma colônia escravista. A seguir, o poema e a sua análise:

A terra das crianças pretas


E os soldados brancos
sentinelam as crianças pretas.
E as crianças pretas
já não brincam de marchar
e observam os desfiles
dos soldados brancos.

E os soldados brancos
nunca brincam
vigiando
esta terra de crianças pretas.

E as crianças pretas
se acostumam a jamais serem soldados
e só brincam de crianças pretas
dominadas por soldados brancos.

...Pois que ser soldado
deve ser só para crianças brancas
que já nascem dominando
até os sonhos das crianças pretas.

É interessante o fato de o poema começar com a conjunção “E”, pois dá a impressão de que o que virá a seguir é uma continuação de um acontecimento que já ocorreu ou que ainda insiste, o que, realmente, o é: “E os soldados brancos / sentinelam as crianças pretas” (FRANCO, 1999, p. 3): são os negros que até hoje são vigiados por soldados, guardas, policiais e pessoas brancas.

Por outro lado, “as crianças pretas / já não brincam de marchar / e observam os desfiles / dos soldados brancos” (idem, ibidem, p. 3). São versos que denotam a forma como as crianças negras, desde pequenas, acostumam-se à passividade, à exclusão, a apenas serem observadas e, assim, deixam até mesmo de brincar, de se divertir, de ser sujeitos que agem; enfim, passam apenas a ser espectadores.

É necessário lembrar que a brincadeira das crianças pretas, às vezes, também é interrompida pela realidade pobre, muitas vezes presente em suas vidas, quando perdem a infância para trabalharem e ajudarem a sustentar as suas famílias. Por serem menores de idade, obviamente, o trabalho é ilegal, o que gera mais desconforto e permite mais abusos, ocasionados pela discriminação. Em suma, trocam o mundo lúdico das crianças pelo mundo do trabalho dos adultos.

Já os soldados brancos “nunca brincam / vigiando / esta terra de crianças pretas.” (idem, ibidem, p. 3). Os soldados, os guardas, os policiais, são agentes do sistema, perpetuam-no, dão continuidade à exclusão dos negros e ao preconceito, posto que não abrem os seus olhos para o diferente ou mesmo para a compreensão de sua própria realidade.

No entanto, eles também são vítimas do próprio sistema, pois os soldados são, de certa forma, alienados, que apenas seguem ordens de sentinelar as crianças pretas e nunca se questionam sobre o porquê de estarem fazendo o que fazem. Pela descrição do eu-lírico, são sérios, nunca brincam, apenas trabalham.

A quarta estrofe confirma que “as crianças pretas / acostumam-se a jamais serem soldados / e só brincam de crianças pretas / dominadas por soldados brancos.” (idem, ibidem, p. 3). Desta forma, com a existente e persistente opressão que há sobre elas, desistem de seus sonhos. A brincadeira deixa de ser marchar e passa a ser observar a marcha dos brancos, “... Pois que ser soldado / deve ser só para crianças brancas / que já nascem dominando / até os sonhos das crianças pretas” (FRANCO, 1999, p. 3).

Semanticamente e esteticamente, é interessante perceber que este jogo de palavras criado pelo poeta, esta repetição dos vocábulos “soldados brancos” e “crianças pretas”, que se intercalam ao longo dos versos e estrofes, sugere a própria marcha dos soldados, para lá e para cá. Outro ponto a ser considerado é que o adjetivo “pretas” aparece mais vezes (seis, ao todo) do que o “brancos” (quatro vezes — cinco, se contar com a variação “branca”, no décimo sexto verso), o que remete à população brasileira, onde há mais negros do que brancos, mas estes sempre dominaram aqueles (antes, fisicamente; agora, simbolicamente).

Além disso, o uso contínuo dos termos “soldados brancos” e “crianças pretas”, sem sinônimos, elipses ou troca por pronomes, pode manifestar a ideia de que a descrição dessa realidade é feita justamente por uma criança, que ainda não utiliza de forma eficaz e sem redundância a linguagem.

É um poema que explicita um determinismo social, uma predestinação para cada pessoa: melhores para os brancos, piores para os negros. Este determinismo, no Brasil, acontece desde quando o país era uma colônia, quando o branco tinha escravos negros (bem como índios), quando os filhos destes já nasciam escravos daqueles também, exceto se fossem filhos — frequentemente nascidos sob abusos sexuais — da escrava com o “senhor” branco, pois, nesses casos, estariam livres.

Já na época da escravidão existiam os soldados brancos, os capitães do mato, os caçadores de escravos, que vigiavam as crianças, os jovens e os adultos negros; que se sentiam alheios às dores e à falta de liberdade dos semelhantes; que se achavam superiores a eles, simplesmente pela cor da pele, o que lhes rendiam classes sociais distintas.

Aliás, é importante notar que o eu-lírico de Paulo Franco não utiliza a palavra “negras”, mas “pretas”, o que pode indicar que, para o eu-lírico, só há uma raça, a humana, não a “branca” ou a “negra”, como alguns dizem até hoje. Dentro desta única raça, há os brancos (soldados) e os pretos (crianças pobres).

No entanto, essa separação denota que, mais do que racial, há uma separação social, as crianças brancas já nascem dominando os sonhos das crianças negras, dominando como os soldados brancos dominam as ações das crianças pretas. As brancas poderão e serão líderes e livres; as negras, lideradas e vigiadas; as brancas podem brincar do que quiserem, têm acesso à escola e à boa alimentação; as negras, quase sempre, não.

É desta maneira que a terra de crianças pretas é criada. Não é um local específico, mas qualquer um feito através da segregação, do preconceito, da opressão. As favelas não foram criadas por livre e espontânea vontade, mas porque eram os locais onde os brancos não queriam morar, eram os restos, eram as margens da sociedade (daí a palavra “marginal”); era para onde os negros “livres” se refugiaram após a sua “libertação” (que só lhe deu o nome de “livre”, mas não lhe deu emprego, moradia, educação, vestimentas, alimentação, nada). Obviamente, se uma terra de crianças pretas é criada, por outro lado, uma terra das crianças brancas também o é, sempre o oposto da primeira.

Assim, a mímesis continua a acontecer: se as crianças brancas veem que só há soldados brancos, líderes brancos, presidentes brancos, atrizes e atores brancos, apresentadores de televisão brancos, acostumam-se e acreditam que é seu direito sê-los, quando, na verdade, é um privilégio. A criança negra, ao não ver ninguém de sua cor e de sua classe social nesses locais, quando a “representação” dos seus aparece apenas como empregados passivos ou vítimas, ela também se acostuma à situação.

REFERÊNCIAS


FRANCO, Paulo. Pétalas de Insônia. São Paulo: C. Cranchi, 1999.