Escrito
e desenhado por Satsuki Yoshino, Barakamon
é um mangá que teve sua animação em 2014, produzida pelo recente estúdio Kinema
Citrus, mais conhecido agora, por causa do anime Made in Abyss, destacado por muitos como o melhor da temporada de
2017.
O
anime de Barakamon conta com 12
episódios, além de um spin-off
chamado Handa-kun, de 2016 (produzido
pelo estúdio Diomedéa), também de 12 capítulos, que aborda a infância do
protagonista, mas o presente texto discutirá apenas sobre a série de 2014, Barakamon.
A
obra, que oscila entre o slice of life
e a comédia, tem como protagonista Handa Seishu, um calígrafo jovem e
promissor, vencedor de alguns prêmios da arte da bela escrita, o que lhe dá um ar de arrogância, que logo no
primeiro momento do anime é dissipado, quando um dos jurados diz que a letra de
Handa não traz nada novo, apenas segue modelos tradicionais, e lhe pergunta se
o autor já havia tentado escalar “o muro da mediocridade”, ao que o
protagonista não aceita e agride o velho senhor.
É
importante ressaltar essa fala do jurado, porque Barakamon é muito coeso entre a linguagem verbal e a não-verbal, o
que é um ponto muito positivo na obra. Depois do ocorrido, o pai de Handa, um
renomado calígrafo, envia-o para uma ilha, para que o filho descubra mais sobre
a vida e sobre si mesmo. Lá, o protagonista é cercado por gente simples, mais
velha, que nem usa a norma-padrão da língua e que desconhece a cidade grande, e
muitas crianças, que são o fator cômico do anime e, metaforicamente, os
responsáveis pela cor na vida e na obra de Handa. O calígrafo, ao chegar no
local — e até mesmo o telespectador —, pensa que não aprenderá nada, o que não
passa de um ledo engano.
A principal personagem dessa ilha, Naru, é uma menina muito engraçada e animada, que logo no primeiro episódio ensina uma lição muito bonita e importante a Handa e a quem assiste, e que possui total relação com a fala do jurado no começo do anime, tudo conduzido por belas cores e por uma linda trilha sonora. Falar mais do que isso sobre o mesmo capítulo pode diminuir a surpresa.
O
segundo episódio apresenta outro personagem, um rapaz que só tira notas ruins
na escola, embora estude demais e passe noites sem dormir. Ele leva uma
refeição ao protagonista, que está dormindo, o que é motivo de sarcasmo do morador
da vila: “Fica uma noite sem dormir e tem todo esse sono? Eu passo várias
noites acordado e não fico assim. Vida de artista é diferente mesmo...”.
É
um pensamento que parece válido, mas nem sempre o é. Naru, a menina
extrovertida e intrometida, abre um armário e mostra ao rapaz o tanto de
rascunhos que Handa fez durante a madrugada. Não era a intenção dela, mas o adolescente
julgador, neste momento, percebe a besteira que estava falando sobre o
calígrafo e sobre si mesmo, que apenas diz que estuda, mas que não se esforça
de verdade; é por isso que suas notas continuam baixas, é por isso que não
sente sono durante o dia, porque não passa horas da noite realmente desperto. Um
detalhe: os rascunhos do protagonista estavam dentro de um armário, no escuro,
não à mostra de todos. Apenas cada um sabe do seu trabalho e do seu esforço, é
o que o personagem e o telespectador aprendem, além de que não basta talento na
vida, como muitos pensam, principalmente sobre os artistas.
O
terceiro episódio é interessante por causa de uma dupla de rimas. Logo no
início, vê-se Handa finalizando um quadro escrito “Despreocupado”. As obras de
caligrafia, ao menos no anime, são retratadas apenas como uma palavra ou uma
frase, escrita(s) de forma única, com o intuito de passar o sentimento do
momento e da mensagem no código linguístico.
A
questão é que essa obra do protagonista não ganha o concurso ao qual concorre,
e além de ser derrotado por um calígrafo mais jovem, Handa ainda perde para
todos os velhos numa brincadeira da ilha (rima número 1), o que lhe frustra. Está,
aí, então, uma contradição: o personagem principal não estava sendo sincero
consigo mesmo quando escreveu “Despreocupado”, porque ainda estava orgulhoso de
si. Talvez, este seja o motivo de ter perdido; talvez, este seja o motivo de
muita gente perder(-se): levar-se demasiadamente a sério. É preciso ter paciência
e humildade. Lição ensinada pelos simples moradores da vila.
Distintamente,
outro personagem, que já havia aparecido desde o primeiro episódio, é apresentado
mais a fundo. Tamako Arai, uma menina viciada em mangás, revela a Handa a sua
paixão pela arte dos quadrinhos japoneses e a sua vontade de mudar a visão das
pessoas, chocando-as, porque quando ela era jovem, também teve sua visão mudada
através de uma cena chocante que viu num mangá. O curioso é que a moça quer
revolucionar a arte com o seu trabalho, enquanto o calígrafo ainda não
apresentava nada de novo, apenas seguia a tradição. Ainda assim, Tamako, ao emprestar
o seu próprio quadrinho para Handa, entrega-lhe diversos outros, para que o
protagonista entenda a obra dela, isto é, as referências que a aspirante a
artista também segue — entre elas, Soul
Eater e FullMetal Alchemist, dois
grandes nomes da cultura pop
japonesa, dos animes e mangás (rima número 2).
Uma
das lições básicas da história e que também é, de certa forma, um clichê dos
animes, em razão da sociedade nipônica, de seus costumes e valores, é sobre o
esforço e o treino. Num dos episódios, a turma de Handa pede-lhe para ensinar
caligrafia, ao que o mestre ensina o básico da arte e pede para que todos
repitam a mesma frase até ela apareça e soe como da maneira desejada, mas os
jovens acham uma tarefa chata — o que de fato o é — e perguntam se não há um
truque, se ele não pode lhes ensinar o seu estilo pessoal, tal como os quadros
que mantém escondido. Enquanto isso, ao fundo, às escuras, é mostrada uma das
obras do protagonista, “Nulo”. Nada mais coerente, posto que o próprio
calígrafo ainda não tem um estilo próprio, por isso está na ilha, para se
descobrir, porque, por enquanto, ele mesmo se considera nulo.
Ainda
nesse episódio, há um diálogo bonito e reflexivo, quando Handa diz que não pode
mostrar os seus quadros que estão escondidos, tanto porque ainda estão em
desenvolvimento, quanto porque não foram reconhecidos. A pergunta e a resposta
de uma das crianças: “Reconhecidos por quem? Para mim, está muito bom”. Quantas pessoas escondem as suas qualidades e habilidades porque não foram
reconhecidas por um ou outro alguém, enquanto a maioria aos seus redores
admira-as? Quantas vezes o trabalho da subjetividade do autor é rebaixado por
ele mesmo, por causa da interpretação, frequentemente também subjetiva, dos
outros? Geralmente são essas negações da própria pessoa que tornam a sua obra nula.
Em
diversos momentos, em diferentes capítulos, o cenário, além de deixar a imagem
mais bela, revela situações e sentimentos dos personagens, o que é muito comum
na arte cinematográfica. Há um episódio, por exemplo, em que aparecem vários
girassóis, flores (que por si só já significam a beleza e a juventude) que
“seguem o sol”; ao mesmo tempo, surge um fã de Handa, aquele personagem mais jovem
que ganhou do protagonista no último concurso de caligrafia, o que cria uma
rima de imagem: o personagem principal procura uma luz na ilha, busca um sol,
ao mesmo instante, ele é o sol daquele fã, que pretende alcançá-lo e trazê-lo
de volta ao seu posto de primeiro
lugar...
(A opção da câmera, de baixo para cima, mostra a arrogância do jovem calígrafo, ao mesmo tempo, deixa Handa maior do que o fã.)
O
diálogo entre os dois é muito bonito e mostra a evolução de Handa, que era como
o jovem que lhe segue, que, por sua vez, antigamente, apenas seguia seu pai...
O desejo do protagonista, de criar algo novo, de ser único, lembra muito uma epígrafe
do poeta brasileiro Mario Quintana sobre a arte da poesia: “Ser poeta não é
dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.”
(QUINTANA, 2003, p. 76). Pode-se aplicar o mesmo pensamento à caligrafia, que
não se resume a “escrever de forma bonita”.
Todos
os episódios são bem estruturados, fechando bem o ciclo que iniciam. Um deles,
por exemplo, começa de manhã, com o calígrafo regando os girassóis e se
perguntando sobre quem foi que os plantou, depois o foco é mudado para o
aniversário de Naru, a menina sapeca que vive seguindo o protagonista, por fim,
o último ato do capítulo é sobre o aniversário de morte da avó de Naru. Há uma
ordem coesa no episódio: inicia-se pela manhã, com os girassóis, símbolos da
beleza e da juventude, passa para o aniversário da personagem mais nova da
história, à tarde, e termina com a cerimônia da morte de um antepassado da
menina, à noite. Lembra-se do questionamento de Handa no começo do capítulo:
“Quem será que plantou esses girassóis?” Ele também não havia se perguntado
sobre o passado da própria Naru, tal como os espectadores que não conhecem,
muitas vezes, a origem daquilo ou de quem lhes cerca.
Para
finalizar, é necessário mostrar, concretamente, a influência dos cenários, da
utilização de quadros diferentes quando os personagens discordam. Veja, por
exemplo, após essa bela resposta de Handa, iluminado, com os girassóis atrás de
si, o isolamento do seu fã (e também calígrafo) dentro de um quadrado, enquanto o protagonista passa por ele.
(Este diálogo é a prática de uma lição que Handa aprendeu na ilha, sobre ceder o "seu" lugar a quem, no momento, parece ser melhor.)
Ou então, observe a simetria dos girassóis ao fundo, quando o
protagonista e um rapaz da vila (aquele que dizia que estudava demais e só
tirava nota ruim) trocam os seus pratos, mas em seguida, quando um critica a
refeição feita pelo outro, o ângulo da câmera coloca-os separados por uma coluna,
a mesma que isolou o fã de Handa.
(Antes de provarem a comida, um fundo plano, colorido e simétrico.)
(Depois de terem provado e discordado, o foco é em diagonal e uma coluna separa os personagens.)
Em outro momento, quando estão reunidos quatro personagens (o
pai, a mãe e um colega de Handa), três querem a mesma coisa, e embora estejam
em posições diferentes, todos aparecem dentro de um mesmo quadro, enquanto o
discordante (no caso, a mãe do protagonista), em outro; porém, quando o amigo
do calígrafo começa a pensar como a mãe do personagem principal, a câmera muda
de lado e mostra outra coluna separando Handa e o companheiro, e, por fim, este
ao lado da mãe do calígrafo, dentro de um único quadro. Veja as relações
abaixo:
(Os três no quadrado à esquerda desejam o mesmo objetivo, a mãe, discordante, isolada num quadrado à direita.)
(O amigo começa a discordar do protagonista e a câmera mostra-os de outro ângulo, separados por uma coluna.)
(O amigo assume que está ao lado da mãe, os dois ficam dentro do quadrado à direita, enquanto o pai, ainda de acordo com o filho, à esquerda.)
Em suma, Barakamon é um excelente anime, leve, belo e
profundo, que, se não ensina nada novo, relembra lições importantes que podem
ter sido esquecidas ou que não foram levadas a diante. Há diversas metáforas,
momentos cômicos e reflexivos, que o autor deste texto não quis relatar, para
não diminuir (mais ainda) a graça da obra para quem não a viu. O único problema
do anime é uma cena que se passa por cômica, mas que é desnecessária, uma piada
de “duplo” sentido vivida por crianças... Quem assistir perceberá e reagirá. A
trilha sonora é bonita e relaxante, pois combina com aquele ambiente infantil;
as cores são vivas, expressivas; os personagens secundários, embora não sejam
tão bem trabalhados, evoluem com o passar dos 12 episódios. Ao todo, um trabalho
bem feito, altamente recomendado para fãs de animações japonesas, coerente
entre forma e conteúdo, grande demais para ser reduzido a este texto.
REFERÊNCIAS
QUINTANA, Mario. Caderno H. 9 ed. São Paulo: Globo, 2003.