Os
jogos podem refletir a nossa realidade ou as nossas vontades; o xadrez, por
exemplo, demonstra um pouco de como era a Idade Média e suas hierarquias, com
torres de castelos, cavalos e bispos; a limitação dos peões, trabalhadores
comuns, que estão sempre à frente das outras peças, prontos para serem
sacrificados, e que só podem andar uma casa por vez, somente para frente ou, em
caso único de captura de outras peças, em diagonal; a liberdade de movimentação
da rainha e toda a estratégia para defender o rei etc. Desconfio até da ordem
de jogada no início da partida (embora isso não seja uma real desvantagem,
dependendo do jogador): primeiro, as brancas; por último, as pretas. Tudo é
simbólico.
Mais
moderno, geralmente jogado por crianças (criado talvez para incentivá-las a
esse contexto), é o Banco Imobiliário, fruto e reflexão de uma realidade não
mais medieval, mas capitalista, burguesa. O nome do jogo em inglês mostra bem o
seu objetivo: Monopoly. Significativo.
Desconhecido,
há um jogo de baralho chamado “Presidente”. Descobri-o em 2007, através de um
amigo que, por sua vez, aprendeu-o com os colegas da irmã mais velha, o que
revela certa idade de existência da brincadeira. As regras são simples:
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Todas as cartas do baralho devem ser distribuídas entre os jogadores.
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O objetivo é acabar com as cartas que estão na mão;
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A ordem é: 3 é mais fraco que o 4, que é inferior ao 5, que perde para o 6, que
é derrotado pelo 7, que é vencido pelo 8, que é batido pelo 9 etc. Em resumo, a carta
mais forte é o 2, enquanto a mais fraca é o 3.
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Se alguém jogar um par, um trio ou um conjunto maior de cartas iguais (cinco
oitos, por exemplo) na rodada, só pode ser vencido por outro jogador que lançar
a mesma quantidade de cartas de valor maior do que o já posto na mesa (por exemplo,
cinco damas).
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Se ninguém conseguir superar a jogada, quem a fez, isto é, o último a jogar,
iniciará uma nova rodada.
Por
fim, os títulos simbólicos:
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Quem acabar primeiro com as cartas que tem na mão vira o Presidente;
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O segundo a terminar as suas cartas torna-se o Vice-Presidente;
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O terceiro é chamado de Nada.
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O penúltimo a finalizar suas cartas é o Vice-Cu.
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O último, o maior perdedor, é o Cu.
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Quanto mais jogadores existirem, mais Nadas existirão.
Postos
os cargos de cada um, na próxima rodada, começa a violência simbólica da vida
real dentro do jogo. O Presidente, por exemplo, deve receber as duas melhores
cartas do Cu, que, por sua vez, recebe as duas piores cartas do Presidente.
Ora, isto nada mais é do que recolhimento de impostos em troca dos piores
serviços. Além disso, o Presidente é o primeiro a jogar, descartando as suas
piores cartas. Quando a rodada chega ao Cu, o valor já está muito alto, quase
impossibilitando o coitado de jogar, já que ele perdeu suas duas melhores cartas
antes do início da partida como tributo ao Presidente.
Os
Vices, tanto o Vice-Presidente quanto o Vice-Cu, também fazem trocas, mas de
apenas uma carta. O primeiro dá a sua pior ao segundo, que lhe dá sua melhor.
Novamente, impostos, mas em escala menor.
Os
Nadas são a representação da verdadeira elite brasileira. Engana-se quem pensa
que quem mandam são os políticos. Não, não. Os Nadas são os burgueses, que
não pagam impostos para ninguém, que “estão fora” do sistema, que não têm
responsabilidade a cumprir, que podem trocar quantas cartas quiserem entre si,
coisa que nenhuma outra posição pode fazer, possuindo, assim, os melhores
combos, e que ainda possuem esse nome, “Nada”, como se fossem neutros na partida.
Tudo
isso acaba criando um determinismo, também existente na sociedade, que
desmistifica a ideia de meritocracia: é muito difícil um Cu, que joga por
último (quando tem poder aquisitivo para jogar!), que recebe
as duas piores cartas do Presidente, que dá as suas duas melhores ao Chefe
do Executivo, subir de posição.
Além
desta perpetuação de classes, há um outro elemento que é uma herança na vida do
brasileiro: o preconceito, a discriminação a quem tem menos poder. Nesse jogo, todo mundo, expondo os seus anseios que
não podem ser realizados no cotidiano, humilha o Cu: xinga-o quando ele demora
para entregar as cartas; joga-as ao chão e manda o pobre pegá-las (arrumar tudo é dever
dele); faz piadinhas sobre sujeira etc.
Em
suma, Presidente é psicologicamente e simbolicamente violentíssimo. Seu inventor é alguém notável! Como todo jogo,
ele revela vontades, realidades e problemas sociais. No Brasil, hierarquia
política, “toma lá, dá cá”, preconceito e determinismo são coisas comuns;
todavia, diz-se também que Deus é brasileiro, então, milagres surgem às vezes. É
por isso que pode acontecer que alguém seja Presidente por quatro ou oito
anos/rodadas e, por diversos motivos, no outro dia/na outra rodada, vire cu;
enquanto alguém que a vida toda foi um cu pode tornar-se Presidente, apesar de,
no fundo, continuar sendo um cu que só fala e faz merda. Há sempre
os seus cegos seguidores, geralmente cus (a identidade é um conceito interessante), que adoram dizer: “Não ligue. Por favor, inicie
o jogo, Presidente...” ou “Nossa, senhor Presidente! Vai deixar passar essa?”.