segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Beastars, mais do que uma fábula


Quando se fala em anime feito em CGI (computer generated imagery), todos já olham estranhamente, mas não deve ser o caso de Beastars, de 2019, produzido pelo estúdio Orange, que só trabalha com esse tipo de técnica. Adaptação do mangá homônimo de Paru Itagaki, terminada agora a primeira temporada, a obra consagra-se como uma das melhores do ano na cena, por diversos motivos.
Beastars passa-se num universo de animais humanizados, isto é, antropomórficos, predominantemente dentro de uma escola, a Cherryton, numa sociedade onde é proibido que carnívoros devorem herbívoros. Mais do que isso, toda ação gira em torno do clube de teatro e o protagonista é um lobo que esconde ao máximo a sua natureza. Já deve ter ficado claro que, como as fábulas, o anime metaforiza a vida em comunidade e engloba questões psico-filosóficas, não é?
 Antes de tudo, é preciso lembrar que a sociedade é um lugar onde, segundo Freud, pai da psicanálise, “ao menos todos capazes de viver em comunidade — contribuem com o sacrifício de seus instintos, e que não permite — de novo com a mesma exceção — que ninguém se torne vítima da força bruta” (FREUD, 2011, p. 40-41). Ou seja, é necessário reprimir os seus sentidos animais para se viver socialmente. Ora, essa é a premissa da vida civilizada, do anime de Beastars, e que é quebrada logo no começo do primeiro episódio: ninguém sabe quem foi o malfeitor, mas um animal foi devorado na escola.


 Essa situação deixa todos os herbívoros em pânico e, ao mesmo tempo, revela um preconceito sobre os carnívoros que, por sua vez, sentem relativa raiva dos primeiros e da lei que os defende, o que lembra o pensamento nietzschiano de que a sociedade é um local em que uma massa de fracos vence os fortes (NIETZSCHE, 2009).
 Além disso, não se pode esquecer de que o anime foca no grupo de teatro, isto é, uma arte que busca o Belo através da atuação; de certa forma, do fingimento. Como disse Shakespeare, mestre da dramaturgia: “O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores” (SHAKESPEARE, 2013, p. 62). A representação, tanto em Beastars quanto na vida real, continua além dos holofotes, já que não se pode fazer nem falar tudo o que se deseja à luz do dia, em qualquer que seja o contexto social, pois há regras implícitas e explícitas que norteiam e “vigiam” seus usuários e punem quem as infringe (FOUCAULT, 2014).
 Como não poderia deixar de ser, embora não pareça, toda esta pressão e vigilância causa sofrimento às pessoas: “(...) privar um instinto de satisfação (...) É algo que tem seus perigos; se não for compensado economicamente, podem-se esperar graves distúrbios” (FREUD, 2011, p. 43). É o caso do protagonista da história, o lobo Legoshi, que, diferente de tudo o que se espera (inclusive dentro da obra), não é violento nem se exibe pela sua força, mas é gentil e calmo. Todavia, como já revela a abertura do anime, uma noite  — o que é simbólico, horário que a razão diminui um pouco, as subjetividades e vontades vêm à tona —, o lobo se deixa levar pelos instintos e quase devora uma coelha (pela qual, depois, ele se apaixona).


 Essa personagem, Haru, não é bem vista pelas outras coelhas e mesmo por alguns espectadores, porque ela “fica” (faz sexo) com qualquer animal, mesmo de outras espécies, como o cervo e líder do teatro, Louis, ou como quando já ia se entregar ao Legoshi, mesmo sem conhecê-lo, antes de ele fugir. Beastars é muito competente nisso, por juntar, ao mesmo tempo, questões humanas (morais) e animais (instintivas).
 No anime, Haru diz que cede a todos por medo, pois sabe que é fraca e frágil, então, se ser usada por outro animal lhe permitirá continuar viva, ela deixará, mesmo que não haja amor envolvido. É triste e reflexivo. Por outro lado, ela também diz que é só durante a relação sexual que todos são iguais. Não é nem preciso dizer que “tirar a roupa” e “ficar nu” é algo tanto literal quanto metafórico. Sem contar que “o amor sexual (genital) proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satisfação, dá-lhe realmente o protótipo de toda felicidade” (idem, ibidem, p. 46). Daí, o preconceito que mascara a possível inveja inconsciente das outras coelhas sobre Haru e, na vida real, das pessoas “tradicionalistas/reacionárias” quanto à liberdade sexual dos outros. Novamente, pode-se lembrar de Nietzsche e a moral dos fortes e fracos.
 O anime aborda, então, um triângulo amoroso entre Legoshi, que ora se move pelos sentimentos, ora pela racionalidade, Haru, que se deixa levar mais pelos instintos, e Louis (o cervo, líder e ídolo da turma do teatro), que tenta ao máximo esconder seus medos e fraquezas de herbívoro e mostrar uma imagem de forte e elegante — muito coerente, já que é o maior representante da arte de atuar. O lobo gosta da coelha que gosta do cervo. Situação complicada, difícil de lidar, que evoca questões psicológicas.


 Por falar nessa área de estudo, há uma espécie de “psicólogo”, um panda que vive fora da escola, na cidade, no “mundo dos adultos”, ou, como ele mesmo diz, de quem aprendeu a dominar os seus instintos e que sabe que, de qualquer forma, há uma fuga, no caso, o “mercado negro”, local em que é possível comprar e vender carne, onde crimes acontecem, todos sabem, mas não fazem nada para impedir, apenas afastam as crianças e os estudantes. Nada mais verossímil. Se quiser aproximar da realidade de cá, troque “carne” por “drogas” ou “prostituição”.
 É esse panda que ensina a Legoshi que, na verdade, o que ele sente pode não ser amor, mas somente desejo; que o medo que ele tem de perder a coelha para alguém é, no fundo, medo de perder a própria presa, seu objeto de prazer. É impossível não lembrar de Nietzsche: “Amamos, em definitivo, somente nossas inclinações e não aquilo a que nos inclinamos” (NIETZSCHE, 2013, p. 111). Isto é, ama-se o desejo, não o desejado; gosta-se apenas dos sentimentos e das sensações boas que o outro pode causar, mas não própria e especificamente do causador, tanto que, quando alguém deixa de ser fonte de prazer, é trocado por outra pessoa.
 Ainda assim, Beastars não se trata apenas de romance. Há ação, outros personagens interessantes, lutas/brigas (obviamente, sem poderes e exageros, pois a obra, como já deve ter ficado claro, não é um shounen), cenas cômicas, diálogos reflexivos e poéticos e momentos muito tensos, tudo feito com bastante cuidado, tanto na animação e nos enquadramentos, quanto nas cores e na trilha sonora. Aliás, a abertura é um show à parte, com imagens em stop-motion (aquela técnica de sequência de fotografias de objetos para simulação de movimentos) e música jazz, bem ao estilo das openings de Cowboy Bebop (1998) e Baccano! (2007), embora sejam instrumentais.

(Abertura de Beastars)

 Se fosse para apontar um ou outro “defeito” nesta primeira temporada, pode-se falar que alguns episódios soam desconectados, como, por exemplo, um no qual muito do tempo é gasto descrevendo ações e pensamentos de uma galinha. O capítulo é interessante e engraçado, tem seus próprios questionamentos e a personagem até possui relação com Legoshi, mas soa relativamente desnecessário.
 Outro ponto que parece desconexo é a falta de investigação sobre a morte que acontece no começo da história: ninguém sabe como foi, quem praticou o assassinato, as consequências etc. De vez em quando, até mencionam o fato, mas em boa parte do anime é esquecido. Uma hora, retomam, mas leva tempo. De qualquer forma, são apenas 12 episódios e esses detalhes não estragam a obra. Na já confirmada segunda temporada, ao menos a parte do crime deve ser melhor trabalhada.
 Em resumo, Beastars foi uma grata surpresa neste 2019. Por vezes, nem parece que é feito em CGI. Repleto de metáforas e levantamentos sócio-psico-filosóficos, é uma obra adulta que merece atenção não apenas pelo seu conteúdo, mas pela forma como aborda tudo, afinal, não se vê narrativas com animais antropomórficos toda hora, quase uma fábula moderna, mas sem o clichê maniqueísta de Bem e Mal, “final feliz” (pelo menos por enquanto) e lição de moral. Um verdadeiro trabalho artístico. Que venha a segunda temporada.



REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.  24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin Classics & Companhia das Letras, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich W. Além do Bem e do Mal. Tradução de Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2013.

NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moraluma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SHAKESPEARE, William. Como gostais, seguido de Conto de inverno. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre, RS: L&PM POCKET, 2013. (Coleção L&PM Pocket, v. 727).